Prisão nos Andes, coprodução entre Brasil e Chile, escrita e dirigida por Felipe Carmona, tem início com a seguinte legenda branca sobre fundo preto: “Quarenta anos depois do golpe de Estado de Pinochet, os homens responsáveis por crimes contra a humanidade na ditadura chilena cumprem penas de prisão de séculos no sopé da Cordilheira dos Andes.”
Essa informação preliminar contextualiza de maneira clara o primeiro filme de Carmona e fortalece seu impacto, ao contrário do que acontece em O Mensageiro, de Lucia Murat, cuja importância é atenuada, conforme comentado aqui em 14 de agosto, por só trazer esclarecimento semelhante no final, após os créditos do elenco e da equipe principal: “Enquanto na Argentina 1125 torturadores foram condenados por crimes contra a humanidade, no Brasil, passados 38 anos do fim da ditadura, nenhum ditador nem torturador algum foi levado a julgamento.”
A diferença entre o modo de lidar com mandantes e executores de crimes contra a humanidade cometidos, de um lado, no Chile, entre 1973 e 1990, e, de outro, no Brasil, entre 1964 e 1985, é espelhada em Prisão nos Andes e O Mensageiro.
Situado na circunstância histórica chilena e baseado em fatos verídicos, o filme de Carmona identifica os cinco protagonistas “condenados a mais de oitocentos anos por violarem direitos humanos” com seus verdadeiros nomes – Manuel Contreras (Hugo Medina), Miguel Krassnoff (Bastián Bodenhöfer), Odlanier Mena (Alejandro Trejo), Marcelo Moren Brito (Mauricio Pesutic) e Pedro Espinoza (Óscar Hernández), dois generais, dois brigadeiros e um coronel, integrantes da Direção de Inteligência Nacional (Dina), a infame polícia secreta da ditadura.
Ao definir o contexto da narrativa, se basear em fatos comprovados e adotar nomes verdadeiros para seus personagens, Prisão nos Andes passa a ter alicerces firmes que permitem recorrer também a situações imaginárias sem comprometer sua verossimilhança. Caso, por exemplo, da sequência em preto e branco, com diálogos em forma de legendas e trilha musical, que mostra a conversa, real ou fantasiosa, de Krassnoff com o general Pinochet, seguida de um passeio de motocicleta aos gritos de “Fugies et liberi Pueblo de Chile!” (Fuga e liberdade povo do Chile!).
Conciso e de exatidão admirável, o prólogo de Prisão nos Andes introduz de modo sutil, em cerca de 2 minutos, o evento deflagrador que acarreta a desagregação das relações entre os cinco antigos oficiais e do modo de vida absurdo que eles levam no casarão onde se encontram presos.
Após a legenda introdutória citada acima, acordes de piano do allegro da Sonata No. 1 em Dó maior, K. 279, de W. A. Mozart, soam na tela preta e seguem durante os closes de um corpo no qual está sendo dado um banho de cuia: em contraluz, filetes d’água pingam da esponja e uma mão esfrega as costas e o braço; a cabeça é secada com uma toalha; o bigode é raspado; as unhas são aparadas; um jovem rapaz penteia um idoso de expressão severa. A estática do walkie-talkie se confunde com a sonata e voz em off diz: “Navarrete. A imprensa está aqui embaixo para a entrevista.” A música prossegue, enquanto o homem desce a escada apoiado na bengala, com o rapaz segurando-o pelo braço, e vai até a sala onde se senta. Outra voz cumprimenta o recém-chegado: “Bom dia, senhor Contreras [a sonata é interrompida]. Meu companheiro vai colocar o microfone em você.” Após uma pausa, os acordes de piano são retomados e o título original Penal Cordillera surge na tela em letras brancas sobre fundo preto.
Além dos presos, Navarrete (Andrew Bargsted), um dos policiais que, além de carcereiro, faz as vezes de cuidador de Contreras, tem destaque no filme. O enredo transcorre em um casarão com piscina e jardim arborizado que mais parece uma casa de repouso do que um presídio. Krassnoff atua como instrutor de educação física dos guardas e treina tiro ao prato; Mena tem o benefício de sair no fim de semana, ao voltar toca gaita sentado na cama e lida com um aviário; Brito dá ordens que os guardas obedecem e Espinoza se perde na mata.
Castro (Nicolás Zárate), o mensageiro de Prisão nos Andes, traz para os ex-oficiais uma revista, um fascículo sobre história da arte, vitamina C e lâminas de barbear. Explica por que não trouxe o livro sobre gaiolas e aviário que Mena encomendara e, por fim, após justificar a ausência dos advogados, entrega uma cópia em vídeo, sem cortes, da entrevista de Contreras mencionada no final do prólogo, com a recomendação de que “se alguém perguntar, não fui eu quem trouxe. De acordo?”.
