“Nenhum outro cineasta italiano de estatura mundial tem sido tão negligenciado quanto Ermanno Olmi”, escreveu um crítico inglês. “Talvez”, explicou, “por que a maestria silenciosa dele está fora de moda, mas também por que uma doença grave o tem limitado nos últimos anos.”
De fato, Olmi, hoje aos 85 anos, a partir de 1978 realizou menos filmes do que se poderia esperar. Naquele ano, após realizar mais de quarenta documentários e vários longa-metragens de ficção em 20 anos de carreira, A árvore dos tamancos foi consagrado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, seguida do Leão de Ouro atribuído a A lenda do santo beberrão, no festival de Veneza, em 1989.
Com os prêmios, na Itália, Olmi passou a ser chamado de “mestre”, tratamento que admitiu ter recebido, no início, “com um pouco de orgulho”. Depois, porém, conforme disse na entrevista gravada por ocasião do lançamento de Os campos voltarão, “entendeu que ‘mestre’ acarreta atitude de quem se dispõe a responder perguntas. Eu prefiro fazê-las. Ou seja, prefiro a curiosidade do discípulo. Mestres podem ser desde verdadeiros homens de cultura até a pessoa mais humilde que transmite uma experiência própria que para mim é um ensinamento. Fazer perguntas é voltar àquela condição ideal da infância. Mas, por quê? Por quê? As crianças continuam a perguntar: por quê? Por que tudo ainda está por ser descoberto. Eu cheguei aos 80 anos e descobri, de alguma maneira, pequenas coisas. Mas veja o que ainda há por descobrir. Esse caminho que acredita sobretudo na transcendência, se existe de verdade esse ‘além’, eu gostaria que fosse um ‘além’ no qual se caminha. Quem é inquieto, caminha. Ou seja, procura entender e encarar as razões dessa inquietude. Enquanto se for inquieto, pode-se ficar tranquilo. Não só para fazer filmes, mas inquietos como cidadãos e vigiar o comportamento daqueles que, de algum modo, são responsáveis pela causa comum dos homens.”
Mestre Olmi continua, porém, sem receber a devida atenção. Os campos voltarão, seu filme mais recente, depois de estrear na Itália em 4 de novembro de 2014, dia do centenário da assinatura do armistício que pôs fim às hostilidades da Primeira Guerra Mundial, participou no ano passado da 39ª Mostra Internacional de São Paulo, mas entre nós mereceu um lançamento comercial discreto, com pouca repercussão crítica e saiu de cartaz ontem, no Rio.
A grandeza de filmes como, entre outros de Olmi, A árvore dos tamancos e Os campos voltarão resulta, ao menos em certa medida, no fato de serem arraigados em relatos de vida que ouviu na infância da sua mãe e do seu pai, respectivamente. Nascido em Bérgamo, as histórias reais que absorveu o acompanharam para sempre. Elas traduzem experiências biográficas que influíram de maneira decisiva em sua formação. Além disso, Olmi não apenas filmou Os campos voltarão na região do Vêneto, no nordeste da Itália, aonde vive no município de Asiago, que tem 6500 habitantes, como fez um filme em família. Seus filhos, Fabio e Elisabetta, respondem, ele pela direção de fotografia, ela pela produção de Os campos voltarão.
Em entrevista ao jornal La Repubblica, Olmi contou que seu pai “tinha 19 anos quando foi convocado [para a Primeira Guerra]. Naquela idade, a exaltação do heroísmo inflama mentes e corações sobretudo dos mais jovens. Escolheu os bersaglieri, batalhão de assalto, e se viu em meio à carnificina do Carso [planalto no nordeste da Itália] e do Piave [rio que deságua no Adriático], que marcou sua juventude e o resto da sua vida. Eu era criança”, prossegue Olmi, “quando ele contava para mim e para meu irmão mais velho a dor da guerra, naqueles instantes terríveis de expectativa pela ordem de iniciar o assalto, sabendo que a morte está ali, que espera por você na beirada da trincheira. Ele lembrava dos seus companheiros e mais de uma vez o vi chorar.” Na Segunda Guerra Mundial, Olmi perdeu o pai, ficando órfão com menos de 14 anos.
Excetuado o epílogo, feito com imagens documentais de arquivo, Os campos voltarão transcorre durante uma única noite, e em só uma locação, no final da Primeira Guerra. Na trincheira no planalto coberto de neve, posto avançado próximo às tropas austríacas, os soldados italianos aguardam ordens que os levarão ao desfecho trágico que se vislumbra desde o início.
Filme solene e anti-espetacular por excelência, Os campos voltarão abre mão, deliberadamente, da carga emotiva contida do relato paterno. Despojado, a sobriedade convive com intensa dramaticidade – combinação pouco usual no cinema contemporâneo. Na deslumbrante fotografia com cores dessaturadas, aproximando a imagem do preto e branco, predominam magenta, no interior da trincheira, e ciã, nos exteriores.
“Agora celebramos o centenário daquela guerra com discursos e bandeiras”, Olmi declarou, “mas é preciso dissolver ainda mais o nó da hipocrisia e da covardia. Espero que nessas celebrações se encontre a maneira de pedir desculpa aos tantos soldados que mandamos para morrer sem lhes explicar por quê. Da Primeira Guerra Mundial não sobrou mais ninguém dos que a viveram e possa testemunhar com a própria voz toda a dor daquela carnificina. Restam os escritos: os dos literatos e aqueles dos mais humildes nos quais a verdade não tem contornos retóricos.”
Grande Olmi. Um raro cineasta cristão. Para ele, a explicação do título Ritornerano i prati, Os prados voltarão em tradução literal, está no fato de que “toda tragédia humana, na qual restam no final cinzas e labaredas, sempre tem um epílogo – tudo, depois, voltará ao normal. Como os prados [depois do inverno]. Felizes aqueles, como Olmi, que acreditam nisso.