Três meses depois da posse de Jair Bolsonaro, em 2019, a empresa israelense NSO Group, uma das mais bem-sucedidas fabricantes de material de escuta e monitoramento do mundo, acionou seus representantes para tentar vender equipamentos ao governo brasileiro. Um dos lobistas do NSO, o brasileiro Marcelo Comité Ferreira da Silva, foi escalado para o trabalho. Em um áudio de WhatsApp, obtido no âmbito de uma investigação do Ministério Público Federal e ao qual a piauí teve acesso, o lobista comenta as boas possibilidades que surgiam com o novo governo para oferecer seus produtos:
O Eduardo Bolsonaro, por exemplo, é um cara que é…. Dá pra gente chegar e fazer essa apresentação, entendeu? Eu vou fazer o seguinte, cara. Eu vou pegar, ver se eu pego o Ramagem, que é o cara que… é… ver se eu faço lá na DPF mesmo, que é uma coisa transparente pro Ramagem, e chamar o pessoal da inteligência do GSI, para apresentar isso lá… lá na DPF.
No áudio, Ferreira da Silva se refere a Alexandre Ramagem, policial federal que quatro meses depois ocuparia o cargo de diretor-geral da Abin. O lobista queria apresentar seu produto no DPF, como se refere à Polícia Federal, e esperava contar com a presença de integrantes do GSI No entanto, a presença de Ramagem, hoje deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro, era especialmente importante. Prossegue o áudio:
Porque ele [Ramagem] é o cara de extrema confiança do Bolsonaro. […] É delegado de polícia, sabe investigar pra cacete. […] Se é pra chegar no Bolsonaro, esse é o cara.
O Pegasus é a mais agressiva e eficiente ferramenta cibernética de espionagem de que se tem notícia: invade qualquer aparelho celular, em qualquer dispositivo operacional (Android ou IOS), sem que o usuário perceba, driblando qualquer criptografia de aplicativos de mensagens – e tudo isso sem depender de nenhuma ação por parte do investigado, como um clique em algum link malicioso, para iniciar o monitoramento. O Pegasus revelou-se tão poderoso que só pode ser negociado com entes governamentais e toda a venda depende de uma autorização formal do governo israelense.
Os áudios indicam que, pouco tempo depois, os lobistas do NSO conseguiram se reunir com Ramagem para apresentar o Pegasus. As negociações se prolongaram, mas o Ministério Público Federal não conseguiu confirmar se a Abin, de fato, comprou a ferramenta. Ao MPF, o órgão negou ter adquirido o programa israelense.
Não se sabe qual uso o governo Bolsonaro pretendia dar ao Pegasus quando se interessou pelo programa, mas a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vinha naquela época operando ilegalmente um programa de espionagem que adquirira um ano antes, o FirstMile. Fabricado pela Cognyte Software Ltd., empresa também israelense e concorrente do NSO Group, o FirstMile é uma ferramenta potente, mas não tem as mesmas propriedades que o Pegasus. Seu forte é monitorar em tempo real a localização geográfica de um celular.
O FirstMile vinha sendo útil aos arapongas. Em março deste ano, o jornal O Globo revelou que servidores da Abin estavam usando o programa para bisbilhotar adversários ilegalmente. Diante da denúncia pública, a Polícia Federal abriu uma investigação e constatou que a Abin fizera mais de 30 mil rastreamentos de celulares por meio do FirstMile. A polícia já descobriu a identidade de metade dos 1,8 mil monitorados. Entre eles, estavam o jornalista americano Glenn Greenwald e seu marido, o deputado federal David Miranda, falecido em maio de 2023, além de um agente do Ibama, Hugo Loss.
A venda do FirstMile e o trabalho do NSO para oferecer o Pegasus ao governo é uma operação comercial regular e dentro da lei, bem como o interesse do governo em adquirir uma ferramenta capaz de ampliar sua capacidade de combater o crime. “Mas é necessário haver regras claras no uso desses dispositivos, e hoje essas regras não existem no Brasil, o que permite todo tipo de desvio ético e legal”, diz Bárbara Simão, coordenadora de pesquisa na área de privacidade e vigilância do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia.
Durante seis meses, a piauí investigou o mercado de espionagem ilegal por parte de órgãos do Estado, ouvindo policiais, promotores, especialistas em cibersegurança, ativistas ligados aos direitos humanos e políticos em seis estados e no Distrito Federal. A conclusão é que, operando nas brechas da lei ou violando abertamente a legislação, o Brasil virou um celeiro da arapongagem clandestina nas esferas oficiais, o que não envolve apenas a Abin e a Polícia Federal, mas também as polícias estaduais e até o Exército.
A bisbilhotice oficial ocorre tanto para fora dos órgãos oficiais, atingindo cidadãos comuns, como para dentro dos órgãos oficiais, envolvendo disputas intestinas por espaço e poder. Assinantes da revista podem ler a íntegra do texto neste link.