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Era uma vez uma discoteca

Emicida | 04 nov 2013_15h43
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Quem hoje ouve minhas canções de acento pop tocarem no rádio, não imagina algumas de minhas preferências musicais no começo da adolescência, naquela fase em que o sujeito de certo modo forja sua persona estética (ou a forjam por ele), torne-se ele um jogador de beisebol, um ortodontista, um criador de pássaros canoros ou um músico profissional.

Como um rapper militante que bate no peito quando diz “sou da periferia”, também digo. Sou da periferia, da periferia do Brasil, do estado do Maranhão. Vivi em São Luís dos 8 aos 19 anos, então caí no mundo e depois voltei para viver mais alguns anos da vida adulta lá (tempos de sexo, drogas, bumba-meu-boi e reggae) até sair de novo e de vez aos 25, para tocar a vida – literalmente.

Nesse largo e prolífico tempo em que lá vivi, compus muitas canções (desde os 14 componho) e comprei – e fiz escambos e o escambau para obter – discos de toda natureza. Tínhamos (eu e minha turma de amigos, alguns aspirantes a músicos e compositores, como eu, outros poetas e protointelectuais e outros ainda consumidores de arte e incentivadores apenas) uma curiosidade sem fim, o que nos fez acumular uma bagagem cultural – e musical especialmente – que seria inimaginável pra um jovem de hoje (e falo isso sem presunção alguma, falo até com certo pesar, por notar como, nesses 30 anos passados, essa curiosidade se diluiu em meio ao apelo difuso e agressivo da indústria cultural e ao imediatismo das novas mídias, como Youtube, redes sociais em geral, iTunes e traquitanas digitais diversas).

Voltando ao início: morando numa ilha, apartada do resto do Nordeste (para os espirituosos, São Luís era “a primeira ilha do Caribe”), sendo estudante classe média, duro como todo estudante, como fazer para comprar discos, e mais, discos especiais, incomuns, raros, que eram nossa preferência – e necessidade – naquele momento de afirmação pessoal e artística? Eu me lembro de ir sempre ao Feirão do Disco, loja grande e especializada, que ficava na Praça João Lisboa, no centro da cidade, e barganhar com o vendedor para olhar o saldão da loja, as sobras e os discos para devolução, num puxadinho nos fundos. Lá, consegui preciosidades como WeWant Miles, de Miles Davis, Cérebro Magnético, de Hermeto Pascoal, Fantasia, de Egberto Gismonti (um clássico esquecido, que eu ouvi por vários verões), ou Asas da América, projeto do compositor pernambucano Carlos Fernando, que visava modernizar e popularizar o frevo, numa série de vários volumes, juntando intérpretes pernambucanos e “estrangeiros”, de Teca Calazans a Luiz Caldas, de Geraldo Azevedo a Frenéticas.

Isso não significa dizer que não comprávamos também discos das paradas, clássicos da MPB e do rock brazuca emergente, pedradas do reggae e lançamentos do pop internacional. Conte a um adolescente da era Youtube que você comprava discos por reembolso postal – e explique o que é, claro! – e certamente você ouvirá uma retumbante gargalhada. Pois eu sou do tempo do reembolso, sim senhor. Comprava discos em gravadoras alternativas como a lendária Som da Gente (dos compositores Walter Santos e Teresa Souza, pais da hoje cantora Luciana Souza) e esperava ansioso como uma virgem a notificação dos Correios. Então lá ia eu, na mesma Praça João Lisboa, pegar as “encomendas”, sem caber em mim de tanta felicidade. Me lembro de, em certa ocasião, ter pedido de uma só tacada quatro títulos raros e preciosos que virariam clássicos na minha discoteca dos 16 anos: Pássaros na Garganta, de Tetê Espíndola, Hermeto Pascoal & Grupo, Jane Duboc (82) eD’Alma (81), do Trio D’Alma. Ela (a discoteca) nunca mais seria a mesma. Nem eu.

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