A entrevista a que os outros quatro presos assistem em seguida subverte tanto a relação entre eles quanto as condições privilegiadas em que vinham cumprindo suas penas.
Contreras declara: “Eu nunca matei ninguém. Nunca torturei ninguém… Sim, houve castigos… Aqui houve uma guerra civil e eu cumpri o meu dever como general do exército chileno.” Em outro momento do filme, Mena diz a Contreras: “Quero que saiba que eu lhe considero o maior filho da puta que existe neste país. Um filho da puta, cujo único legado foi sujar o uniforme do exército chileno.” Contreras retruca: “Você é o general mais inconsequente da história do Chile.” Brito, por sua vez, ao concluir, pouco antes do final, uma longa declaração dirigida aos advogados, diz: “… Tenho pesadelos, claro que tenho. Eu os mereço. Mas vou lhe dizer uma coisa. Se tivesse de fazer tudo o que fiz, não hesitaria um segundo em fazer novamente. Tudo. E quando digo tudo é tudo. Tenho as mãos sujas de sangue, eu sei. Faria tudo de novo. Sabe por quê? Para o bem deste país…”
Em entrevista a Neusa Barbosa, publicada em outubro de 2023, o diretor Felipe Carmona esclarece que “alguns dos personagens [de Prisão nos Andes] já morreram e há dois que continuam presos e cujas sentenças foram aumentadas (Krassnoff e Pedro Espinoza estão vivos). Eles foram transferidos para uma prisão construída para eles que, mesmo sem mordomias, assemelha-se muito mais a uma prisão nórdica ou do primeiro mundo. Junto deles há outros militares de menor patente que foram sendo condenados também por seus crimes durante a ditadura”. Quanto ao país, segundo Carmona, o Chile “está muito polarizado e há uma espécie de recaída em parte da população de sentir orgulho do que se fez na ditadura, negando as violações de direitos humanos cometidas na época. Inclusive, há pouco tempo, uma parlamentar afirmou na televisão que tudo isso se tratava de uma lenda. Então, temos uma parte do país que está muito consciente de tudo que ocorreu, da barbárie e do horror vividos, e de outro lado gente que crê que esses militares foram heróis e que estão presos injustamente – inclusive, os consideram presos políticos”.
Exibido na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em 2023, Prisão nos Andes estreia no circuito de salas de cinema no dia 19 de setembro.
Othelo, o Grande, de Lucas H. Rossi dos Santos, estará nos cinemas a partir de 5 de setembro, após ter sido premiado como Melhor Documentário no FestRio, em 2023. Coletânea abrangente de amostras da carreira de Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, iniciada na década de 1920, o documentário tem o grande mérito de se concentrar no protagonista, abrindo mão de entrevistas e depoimentos de terceiros.
A qualidade técnica desigual da imagem de algumas sequências, incluídas sem restauro, prejudica o conjunto, mas há várias cenas antológicas, entre as quais cito apenas a de Rio, Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, na qual a expressão do rosto de Grande Otelo se transfigura quando, diante dele, Angela Maria começa a cantar Malvadeza Durão, de Zé Keti. Outro momento inspirado de Othelo, o Grande é o raro plano, incluído na abertura e repetido no final, em que Grande Otelo está em silêncio, sentado no canto de um sofá, usando bermuda, com as pernas dobradas. A cena, filmada por Murilo Salles, provém de seu filme Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo (1971).
Grande Otelo sorri ao ouvir Angela Maria, em cena de Rio, Zona Norte (1957), resgatada no documentário de Lucas H. Rossi dos Santos
No final de Othelo, o Grande, a narração em off na voz de Zezé Motta repete a consagrada resposta que Carlos Drummond de Andrade teria dado quando lhe perguntaram “que brasileiro ele gostaria de ser”: “Eu gostaria de ser um sujeito múltiplo que pudesse rir e chorar num grande auditório e que também pudesse escrever, que também fosse simpático e que, finalmente, amasse muitas mulheres. Não estou fazendo uma abstração inatingível. Meu sonho tem nome e se chama Grande Otelo.” Qual é a fonte dessa declaração? Procurei, mas não consegui localizá-la. Encontrei, em compensação, referência semelhante, feita por Geraldo Mayrink, segundo a qual “… só Carlos Drummond de Andrade, sempre acima de todos esses comentaristas, admitiu de cabeça erguida: ‘Eu queria ser Vinicius de Moraes. Foi o único de nós que teve vida de poeta’”.
Afinal, com quem Drummond de Andrade sonhava que gostaria de ser? Grande Otelo ou Vinícius? Ele seria tão volúvel a ponto de sonhar com um e querer ser o outro?