INÍCIOÚLTIMAS HISTÓRIAS

O que é real não desaparece

Como encontrei meu pai no universo de Philip K. Dick

por João Brizzi

Ajeitei o corpo na cadeira depois de alguns dias longe da escola e esperei pacientemente que a professora ajustasse o videocassete da biblioteca. A programação daquela segunda-feira incluía assistir à gravação de uma peça que havíamos encenado poucas semanas antes. A fita tinha sido gravada pelo meu pai. Turma reunida, sala escura, ela ligou a tevê, mas o que apareceu na tela não foi o que esperávamos ver.

A professora logo percebeu que aquilo não era a nossa apresentação teatral, mas um excerto amador à baixa luz, gravado em uma espécie de escritório cheio de memorabilia sem nenhum valor aparente. Confusa, ela clicou em fast forward e avançou a fita em busca do ponto de corte, onde apareceriam nossas três tentativas de encenar o espetáculo sem erros – alguma coisa sobre um velho que comia uma maçã. Enquanto aguardávamos olhando para a tela embaralhada pela alta velocidade da fita raspando no cabeçote, eu não poderia imaginar que naquele pequeno trecho de seis minutos e quarenta e três segundos estavam cenas do apartamento do meu pai: closes de fotografias da nossa família, recortes de jornal de um projeto comunitário que ele ajudara a criar; zoom in e out de pinturas feitas por ele e de quadros com frases agridoces comprados na feira hippie; bonecos e outras quinquilharias tão acumuladas que escondiam em parte a madeira do fundo da estante. Eram cenas amadoras das coisas importantes que ele acreditava ter conquistado como homem comum.

Aos quatro minutos e quarenta e quatro segundos, se a fita estivesse em rotação normal, poderíamos ter visto seu rosto captado de relance, refletido num pequeno espelho em formato de sol colocado sobre a cômoda. Eu não poderia prever que esta seria sua última imagem captada em vida. Vinte e dois dias depois, em 5 de outubro de 2003, Jorge Pequeno, nascido em Campinas, diretor de tevê, 45 anos de idade, meu pai, cometeria suicídio naquele mesmo apartamento sem deixar testamento ou respostas.

1. PALIO WEEKEND

Toda vez que visitamos algum lugar do passado, uma parte do que aconteceu é substituída por algo que acreditamos ter acontecido. Quanto mais o tempo passa, mais difícil fica discernir se o encadeamento dos acontecimentos de que nos recordamos é uma representação fidedigna da realidade ou apenas uma história acomodada pelo esquecimento.

Era um domingo de sol, dia 4 de outubro de 2003, por volta das seis da tarde, quando conversei com meu pai pela última vez. Depois de um almoço em família na casa da dona Ivanilda – minha avó e mãe dele –, fomos todos visitar um amigo que estava internado por conta de um problema de saúde. Decerto não fiquei sozinho enquanto esperava, do lado de fora, a conclusão da visita, mas não faço a menor ideia de quem estava comigo. Aos 9 anos de idade, isso não tinha muita importância.

Visita encerrada, fui me despedir do meu pai. Ele morava sozinho há poucos meses depois de ter se separado da minha mãe. Era um conjugado minúsculo e a única tevê disponível no apartamento era uma daquelas portáteis, que também tinham rádio, toca-fitas e transmitiam tudo em preto e branco numa tela tão pequena que nem valia contar as polegadas. O aluguel dava direito a uma garagem apertada na qual ele se esforçava para guardar seu Palio Weekend verde, 97, que havia sido um grande investimento da família.

Foi recostado na porta do carro, do lado de fora do hospital, que ele acendeu um Marlboro vermelho e me perguntou:

“Quer dormir lá em casa?”

Respondi que não dava, que iria jogar bola mais tarde. Por muito tempo acreditei que, naquele dia, assim como em qualquer outro, o que viria pela frente na minha vida era uma partida de futebol importante. Era só mais uma pelada de final de semana e, no fim das contas, eu só não queria ir para a casa dele. Não me lembro de  nada sobre o jogo – nem sei ao certo se ele aconteceu –, mas lembro de cada detalhe do que se seguiu.

