O mundo ideal do administrador de empresas e fotógrafo Solimar Mackowiak, de 31 anos, não tem cinto de segurança nem vacina obrigatória. Nem bilhete único, nem bolsa de pesquisa, nem serviços públicos oferecidos pelo estado. Nem estado, aliás, há: Mackowiak defende o “anarcocapitalismo”, vertente radical do liberalismo que prega o fim do estado e que seria baseada em trocas comerciais entre as pessoas. O administrador e fotógrafo é um “ancap”, como ficaram conhecidos no jargão das redes sociais os adeptos dessa corrente ultraliberal que vê no livre mercado a melhor forma de organizar a sociedade. Mackowiak e sua turma são contra, por exemplo, a vacinação e o cinto de segurança obrigatórios, que seriam exemplos de “opressão estatal”.
No mundo dos ancaps – o Ancapistão, como costumam resumir –, saúde, educação e Justiça ficam a cargo de empresas privadas. Mobilidade urbana, energia elétrica, saneamento básico, correios, todos os serviços seriam prestados pelo mercado. Cotas e subsídios são inconcebíveis (em qualquer setor, da agricultura ao custeio de bilhetes estudantis). Para os ancaps, a solução para tudo está na livre concorrência: se a empresa não oferece um serviço de qualidade, será trocada por outra. Das penitenciárias às ferrovias, da polícia ao sistema de estradas. É uma confiança irrestrita num sistema que não produziu experiências práticas no mundo, mas que encontrou terreno para crescer no Brasil.
Na segunda semana de maio, a Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, recebeu uma conferência sobre o pensamento liberal da escola austríaca (vertente que defende a menor presença possível do estado na economia), promovida pelo Instituto Mises Brasil. A maior parte das falas tratava da diminuição do setor público no país, com temas como “Deixando a social-democracia: o que precisa ser feito” e “Uma proposta liberal para o transporte no Brasil”. Mas foram palestras como “Apenas mais capitalismo pode salvar a jovem geração” e “O amigo é a liberdade; o inimigo é o estado” que fizeram do evento um ponto de encontro para entusiastas do anarcocapitalismo.
O administrador e fotógrafo Mackowiak passou a se interessar por política durante os protestos de rua de 2013, quando, ao responder um questionário na internet, descobriu sua propensão liberal. “Comecei a estudar e conheci o anarcocapitalismo. Ser ancap é ser contra a agressão. O estado detém o monopólio da força e impõe suas leis aos cidadãos, sejam elas boas ou não. Em muitos casos não tenho a opção de discordar, como no pagamento de impostos, por exemplo, então para mim essa é uma ação violenta. O anarcocapitalismo é contra esse tipo de violência”, explicou o fotógrafo, num intervalo entre as palestras.
No mundo dos ancaps, câmaras arbitrais e tribunais desportivos são usados como exemplos de sistemas judiciais privados; condomínios com policiamento próprio (e suas cancelas) e a vigilância dentro de shopping centers demonstram o que seria a segurança. Mas não há preocupação em mostrar como seria o funcionamento dessas iniciativas em escala maior.
A maioria dos ancaps acredita na formulação ultraliberal de que “imposto é roubo”. Apesar disso, o fotógrafo paranaense radicado há 14 anos em São Paulo utiliza serviços oferecidos pelo Estado no dia a dia, financiados com o pagamento dos impostos. Ele usa o metrô com frequência, às vezes circula de ônibus, e busca atendimento na rede pública de saúde quando precisa.
“É a contragosto, sempre. Mas é claro que uso: eu pago para isso. Pago meus impostos, é claro que vou usar”, disse. “Não estou errado por isso. Errado estaria o Estado não oferecer um serviço pelo qual estou pagando. Nasci neste país e, apesar de ser contrário a esse modo de vida, não posso escapar dele.”
Ancaps costumam exaltar serviços com menor regulação e facilitados pela tecnologia, como aplicativos de transporte urbano e o AirBnb. Mackowiak citou em vários momentos a decisão do Supremo Tribunal Federal de que municípios não possam proibir o serviço do Uber. “Seria impensável há dez anos. Um tempo atrás não se podia nem falar em privatização e nem se sabia o que era liberalismo. Hoje, nada disso é palavrão. Estamos atingindo um ponto em que os estados paternalistas incharam tanto que vão começar a diminuir.”
Também entusiasta do anarcocapitalismo, o atual presidente do Instituto Mises, Hélio Beltrão, virou recentemente colunista da Folha de S. Paulo. Na primeira coluna, disse tratar-se de uma “sutil evolução” do liberalismo e chamou a ideologia radical de “a melhor forma de proteger a vida, liberdade e propriedade”.
