Jaime Gomes dos Santos estava em casa quando a sirene da Vale tocou. Além do barulho estridente e repetitivo, uma gravação explicava o motivo do alerta: a barragem B3/B4, da mina Mar Azul, instalada logo acima do vilarejo de Macacos, em Nova Lima (MG), estava prestes a romper. Eram por volta das seis da tarde, do dia 16 de fevereiro de 2019, um sábado. Morador do distrito, o aposentado de 72 anos saiu à rua e encontrou os vizinhos debaixo da chuva, sem saber o que fazer, pois não haviam sido treinados para a situação. Os ânimos se acalmaram quando a Defesa Civil esclareceu que aquela rua não seria atingida pelos rejeitos da barragem, em caso de rompimento, e que ninguém precisava correr. Minutos depois, chegaram as pessoas que estavam na área de risco, entre elas a família do filho mais novo de Santos. Todos passaram a noite no Centro Comunitário, localizado na mesma rua.
Quase um ano depois, a barragem não rompeu. Macacos continua em estado de alerta e viveu uma lenta, mas inexorável transformação – que mudou a economia, as ruas e o ritmo da cidade, mas sobretudo a forma como os moradores se relacionam entre si, esgarçando laços de convívio estreitados durante anos. Mais de quatrocentos moradores do vilarejo com pouco mais de mil habitantes, cujo nome oficial é São Sebastião das Águas Claras, estão morando em hotéis, pousadas ou casas alugadas. A Vale diz que não sabe quando as famílias poderão voltar para suas residências.
Da varanda de casa, Santos tem vista para três barragens da região – só no município de Nova Lima, existem 26 barragens de rejeitos – e para as obras que a mineradora está realizando nos arredores. “Eu queria que a Vale tivesse um pouco mais de responsabilidade pela vida humana e pela natureza, isso que eles fazem não está certo”, reflete, olhando para seu quintal.
Na semana em que a sirene tocou, Santos tropeçou na coleira de um cachorro, caiu e machucou a coluna. Teve de ser levado às pressas para o hospital. Deitado no leito da enfermaria, lembrou-se de que não era a primeira vez que uma barragem representava risco à sua vida. Em 22 de junho de 2001, Santos pegou um ônibus de sua casa no Morro do Chapéu, nos arredores de Macacos, e saltou no ponto final. Um amigo caminhoneiro foi buscá-lo para ver umas plantas, mas os dois não chegaram ao destino. No meio do caminho, uma avalanche de lama de uma barragem da mineradora Rio Verde soterrou o caminhão. Passaram-se 25 minutos até que Santos conseguisse abrir uma fresta na janela para respirar. Ao forçar mais o vidro, conseguiu colocar o corpo para fora do caminhão e sair. Acordou o amigo, desmaiado dentro do veículo, e o puxou pelo braço. Salvaram-se os dois.
Logo que os homens do resgate chegaram, Santos desmaiou. Além de atingir 43 hectares e assorear 6,4 km do leito do córrego Taquaras, o acidente causou a morte de cinco homens que trabalhavam para a Rio Verde, responsável pela barragem que rompeu (a mineradora foi comprada pela Vale pouco tempo depois). Todos eram amigos ou conhecidos de Santos.
Desde aquele episódio, passou a ser conhecido como um chorão de carteirinha. Teve que fazer acompanhamento psicológico e se aposentou por invalidez do trabalho como mestre de obras, sem ter recebido nenhum tipo de indenização da mineradora Rio Verde. Ele conta que nem a morte de sua mulher em 2014, com quem estava casado havia mais de vinte anos, o abalou tanto quanto ter ficado soterrado.
Quando fala do episódio de 2001, o ex-mestre de obras bate a palma da mão de forma ritmada na perna, para controlar a emoção. Tem dificuldades de fazer planos, e sua única meta é engordar uma poupança que começou no final do ano passado para seu neto, Caetano, com o dinheiro do décimo terceiro salário da aposentadoria. Natural de Salvador, na Bahia, mas morador da região há 38 anos, Santos acredita que o vilarejo pode vir a desaparecer.
Gabriel Francisco, filho de Santos e pai de Caetano, tem um restaurante no Centro de Macacos. Ele e a mulher, Débora Dumont, viviam numa área que, caso a barragem rompesse, ficaria ilhada. Desde que a sirene tocou, só voltaram lá uma vez, cerca de dez meses depois, para buscar objetos de valor sentimental. Depois de passarem dois meses num hotel em Belo Horizonte, hoje vivem numa pousada no distrito – longe da zona de risco – bancada pela Vale. As roupas que usam também foram compradas com o dinheiro da mineradora, que distribuiu 2 mil reais para cada morador desalojado, só para esse tipo de gasto.
