Jair Bolsonaro enfrenta considerável perda de popularidade. A piora na avaliação de seu governo supostamente abriria espaço para uma candidatura de centro. A espera pela personificação desse centro é a expectativa de uma considerável parcela do eleitorado que não se vê representada nem por Luiz Inácio Lula da Silva nem por Bolsonaro. Um dos problemas do centro está no fato de que o que o une é essa dupla rejeição – e isso não basta, eleitoralmente. Não há personificação possível de uma pauta negativa, e é difícil imaginar um único candidato ou candidata que encarne todas as pautas não contempladas pelos dois polos atuais da disputa.
Dentro desse amplo espectro de rejeição a Lula e Bolsonaro há desde eleitores progressistas nos costumes e liberais na economia até conservadores desencantados, passando por lavajatistas decepcionados, ambientalistas devastados e a esquerda identitária. Não coincidentemente, nenhum desses grupos parece ter significativa projeção fora dos muros das universidades. Os supostos membros da frente ampla concordam sobre o que não querem, mas acabam de descobrir que desempenhar o papel de pedra é mais fácil do que ser vidraça. Não basta saber quem irá personificar essa tal terceira via, que permanece como uma nuvem disforme ou uma utopia não escrita. É preciso ir além e pensar qual é o projeto de país que consegue servir a todas essas propostas, caso ele exista. Do contrário estaremos somente postergando mais uma vez a resolução de problema talvez insolúvel, enquanto assistimos aos conflitos políticos e sociais se intensificarem – a ponto de se aproximarem do perigoso limite da violência política.
A espera por uma figura que venha salvar o país faz lembrar o esforço de Nicolau Maquiavel para encontrar um príncipe capaz de libertar Florença da violência política. Eternizado como símbolo do que pode haver de pior em termos éticos, Maquiavel plantou a semente do Estado contemporâneo. Fez isso ao conceber e dar forma ao governante moderno, um líder que, apesar de bom, usaria do mal para garantir a estabilidade ao Estado. Alguém que, em nome da cidade, cede em seus princípios, já que “se os bons não cederem, somente os maus governarão”. O jovem Nicolau sentia saudades de Soderini, o melhor governante que Florença havia visto, mas que manteve sua inocência e não se dispôs a abrir mão da vida eterna em prol do seu povo. Desencantado, o florentino só pôde concluir que o bom governante é aquele que consegue manter o poder e, consequentemente, garantir estabilidade ao Estado e paz aos súditos, um principado com sucessão hereditária.
Em um texto menos panfletário e mais analítico, “Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio”, Maquiavel vai defender ideias praticamente opostas e deixar clara a sua preferência pela República em relação aos principados. A República teria a grande vantagem de usar da astúcia do povo, a virtù coletiva, para garantir que fossem escolhidos, ao longo do tempo, os melhores governantes para cada circunstância específica – para cada novo momento. O melhor governante para tempos de guerra pode não ser a melhor opção em tempos de paz, por exemplo. Além disso, os principados sujeitariam o povo ao acaso e aos riscos da sucessão hereditária. Ou seja, o povo podia ter azar, e o filho do rei ser um idiota.
Por que, então, o mesmo Maquiavel que tece rasgados elogios à República escreve O Príncipe, onde conclama o surgimento de uma nova liderança forte e astuta, que consiga impor sua vontade e dominar o povo quando preciso? Há quem diga que o texto é um alerta ao povo para que não permita que isso aconteça. Outros sugerem que o famoso livro seria resultado de um rapaz bajulador que buscava os favores do governante e a proximidade com o poder. Uma vez que não é possível confirmar uma coisa ou outra, é mais seguro assumir a aparente contradição: o mesmo Maquiavel que considerava a República a melhor forma de governo também entendia que, naquele momento, Florença precisava de um príncipe para unificar o Estado e garantir a paz. No Brasil contemporâneo, quem espera pelo príncipe da terceira via, um líder capaz de unificar um país tão profundamente dividido e polarizado e só assim salvar a República, talvez esteja se comportando de maneira tão contraditória quanto Maquiavel.
O príncipe conclamado por Maquiavel nunca apareceu. A violência e instabilidade política continuaram a ser a regra em Florença, e a unificação italiana só viria mais de três séculos depois da morte do ilustre florentino. O Brasil não tem todo esse tempo. O melhor para o Brasil hoje seria seguir o valoroso conselho do Maquiavel mais sóbrio e buscar a melhor forma de operacionalizar a astúcia do povo com o objetivo de escolher o melhor governante para o atual momento. Ele ou ela não precisa ser o messias salvador da pátria, o príncipe que unificará o povo e resolverá todos os problemas. Só precisa garantir que não estejamos sujeitos à sucessão aleatória, porque o filho do rei pode ser um idiota. Ou quatro.