Na segunda-feira ele não apareceu no trabalho e, depois de algum estranhamento e ligações não atendidas por ele, dois tios meus deram um jeito de entrar no apartamento e o encontraram sozinho, com uma bala no peito.

Quando voltei da escola, fui interceptado na portaria por um vizinho. Ele me disse que minha mãe chegaria tarde e eu teria de esperar na casa dele. Até que não era má ideia: o Lucas, um de seus dois filhos, era o único conhecido que tinha um PlayStation e a gente ainda não tinha conseguido jogar até o final o jogo do Quarteto Fantástico.

Minha mãe apareceu para me buscar depois de horas. Quando chegamos em casa, uma comitiva de amigas dela nos esperava. A essa altura, ela já sabia que meu pai havia se matado, mas preferiu dizer que as mulheres estavam lá porque ele estava muito mal, no hospital, e ela queria poder sair de madrugada sem me deixar sozinho, caso fosse necessário. Não entendi muito bem e fui dormir.

Na manhã seguinte, acordei com um burburinho vindo da cozinha. Eram vozes de tios e primos, todos do lado paterno da família. Minha mãe entrou no quarto e, sóbria, me disse: “Bom dia, meu filho. Ontem aconteceu uma coisa e… seu pai morreu.” Perguntei o que havia acontecido. “Ele se matou”, disse, demonstrando toda a honestidade que eu almejaria daquele momento em diante.

Antes de eu sair do quarto, minha prima Paulinha – talvez meu familiar mais querido na época – entrou e me perguntou se eu queria ir ao velório. Quis saber como estava o corpo. Ela, com seus 15 anos de idade, me disse que “tava meio roxo, mas tava tudo bem”. Preferi não encarar a cena e fiquei em casa com a Cida, prima da minha mãe que ajudou a me criar.

Depois do almoço, chamei um amigo para ir à lan house do bairro. Contei o que havia acontecido.

“Você sabe qual arma ele usou?”, perguntou ele, cruel como uma criança.

“Acho que foi um trinta e oito”, menti, encabulado por não saber.

Passei o resto do dia como se nada tivesse acontecido. Foi na hora de dormir, quando encarei minha mãe, que me dei conta de que nunca mais o veríamos.

“Pode chorar, meu filho. Sofra tudo o que você tem para sofrer. Não guarde nada disso.”

2. VANGELIS

Após uma semana de luto, voltei à escola. Logo que cheguei, uma conhecida perguntou se estava tudo bem. “Tudo bem por quê?”, respondi. Cada vez que reparava que alguém se esforçava para abordar o assunto com cautela, eu fazia questão de mostrar que nada daquilo tinha me abalado.

A agenda do dia incluía assistir ao vídeo da peça teatral. O fast forward dado pela professora fez com que eu ignorasse as cenas gravadas por meu pai em seu apartamento semanas antes de nos deixar.

Eu só assistiria ao filme dez anos depois.

A fita ficou guardada no armário, os aparelhos de DVD aposentaram os de VHS e eu esqueci que aquilo existia. Nesse ínterim, aos 10 anos de idade, meu padrasto se mudou lá pra casa. Mais ou menos na mesma época, mexendo em umas gavetas, encontrei um CD com a trilha sonora de Blade Runner, filme distópico de Ridley Scott baseado na obra do escritor Philip K. Dick. Os discos que eu havia herdado do meu pai tinham, todos, seu nome escrito com uma caligrafia geométrica bastante singular. Pouco antes de morrer, ele havia recém-descoberto o gravador de CDs e nós dois estávamos maravilhados com a possibilidade de gravar coletâneas e mais coletâneas. Por conta de alguma obsessão aleatória, ele comprou um canetão e escreveu seu nome em todos.

Eu estava ansioso pelo lançamento do terceiro episódio da trilogia de Star Wars. Meu padrasto gostava muito dos filmes e, aproveitando a necessidade de estreitar os laços comigo, comprou um box com os DVDs dos cinco filmes lançados até então. Revirando os CDs do meu pai – provavelmente influenciado pela estética da produção de George Lucas –, me empolguei quando vi a capa da trilha sonora de Blade Runner: cidades futuristas, carros voadores, cigarros e armas laser já me eram elementos bastante familiares.

