A médica Fabrícia Martins Almeida atua na linha de frente do combate à pandemia de Covid-19 em São José dos Pinhais, cidade na região metropolitana de Curitiba, capital do Paraná. Aos 31 anos, é residente de clínica médica da Escola de Saúde Pública da cidade e também trabalha em um hospital de campanha na região. Na residência, atua tanto no Hospital São José quanto nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), que precisaram ser adaptadas para internamento de pacientes em estado grave. “Alguns não deveriam ter ficado na UPA, mas precisaram ficar mais de dez dias porque não havia vagas. Precisamos adaptar tudo para virar UTI”, conta Almeida. Os pacientes também começaram a chegar em um número muito maior, muito mais graves e muito mais jovens. “O número era muito assustador.”
Em março, o oxigênio estava prestes a acabar e todos os pacientes da UPA precisaram ser transferidos para um hospital que já não tinha vagas. O objetivo era restabelecer o fluxo de oxigênio e trazer os pacientes novamente. “Mas, em menos de um dia, todos os leitos já estavam ocupados com novas pessoas”, conta a médica. Em meio à luta para conseguir atender todos os pacientes, um desabafo: “Não adianta falar que somos heróis da saúde. A gente só arca com o que está sendo feito como política pública. A gente não consegue conter nem impedir a pandemia.”
(Em depoimento a Plínio Lopes)
Eu me lembro com facilidade daquele homem moreno, jovial e atlético. Ele tentava manter um semblante tranquilo e fazia um sinal de positivo pra mim, apesar de estar claramente agitado, respirando quase uma vez por segundo e suando em bicas. Foi o primeiro paciente em franca insuficiência respiratória que eu veria naquela semana. Começamos a preparar os materiais para a intubação dele, mas a senhora que estava internada do seu lado teve uma piora clínica muito rápida e passou a saturar 50% [quando o ideal é mais de 95%], mesmo recebendo níveis altíssimos de oxigênio pela máscara.
Ela precisou ser intubada primeiro, enquanto seu vizinho de leito tentava ao máximo puxar um pouco de ar. Tivemos que escolher qual era o caso mais grave no momento. Tivemos que escolher entre dois pacientes muito graves. Nunca imaginei que ia passar isso na vida. Não só na residência, mas em toda a minha vida como médica. Todos os pacientes que estavam internados, tanto na UTI quanto na enfermaria, estavam em estado muito grave. No meu primeiro ano de residência, em 2020, acho que intubei no máximo umas seis pessoas. Em março agora, em apenas uma semana, precisei intubar oito pessoas.
Antigamente, na UPA e no Pronto Socorro, as pessoas normalmente chegavam já desacordadas por diversas outras doenças e precisavam ser intubadas. Agora é diferente. A pessoa está lúcida. Você precisa conversar com ela, explicar que ela vai ser intubada. É bastante difícil, porque elas já chegam falando que não querem ser intubadas, que têm medo disso, e eu preciso explicar que é necessário.
Nunca tinha imaginado viver tal tipo de urgência e nem que ela se repetiria dia após dia. O que muda é apenas o rosto aflito e sem ar que estará intubado até o fim do dia. Era ótimo quando a intubação era organizada e sem correria, quando conseguíamos avisar a família, quando havia despedida. “Quanto tempo eu vou dormir, doutora?”, perguntou a paciente. “Uns seis dias e depois a gente te acorda, dona Ana”, eu respondi com sinceridade e otimismo antes de iniciar as medicações.
Eu, como residente de clínica médica, no 2º ano de residência e cumprindo o estágio de pronto-socorro em pleno auge da pandemia, aprendi muito mais do que estava previsto. Emocionalmente, sofri demais. E acabei por aprender demais com o sofrimento (à minha psicóloga, meus maiores agradecimentos). Para dar conta de ver tanta gente agonizando, tanta gente morrendo, quer de forma súbita pelos trombos maciços que a Covid-19 faz (e lá começávamos mais uma reanimação cardiopulmonar), quer de forma lenta pelas infecções generalizadas e múltiplas disfunções agregadas pelo longo internamento, passei a entender que eu não estava ali para sentenciar aquelas pessoas, mas sim para oferecer uma chance a elas. Uma única chance diante da potência arrasadora do vírus que tentava lhes tomar a vida.