Caetano tinha 37 dias de vida quando a barragem ameaçou romper. Saiu de casa debaixo da chuva, enrolado numa toalha de mesa. Hoje está perto de completar 1 ano. Os pais se queixam de que ainda não conseguiram batizar o menino. “O padrinho e a madrinha do meu filho é a Vale”, costuma debochar Gabriel. No início, dizem, a Vale atendia aos pedidos de assistência sem colocar empecilho, mas nos últimos meses as coisas foram mudando. Há três meses, o casal pediu para receber papinha da empresa, mas recebeu uma negativa. Os empregados da Vale justificaram que era necessária a aprovação de um nutricionista. A mineradora disse que essa é uma medida de segurança.
Antes da sirene tocar, o restaurante de Gabriel era bastante movimentado, principalmente nos fins de semana e feriados, quando turistas subiam a serra para visitar o vilarejo. O principal atrativo de Macacos era o turismo, o que mudou completamente desde que a barragem entrou em estado de alerta. Nos primeiros meses, a perda de turismo foi total e, ao todo, 15% dos estabelecimentos fecharam, de acordo com dados da prefeitura. Gabriel mantinha um cardápio de refeições à la carte, e cada prato custava em média de 50 reais. Depois do acontecido, teve que transformar o serviço em buffet para continuar funcionando. Sua principal clientela passou a ser dos operários que a Vale contrata para tocar as obras no vilarejo. A maior parte do que vende agora sai por 20 reais, o valor da “moeda” que a Vale introduziu na região, para os moradores que perderam seus empregos poderem comprar comida.
Desde fevereiro, a mineradora passou a distribuir, para quem estiver cadastrado na prefeitura como morador de Macacos, um voucher no valor de 20 reais para alimentação (15 reais para um prato de comida e 5 para a bebida). Semanalmente, os moradores podem resgatar uma cartela com catorze vouchers, contendo um ticket para o almoço e um para o jantar. No começo, só alguns restaurantes podiam receber o voucher, que depois passou a ser uma moeda de uso mais generalizado. Hoje é aceito em mercearias, mercados e bares. Até a loja de artesanato, que com a fuga dos turistas deixou de vender enfeites, passou a comercializar comida para receber os vouchers e ter uma renda certa para manter o ponto. Semanalmente, os comerciantes trocam os vouchers por dinheiro no Posto de Atendimento (PA) da Vale.
“Nesse caso não gosto de reclamar, porque o voucher é o que possibilita que o restaurante esteja aberto até hoje”, conta Gabriel. “Mas o turismo ainda não voltou à cidade. Hoje a gente é completamente dependente desse voucher, que pode acabar a qualquer momento.” A Vale ainda não tem data para tirar o voucher de circulação, mas já apresentou ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) uma proposta de troca dos tíquetes por um valor mensal em dinheiro: um salário mínimo por adulto, meio por adolescente e um quarto por criança.
A nova moeda também tem seus efeitos colaterais. O sorveteiro João Ricardo Nazareth de Lima recebe o voucher desde os primeiros meses e seu faturamento subiu como nunca. Antes da sirene tocar, vendia algumas dezenas de sorvetes por dia. Agora, com a opção de comprar com o voucher, as pessoas passaram a consumir mais sorvetes para completar o valor de 20 reais. Há uns meses, Lima teve que mudar o status da sua empresa de Microempreendedor Individual (que deve manter arrecadação anual abaixo de 81 mil reais para só ter que pagar um imposto fixo mensal de cerca de 50 reais) para Simples Nacional (com impostos mais altos e a obrigatoriedade de ter um contador). Lima sabe, no entanto, que o aumento em seu faturamento é temporário. Ele teme pelo dia que o voucher deixar de existir e já calcula que terá que fechar a empresa.
Surgiu também o comércio paralelo de voucher. Frederico Luis de Amorim, de 34 anos, trabalhava como garçom num restaurante e tinha carteira assinada antes da sirene tocar. Depois disso, perdeu o emprego e hoje faz bicos, inclusive no restaurante de Gabriel. Recebe os vouchers para as refeições. Há alguns meses passou a vender o voucher para comerciantes por 15 reais cada, e com o dinheiro paga a pensão alimentícia de seu filho Pedro, de 9 anos. Amorim já conversou com empregados da Vale sobre isso, e foi advertido. “Mas eu vou fazer o quê? E o que eles podem fazer? Se eu deixar de pagar a pensão, eu posso ir preso”, justifica Amorim. “Prefiro vender o voucher.”