Um avanço recente dessa ideologia no país é a presença de um anarcocapitalista no governo federal – ou, como brincou Mackowiak, quando Brasília se aproximou do Ancapistão. Ex-diretor-geral do Instituto Mises Brasil, o advogado Geanluca Lorenzon, de 26 anos, é desde fevereiro diretor de Desburocratização no Ministério da Economia. Lorenzon também se declara ancap e fundou em Santa Maria (RS) o Clube Farroupilha, associação para difundir ideais liberais. Mackowiak não se importa com a contradição de um antiestatal fazer parte da máquina de um país. “É preciso ocupar espaços”, justificou. “Os ancaps mais jovens discordaram nas redes sociais”, comentou Mackoviak. “Mas sou um ancap ‘gradualista’, acredito que as coisas vão acontecendo aos poucos, é diferente dos ancaps que acreditam que o estado deveria acabar hoje mesmo.”
Apesar de abrir espaço para um de seus adeptos, o governo de Bolsonaro é alvo de críticas dos anarcocapitalistas. “É um governo tão intervencionista e populista quanto o do PT. Dilma mudou o preço do diesel, caíram em cima. Bolsonaro fez o quê? A mesma coisa. Então, só mudou o sinal”, afirmou Mackowiak. Três outros ancaps com quem conversei têm opinião parecida. “O governo atual é só mais um governo, como qualquer outro”, afirmou o engenheiro Giácomo de Pellegrini, que criou um site para divulgar a autopropalada “filosofia libertária”.
Formado em administração de empresas na Faculdades Integradas Rio Branco, Mackowiak leva a cartilha ancap para a vida diária. Num sábado no começo do mês, ele conta, desentendeu-se com agentes da prefeitura que fiscalizavam comércio ambulante irregular na Avenida Paulista. Fiscal de trânsito é outra fonte de irritação. Para o ancap, por trás dos guardas da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) da prefeitura paulistana há a “arrogância que presume a culpa”, e não a inocência dos condutores. Por fim, o cinto de segurança é “outro exemplo revoltante do paternalismo estatal”: “Ah, se não estiver de cintinho vai morrer. E, se não usar, multa! Daí é que se cria ideia de que lei só funciona se ‘mexe no bolso’. É perverso, a sociedade fica refém do estado.”
Anarcocapitalistas também são contrários a campanhas de vacinação obrigatórias. “É uma questão de princípio. Ninguém tem direito sobre o meu corpo, mesmo que seja para uma coisa boa, como a maioria das vacinas”, disse Mackowiak, que é casado e não tem filhos. “Tem muita vacina que não é necessária, e o estado gasta horrores para nos convencer a tomar, como a do H1N1. Ou a da febre amarela para viajar para alguns países”, disse. Pela mesma lógica de que as pessoas têm autonomia sobre seus corpos, ancaps geralmente são a favor da liberação de todo tipo de drogas. “Nossa sociedade não está pronta para liberar tudo. A desonestidade do estado, nesse ponto, é ensinar nas escolas que ‘drogas’ são uma coisa só. Coloca na mesma cesta maconha, heroína, crack”, disse Mackowiak.
Para o ancap, sem governo, a vida melhoraria: “Sem um governo para sempre privilegiar seus amigos, a confiança entre as pessoas aumentará. Dentro do padrão de trocas voluntárias, as empresas vão entender que são responsáveis por manter uma sociedade saudável. Eu realmente acredito que uma cadeia de empresários atuariam para uma sociedade mais saudável”.
No entanto, por mais que seja tentador pensar num mundo sem fiscais, o que o anarcocapitalismo não vê é que, já hoje, há lugares onde o estado não atua – e a vida não é melhor. Empresas não assumiram responsabilidade diante de problemas sociais. “Nesse caso, a questão é a ausência do estado, a incompetência por não fazer chegar os seus serviços, pelos quais, aliás, todos nós pagamos”, afirmou Mackowiak. Outra crítica sobre essa visão de mundo diz respeito ao combate à desigualdade social. Se todos os serviços são baseados em trocas comerciais, a sociedade não teria tudo para ser o paraíso dos super-ricos? Mas, para quem é favorável ao anarcocapitalismo, a culpa para a desigualdade recai, novamente, na existência do estado. A excessiva tutela do estado, para eles, “desestimula e coloca uma barreira” para que as classes sociais mais baixas saiam da pobreza.
No fim da conversa, na praça de alimentação do Mackenzie, no bairro de classe média alta de Higienópolis, onde ocorria a conferência liberal, o administrador e fotógrafo Mackowiak mostrou uma medalhinha dourada que carrega no peito, em que se lê “Liberland”, que comprou por 1 dólar. Trata-se de uma moeda de “1 merit”, que simboliza a criptomoeda de uma autoproclamada nação sem estado com esse nome, de sete quilômetros quadrados, na fronteira entre a Croácia e a Sérvia. “É uma tentativa de sociedade sem estado, um Ancapistão real, mas que não deu muito certo”. Mackowiak afirma que a moeda representa a sua devoção ao anarcocapitalismo. “Só tiro no dia em que deixar de ser ancap.” A julgar pelas experiências de gestão baseadas nessa ideologia, e se a ideia for comprovar na prática o êxito de um regime como esse, a medalhinha seguirá no peito do ancap.