Perdi meu sogro para essa doença em janeiro. Vivi a dor e a angústia de estar do outro lado do telefone enquanto a médica passava, com carinho e cuidado, a notícia da intubação, da prona [mudança de posição do paciente para a posição de bruços], da disfunção renal, das infecções, da instabilidade hemodinâmica e da imensuravelmente triste despedida por videochamada, pois a hora da partida já era inevitável.
Entendo, portanto, a dor de uma jovem para quem passei notícias de sua irmã de 23 anos e também de sua mãe, na mesma ligação. A irmã, que estava internada, não deixava de tirar selfies na enfermaria, mas dessa vez era para verificar a saturação de oxigênio que o monitor atrás dela mostrava. Ela estava ansiosa porque já estava saturando 89%, mesmo recebendo bastante oxigênio, e sabia que, se começasse a se sentir cansada, precisaria ser intubada. E continuava mandando mensagem para o “Amor” no WhatsApp. “Você vai ficar bem”, ele escrevia.
A irmã foi intubada, e a mãe precisou passar por diálise no dia do próprio aniversário. Na semana seguinte, a moça de 23 anos e sem nenhum problema de saúde, que eu acompanhei desde antes de ser intubada, faleceu. E, depois dela, a mãe também faleceu. A moça para quem eu telefonei, então, veio a perder ambas. É cansativo lembrar cada situação difícil, pois todo dia foram tantas. Eu só sei que vou me lembrar pra sempre de cada uma.
Quando avisaram que o oxigênio da UPA iria acabar em duas horas, precisamos dar um jeito de transferir todos os quarenta pacientes para um outro hospital que já estava lotado. Sem equipe, sem estrutura, todos ficaram exaustos. No hospital, precisaram transformar o quarto de uma pessoa em um quarto para duas, três ou mais. A ideia era reabastecer o oxigênio e trazer os pacientes de volta, mas em menos de um dia todos os leitos já estavam preenchidos com novas pessoas internadas. No SUS, que é uma mãe, nós temos que abarcar todo mundo que precisa. Alguns desses pacientes não deveriam ter ficado na UPA, mas precisaram ficar lá por mais de dez dias porque não havia vagas. Precisamos adaptar tudo para virar UTI.
Em outro hospital que eu trabalho, estamos com escassez do exame de gasometria. É um exame que precisamos pedir várias vezes por dia para medir a pressão e a saturação de oxigênio [entre outros parâmetros]. É com ele, além do exame físico, que eu consigo avaliar a resposta ao tratamento com oxigênio. Sem isso, a gente fica bem limitado. Conversando com colegas, sei que vários hospitais tiveram que adaptar medicações de sedação de forma bem bruta, tiveram que usar doses grandes de um medicamento que, normalmente, não seria utilizado para isso, porque o medicamento ideal tinha acabado.
Mas o plantão, cujo ritmo é ditado pela hipóxia [falta de oxigênio], enfim termina. Troco de roupa e vou para casa. Lá fora, a vida parece a mesma de sempre. É até engraçado. As lojas estão abertas, as pessoas circulam pelas calçadas e os políticos seguem vomitando imbecilidades. Não adianta falar que somos heróis da saúde. Nós estamos sofrendo na ponta. A gente só arca com o que está sendo feito. A gente não consegue conter nem impedir a pandemia. A gente salva algumas vidas quando é possível, mas não podemos parar a pandemia. A resolução disso tudo tem que vir de cima.
Ninguém que não esteja nas trincheiras das UPAs e hospitais consegue imaginar o que está acontecendo lá de verdade. Nem consegue sentir o tamanho da realização que é desligar a sedação e ver o paciente acordando e voltando a respirar sozinho novamente. A dona Ana, que eu falei que iria dormir uns seis dias, foi extubada em mais ou menos uma semana, e eu pude sorrir de felicidade pela coincidência. É nosso trabalho, afinal, tentar curar, confortar, acolher. Nosso desafio é sobreviver, é não surtar, é não levar a doença pra casa. Nosso desejo é que tudo isso acabe. E o quanto antes, por favor.