Enquanto Amorim contava sua história, sua mãe, Elza Luiza Amorim, passava pela rua. Professora aposentada, deu aula na escola municipal da região e costumava conhecer quase todo mundo. Aos 64 anos, mora na região há 43, não pensava em deixar o vilarejo até a sirene tocar. Sua casa não seria afetada caso a barragem rompesse, mas toda a situação da cidade mexe com sua vida e seu humor. Já não conhece as pessoas nem reconhece a cidade povoada por gente estranha.
Desde fevereiro a Vale vem investindo em obras na região. A mineradora reformou o Centro Comunitário e uma feira local, criou uma escola provisória em 25 dias e já está construindo outra, longe da zona de risco. A empresa começou a reformar inclusive a Capela de São Sebastião, do século XVIII, uma das primeiras construções do distrito, que passou a ser povoado depois da descoberta de ouro. A Prefeitura de Nova Lima informou que fiscaliza a revitalização do prédio, tombado pelo município, e todas as outras obras.
As construções e reformas fazem parte de um projeto que técnicos da Vale chamam de Plano de Requalificação Urbana de Macacos. O planejamento, segundo a mineradora, é feito em parceria com a prefeitura e a comunidade local. A requalificação do distrito integra o Plano de Desenvolvimento de Territórios Impactados da Vale, que terá investimentos de cerca de 190 milhões, destinados também a Barão de Cocais e Itabirito, ambos em Minas Gerais. O projeto prevê ainda a reforma do campo de futebol e de uma praça.
No acesso a Macacos, caminhões carregados sobem e descem o dia inteiro. Eles deixam um rastro de terra por onde passam, e quando chove, tudo fica lamacento, os moradores agora colecionam vídeos de acidentes na estrada. O trajeto de 25 km até Belo Horizonte, antes feito em pouco mais de meia hora, agora pode levar duas horas. “Eu não tenho mais disposição para ir a BH. E se acontece algo no caminho?”, pontua Elza. “A área em que a lama passaria foi esvaziada, mas agora existem esses novos perigos.”
A mineradora está abrindo uma nova estrada de acesso ao vilarejo, porque a atual seria atingida pela lama. Também está construindo um novo muro de contenção para impedir que, em caso de vazamento, os rejeitos atinjam a bacia do Rio das Velhas, responsável por 40% do fornecimento de água de toda a região metropolitana de Belo Horizonte. As obras foram aprovadas em caráter de urgência, embora ainda não seja conclusivo que estejam sendo tocadas nos parâmetros corretos, uma vez que o Ministério Público aguarda nova auditoria para calcular os danos do possível rompimento.
A Vale declarou que, em março deste ano, devem ser concluídas as obras de contenção dos rejeitos em caso de rompimento da barragem. O prazo inicial era dezembro. Sobre a volta dos moradores para suas casas, não há previsão. Em nota, a mineradora afirmou que está “empenhada em prestar assistência aos moradores e reparar danos”, e que “as demandas básicas de saúde e nutrição são prontamente atendidas desde que sejam acompanhadas de um parecer emitido por especialista da área”. Disse que os moradores da zona de risco ou os que possuem imóveis ou atividades comerciais nas áreas evacuadas já receberam “doações financeiras” da Vale no valor de R$ 5 mil para despesas emergenciais. Sobre as indenizações, a mineradora informa que já fechou mais de 4 mil acordos individuais com lesados por rompimentos de barragens, sem especificar quantos em Macacos. Ao todo, a mineradora já destinou mais de R$ 2 bilhões a esse tipo de ação em Minas Gerais.
Elza é sobrinha de Ruben Eustáquio de Amorim, de 72 anos, dono de uma loja de materiais de construção. Ele vive na mesma rua desde que nasceu e é filho de uma personagem da cidade, dona Dica, conhecida por ter aberto as portas da região para o turismo. Foi ela quem fundou o primeiro restaurante de Macacos – um lugar badalado, que recebia artistas como Milton Nascimento e Elke Maravilha.