Botei para tocar. Eu entendia que, por ser do meu pai, o que eu estava para ouvir era algo que fazia parte do universo dele. Pela singularidade das composições de Vangelis – a mistura entre música sinfônica para cinema e sintetizadores dos anos 80 se tornou um marco estético do que imaginávamos como futuro no final do século XX –, fui acometido por um mistério que me acompanharia por toda a vida: eu não tinha muitas memórias sobre meu pai, mas agora também gostava de algo tão específico e tão carregado de significado que, de alguma forma, se estabelecia um diálogo que mediaria sua influência sobre mim. Eu podia não ter como conversar com ele, mas precisava entender do que o filme tratava e quais as razões que o fizeram gostar daquilo.

3. Cidade cinza

Lançado em 1982, Blade Runner conta a história de Rick Deckard, um ex-policial que é trazido de volta à ativa para perseguir quatro androides que fogem de uma colônia de exploração no espaço. Em uma Los Angeles distópica e globalizada, os androides – chamados no filme de “replicantes” – chegam à Terra com a missão de encontrar seu criador, Eldon Tyrell, e lhe pedir mais tempo de vida. Por serem mais inteligentes e fortes do que os seres humanos, os replicantes que Deckard precisa caçar têm um período curto de vida predefinido, impedindo que subjuguem a raça que os criou.

Com base no livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de Dick, o filme estabelece sua narrativa tratando de dilemas mais existencialistas e menos sociológicos. Enquanto Isaac Asimov criava uma nova sociedade em Fundação e Aldous Huxley pensava um Admirável Mundo Novo, Philip K. Dick usava o universo da ficção científica como prerrogativa para responder às suas objeções sobre a realidade material. Embora costumeiramente futuristas, os mundos criados por Dick eram sempre lúdicos, quase infantis. Enquanto comentava sua espiritualidade e também sua loucura – no começo de 1974, ele teve uma série de alucinações que acabaram por compor Valis, primeiro livro de sua última trilogia e sua exegese –, o escritor se empenhava menos que seus contemporâneos na tentativa de criar um cenário fisicamente plausível. O realismo era um acessório da imaginação.

No filme, entretanto, a atmosfera é bem mais dura e verossímil. Logo na sequência inicial, Deckard se abriga da chuva ácida em uma barraca de comida chinesa. Depois de negociar seu jantar com um atendente que não faz a menor questão de falar inglês, ele é interrompido por um oficial de polícia enviado para informá-lo de sua missão. Coibido a ir para a delegacia, ele passeia pela cidade na viatura voadora do oficial. Em meio a uma selva de prédios escuros, fumaça e luzes neon, surge um imenso painel luminoso com uma propaganda da Coca-Cola. Na minha imaginação, poderia ser Campinas. Eu me sentia em casa.

Em muitas noites, meu pai demorava a voltar. Ele era alcoólatra e, apesar de passar longe do estereótipo do cara que chega em casa agressivo, exigia muitos cuidados e acabava afetando tudo à sua volta. Sempre que eu tentava imaginar onde ele poderia estar, acabava pensando nos lugares onde as coisas sujas aconteciam. Na minha cidade, isso invariavelmente me levava a pensar na antiga rodoviária.

Nas poucas vezes em que tinha passado por lá a caminho da cidade interiorana da minha mãe, me lembrava bem dos botecos risca-faca, das putas e das travestis que habitavam o entorno do terminal. Era uma região decadente do Centro da cidade, mas eu relevava as visitas porque, no caminho, passávamos por um relógio digital enorme, luminoso, que dividia o topo do prédio mais alto da cidade com uma propaganda de banco. Sempre que o olhava, curioso, imaginava como era a passagem do tempo na cidade grande – e como elas deveriam ser iluminadas por muitos outros relógios parecidos.

O medo de saber que meu pai tinha caído em alguma sarjeta perto dali só passava quando eu ouvia a chave entrando na fechadura da sala. Eu esperava que ele ligasse a tevê e saía do quarto para ir ao banheiro ou à cozinha. No caminho, conversava com ele de longe – não gostava de chegar perto e sentir o cheiro do álcool. Eu só imaginava o tipo de mundo que o sugava para fora de casa e depois o devolvia assim.

Quando assisti a Blade Runner pela primeira vez, foi como se eu conhecesse parte do encanto que atraía meu pai. Era como se ele e Deckard bebessem no mesmo bar, perto da rodoviária, enquanto trocavam breves queixas entre um copo e outro.

4. LÁGRIMAS NA CHUVA

Por anos, tive de lidar com um prospecto que assombrou a minha juventude: se eu tivesse aceitado o convite do meu pai naquele dia que [menti?] ter um jogo de futebol [importante?], eu poderia ter impedido seu suicídio? Nos despedimos no fim da tarde de domingo e, na madrugada do dia 5 de outubro, horas depois do último abraço, ele acabou com a própria vida. Ao longo do tempo, percebi que a resposta mais comum que ouvia por aí era a de que aquilo aconteceria de qualquer forma. O mundo, generoso ou apenas sem tempo para entrar a fundo nos meus dilemas, me eximia da culpa. Mas eu sabia que minha inquietação não girava em torno disso.

Acredito, até hoje, que ele não faria o que fez se eu estivesse com ele. Nunca aceitei a conclusão lógica de que ele se mataria de qualquer forma. No campo das possibilidades, isso nunca me pareceu mais provável do que uma possível desistência posterior àquele final de semana. Sem entender, me afastei tanto quanto pude de tudo que aparentava me levar a um destino parecido.

Muito novo, aos 12 anos, decidi que seria ateu – algo que eu sentia não poder contar à minha família católica e bastante compromissada com o cristianismo. Afastado dos parentes do meu pai, sempre soube que meu destino seria sair da cidade assim que possível. A história da minha mãe, que saiu cedo de casa – contrariando as expectativas da família –, me inspirava.

Eventualmente as coisas ficaram bem. Meu padrasto se tornou o melhor pai que eu poderia imaginar e a realidade aparentemente engoliu a culpa que eu sentia. Conforme envelhecia, minhas memórias ficavam cada vez mais nubladas e às vezes eu quase achava justa a versão reconfortante de que eu não poderia ter evitado a tragédia.


Durante a adolescência, assisti a Blade Runner inúmeras vezes. Obcecado, li toda a obra de Dick e decorei os diálogos mais marcantes de Deckard. Não era exatamente um movimento racional mas, olhando em retrospecto, é como se eu continuasse um exercício interminável de investigar o quanto, apesar da fuga, eu carregava traços do meu pai em mim.

Enquanto vaga por Los Angeles à procura de seus alvos, o protagonista se apaixona por Rachael, uma replicante que acredita ser humana. Diferente dos outros androides, Rachael teve falsas memórias inseridas durante sua criação e, por isso, apresenta respostas mais convincentes a estímulos emocionais e ao convívio social.

Por conta do romance, Deckard começa a enxergar humanidade nos replicantes e, ainda que não abandone sua jornada, segue em frente incapaz de compreender o propósito de sua missão. O melhor caçador de androides de que se tem notícia passa a questionar seu ofício e suas memórias.

Com a ajuda de Rachael, Deckard consegue aposentar três dos quatro replicantes, mas perde sua última batalha. Tentando pular do telhado de um prédio para outro atrás de Roy Batty, o líder dos fugitivos, ele cai e se vê à beira de um precipício. Observando a penúria do policial, Batty inicia um monólogo que acaba por ser a fala mais humana do filme. “É uma experiência e tanto viver com medo, não acha?”, pergunta ele, antes de arrematar: “É assim que as coisas são quando se é um escravo.”

Batty salva Deckard e, percebendo que o final de sua vida se aproxima, lhe diz suas últimas palavras: “Eu vi coisas que vocês, pessoas, não acreditariam. Naves em chamas na constelação de Orion. Vi raios resplandecentes perto do portão de Tannhaüser. Todos esses momentos… se perderão no tempo… como lágrimas na chuva.” Batty cumpriu seu destino. Seguiu, por linhas tortas, a programação à qual estava submetido desde sua criação.