Ao contrário da sobrinha, Amorim não está contrariado com a situação do vilarejo. “Foi uma nuvem que passou, mas já tá tudo normal. Todo mundo está recebendo seu voucher, meu menino entrou com um pedido de indenização e recebeu. Então tá tudo funcionando”, conta num forte sotaque mineiro. Em outubro, seu filho recebeu uma indenização da Vale no valor de 246 mil reais. E a loja, segundo ele, tem prioridade no fornecimento de materiais para as obras em curso. “Eu, pelo menos, agradeço à Vale, porque não estou tendo perda”, conta. “Antes já estava ruim para todos, não estava circulando dinheiro por aqui”, lembrando que a crise já vinha afetando o comércio local.
Na pousada em que estive hospedada em dezembro último, o gerente contou que já se esquivou de dar entrevista para grandes veículos de comunicação, porque não quer afastar o turismo. “Quando sai uma matéria na Globo, por exemplo, se tenho alguma reserva marcada, perco na hora”, explicou. “Tem dificuldades, mas a mídia amplifica demais a situação.” Num restaurante em que almocei, o dono me falou a mesma coisa.
A mulher de Gabriel, Débora Dumont, atenta para uma característica imposta à região: a Vale separou os moradores em três categorias. Segundo a Defesa Civil, dos pouco mais de mil habitantes de Macacos, 384 são considerados moradores da Zona de Autossalvamento (ZAS); 2 350 pessoas, incluindo residentes de distritos vizinhos, são consideradas moradoras da Zona de Segurança Secundária (ZSS); e há os que estão fora de qualquer área de risco. Tal divisão criou uma espécie de rivalidade entre esses núcleos, segundo Dumont. Ela diz que os moradores mantêm grupos de WhatsApp separados e não estão interessados em fazer processos conjuntos contra a mineradora.
Quem mora na ZAS não pode voltar para casa até a Defesa Civil permitir. Quem mora na ZSS pode escolher voltar para casa, embora muita gente não queira se arriscar (alguns imóveis tidos como integrantes da Zona Secundária estão a apenas 100 metros da área por onde a lama passaria, segundo a projeção da Vale). A mãe de Dumont, Guiomar, dona de uma casa na ZSS, brigou com os moradores da ZAS para entrar no grupo deles no WhatsApp. Ela já queria vender a casa que tem no vilarejo, onde a filha e o genro estavam morando, antes da sirene tocar. Agora não encontra comprador para a sua propriedade, e a Vale se nega a arrematar o imóvel. Embora a casa não esteja, nos cálculos da mineradora, no caminho da lama, o imóvel deixou de valer qualquer dinheiro, pois já não há mais comprador.
Dumont relata que já ouviu discussões entre moradores sobre quem tem mais ou menos direitos e que algumas amizades se desfizeram. Ela, que recebe da mineradora fralda para Caetano, lembra uma vez em que não conseguiu buscar os pacotes no pronto-atendimento da empresa e teve que pedir para receber na pousada. Quando os entregadores chegaram, ela se desculpou pelo trabalho. Os empregados da Vale disseram que era até melhor assim, porque não criava “inveja” nos outros.
“A Vale destruiu o senso de comunidade da região”, conta Dumont. “Isso é maquiavélico, e tenho certeza de que eles fazem isso de propósito, porque os únicos beneficiados disso são eles.” Os valores das indenizações já liberadas variam muito. A empresa prefere analisar caso a caso. A promotora de Nova Lima, Cláudia Ignez, conta que as indenizações que já foram distribuídas poderão ser analisadas novamente ao final do processo, caso seja concluído que a mineradora pagou valores abaixo dos danos causados.
A região lembra um grande canteiro de obras, onde se enxerga um rastro de areia avermelhada e homens com capacetes em todos os lugares. A Vale passou também a contratar, por meio da Preserves, uma empresa terceirizada, pessoas para monitorarem as estradas. A cada esquina, duplas de olheiros vestidos com coletes fluorescentes ficam sentadas 24 horas passando comandos por walkie-talkies. No horário de almoço, os restaurantes ficam lotados de pessoas de coletes, sejam olheiros ou operários.
Quando sai na rua, Elza, a professora aposentada, quase não reconhece ninguém, pois a maioria de seus amigos saiu de casa e hoje está em pousadas afastadas ou hotéis em Belo Horizonte, e muita gente nova chegou ao vilarejo. “Não existe alguém que não tenha sido afetado por isso tudo”, suspira. Depois de 43 anos morando ali, a professora que ensinou as crianças da cidade a ler, que conhecia todo mundo, que se sentia em casa em qualquer rua de Macacos, passou a fazer uma coisa que nunca fez na vida: trancar o portão.