O monólogo, improvisado pelo ator Rutger Hauer sob a chuva de uma noite eterna, era a resposta que eu procurava. No final, o que meu pai fez não seria mudado – e a culpa que eu sentia era só uma parte de mim, perdida no tempo, que voltaria a acontecer sempre que fosse lembrada. A despeito do que eu acreditasse, aquilo continuaria existindo.

5. MAUS HÁBITOS

Ficar bem nunca foi uma questão depois do que aconteceu. Com o tempo, à medida que me distanciava da infância, criei um certo despacho para adereçar o assunto. Aos 18 anos, saí de casa e fui para o Rio de Janeiro sem conhecer ninguém na cidade. Como era de se esperar, acabei contando a história do meu pai mais vezes do que o usual aos novos amigos. Invariavelmente, respondia à menor demonstração de emoção do meu interlocutor com a mesma frase: “É só uma história.”

Um pouco depois, aos 20, soube que minha mãe digitalizaria as fitas gravadas por ela e pelo meu pai durante a minha infância. Na primeira oportunidade que tive, copiei os arquivos para o meu computador. Eram horas de gravação, então dividi a tarefa de assistir aos filmes ao longo de uma semana.

Separei alguns clipes e os enviei para dois ou três amigos à medida em que assistia. Os gestos e o olhar do meu pai se pareciam demais com os meus,  tão verossímeis que parecia que eu imitava aquela imagem sem nunca ter assistido àqueles filmes. Eu precisava de uma segunda opinião. Todos os meus amigos confirmaram minha suspeita. Uma década depois, eu me dava conta de que o esforço de evitar a influência do meu pai havia sido em vão: nossa semelhança ia além do que minha racionalidade conseguia abarcar.

Na mesma semana, redescobri o vídeo que ele havia gravado em seu apartamento dias antes de morrer. Assisti a alguns segundos, pausei e mandei uma mesma mensagem para os mesmos amigos, como se aquilo fosse novidade para mim: “Caralho, meu pai gravou um filme antes de se matar. E a trilha é a do Blade Runner.”

Já assombrado por ter constatado nossa semelhança física, só consegui assistir àquele trecho até o final alguns dias depois, na companhia de um amigo. Fingi que era algo que nunca havia fugido dos domínios da minha emoção. Na verdade, eu não queria me convencer de que o que eu tinha era uma carta de despedida.


Passada a empolgação de aprender a viver sozinho, começar – e atrasar – a faculdade e arrumar um emprego, os últimos anos foram um curso rápido de como degenerar minha rotina e minha vida pessoal sob a justificativa de estar vivendo num ritmo frenético. A cada nova conquista profissional, me lembrava de como todo mundo sempre me disse que meu pai era genial no que fazia e, mesmo assim, teve o fim que teve.

Houve dias em que, mesmo sem ter me tornado um alcoólatra, o fim de uma carteira de cigarros às 3h25 da manhã me fazia pensar se a manutenção dos meus hábitos não acabaria me levando aos mesmos dilemas dele, sejam lá quais tenham sido. Sabe-se lá o que corre no meu sangue.

Nunca me senti confortável com a situação, mas depois de um tempo mantendo os mesmos maus hábitos, passou a ser inevitável cogitar que, talvez, era justamente o alongamento desse desconforto com a própria vida cotidiana o fator que dava início à penúria de meu pai. Já era a hora de encarar aquela gravação de frente.

6. MEMÓRIAS

Na correria dos últimos anos, aprendi alguma coisa sobre cinema. Incentivado e acompanhado de perto por um grande amigo, passei a gravar uma coisa ou outra no trabalho e, à medida que compreendia a linguagem, entendia também o que queriam dizer as imagens deixadas pelo meu pai. Ele era diretor de tevê e, pensando melhor, soa desrespeitoso imaginar que aquela gravação teria sido feita sem algum propósito, “só para testar a câmera”. Aceitando a condição de destinatário da mensagem, resolvi assistir a ela, pela primeira vez, com algum compromisso.

Percebo, logo de cara, que não sei se me lembraria daquele apartamento não fosse por esse vídeo. Foram pouco mais de dois meses entre a mudança pós-separação e o dia de sua morte. Aquela não era a minha casa, por isso eu não quis ir com ele depois da visita ao hospital no domingo. Da primeira vez em que o visitei, fomos comprar a mobília acompanhados de meus avós. Logo que entramos com as coisas, dei uma volta pela minúscula área do imóvel e comecei a chorar. Guardei a informação de que tinha sido algum surto de claustrofobia, mas agora, vivendo em um apartamento tão pequeno quanto aquele, começo a achar mais plausível a ideia de que eu só não queria que ele fosse embora.

É forte a ideia de que, talvez, a minha predileção pelo filme e por sua trilha não tenha sido uma escolha. Ainda que eu não me lembre de relacionar meu pai e o filme em vida, aquilo tudo deve ter ficado guardado no meu inconsciente. O que mais eu teria herdado além de cenas de distopia conduzidas por sintetizadores antigos?

Não me lembro dele bem o bastante para conseguir imaginá-lo falando comigo. Ainda assim, a música, as fotos, a forma como ele ajeitava os ícones na tela do computador e cada coisa que ele mantém em quadro naquele plano tornam a atmosfera tão verdadeira que eu quase posso sentir que ele está ao meu lado. Sobre uma das estantes repousa um desenho tosco e simplificado de seu rosto. No alto, reconheço minha letra quando leio “Te amo, pai”.

Não há como fugir: fui eu quem desenhou aquilo. Sou tomado pela sensação de nunca ter me perguntado se amava o meu pai. Mas, ao mesmo tempo, consigo acessar uma memória muito distante do dia em que lhe dei aquele presente. Apesar de nublada – não sei quando nem onde fiz aquele desenho –, consigo me identificar na cena de um João que, aos 9 anos, queria que as coisas ficassem bem. E, se era eu naquele momento, eu acabava de me lembrar que amava o homem por trás daquela câmera.

Quando tento montar sua imagem em minha cabeça, as partes não se encaixam. Eu me lembro do cabelo que ele tinha, das camisas e botinas que usava, da magreza e dos cigarros, mas não consigo colocar tudo no mesmo lugar. Ainda assim, quando o vejo passar despretensiosamente pelo minúsculo espelho redondo enquanto filma sua despedida, sei que ele está ali. E me lembro de uma das frases definitivas de Philip K. Dick: “A realidade é aquilo que, quando se deixa de acreditar em sua existência, não desaparece.”


Ao terminar sua tarefa, Deckard é interpelado por Gaff, o mesmo oficial que o abordou no começo do filme. Após parabenizá-lo pelo feito, ele diz, se referindo a Rachael: “É uma pena que ela não vá viver [para sempre]. Mas, afinal, quem vive?”

A frase ecoa na cabeça de Deckard quando, na sequência final, ele encontra um origami deixado por Gaff na porta do seu apartamento. A dobradura faz o protagonista se lembrar de um sonho que teve ao longo do filme, implicando que, assim como ele sabia das memórias implantadas de Rachael, Gaff poderia saber de seus sonhos. Ele a encontra e foge rumo a uma nova vida – ainda que, agora, saiba que também pode ser um replicante.

Hoje, no 14º aniversário da morte do meu pai, já não sei medir o quanto minhas memórias correspondem ao que vivi. É como se eu pudesse confiar no que me lembro tanto quanto os replicantes podiam e, ao mesmo tempo, saber que é nesse emaranhado confuso de imagens e sons o lugar onde mora a origem de quem eu sou.

Me conforto em saber que, no final, nós dois sabíamos da mesma coisa: ainda que Deckard, Roy, Rachael e os outros replicantes tivessem a certeza de que tudo o que sabiam sobre si mesmos era baseado em uma farsa, todos cultivaram o desejo de continuar vivendo. É o suficiente.

JoãO Brizzi
Repórter da piauí e cofundador da revista Poleiro
DESIGN E DESENVOLVIMENTO
 JOÃO BRIZZI

EDIÇÃO
LEANDRO DEMORI

ILUSTRAÇÕES
LÍVIA BADIANI

VÍDEO ORIGINAL
JORGE PEQUENO