Esta reportagem resulta de uma parceria entre a piauí e a Fiquem Sabendo, com apoio do Fondo para Investigaciones y Nuevas Narrativas sobre Drogas (FINND), da Fundación Gabo e da Open Society Foundations (OSF). Participaram do projeto: Camille Lichotti, Tatiana Farah e Luiz Fernando Toledo (reportagem), Egberto Nogueira (fotos e vídeo), Nathália Afonso (checagem), Fernando Carvall (ilustração), Ana Martini (revisão) e Fernanda da Escóssia (edição).
São Paulo, 15°C numa madrugada de julho. O frio não impede as longas filas para entrar em uma das festas mais disputadas da cidade, na Zona Oeste, com ingressos que vão de 90 a 150 reais. Jovens chegam ao espaço amplo regido por música eletrônica em três ambientes, o maior deles ao ar livre. Logo na entrada, uma mesa exibe folhetos, camisinhas, caixas de autoteste de HIV e um kit para consumo de cocaína. A ideia do kit é ajudar as pessoas a não dividirem canudos e a limparem o local onde vão colocar o pó. Os folhetos trazem informações sobre consumo consciente de drogas sintéticas e cuidados em caso de interação com outras drogas.
Quem atende o público são os RDs. Em meio a tantas siglas como LSD, MDMA, MDA, NBOMe, NBOH, os RDs não são nada lisérgicos. RD é a sigla para os redutores de danos. Naquela noite, a piauí acompanhou o trabalho do Centro de Convivência É de Lei, organização paulistana focada na redução dos danos causados pelo consumo de drogas e no acolhimento aos usuários. A pedido dos organizadores da festa, o nome do evento será mantido em sigilo.
Os RDs se espalham por três ambientes do evento, atendendo aos pilares das políticas de redução de danos aplicadas em festas pelo país. São eles: insumo/informação, acolhimento, com apoio psicológico, e testagem para identificar a droga que está sendo usada. Quem já assistiu àqueles realities sobre fiscalização de aeroportos e fronteiras viu algo parecido: são aplicados reagentes químicos às drogas e, pela coloração apresentada, detecta-se o tipo da substância testada.
Alguns jovens fazem fila na porta da pequena área de testagem. Entram na sala com amigos, curiosos com o processo. São atendidos por outros jovens, farmacêuticos que conversam sobre a composição das drogas, raspam pequenas partes do produto, e vão explicando a coloração que aparece com a aplicação dos reagentes.
Foi assim que uma garota de cabelos descoloridos e capa de chuva soube que comprou MDA no lugar de MDMA. O MDMA, a bala, provoca euforia e sensação de prazer. É o ecstasy. O MDA é da mesma família, mas é mais alucinógeno.
“O problema de usar MDA achando que é MDMA é que o usuário pode querer ficar aumentando as doses, esperando chegar na onda de empatia, e correndo riscos. Até porque o MDA é mais potente e sua dose mais segura equivale a dois terços de um MDMA”, explica Ana Cristhina Sampaio Maluf, farmacêutica que coordena a testagem do projeto ResPire, do Centro de Convivência É de Lei.
Tina, como é conhecida, desenvolve seu trabalho de doutorado na Unicamp sobre redução de danos em contexto de festas. Se autorizada pelos usuários, leva raspas mínimas das drogas para serem testadas em equipamentos de alta tecnologia, como o espectrômetro de massa, em sua pesquisa na universidade. Com tablets, os jovens interessados respondem a um questionário sobre suas práticas de uso, as drogas que consomem e os efeitos esperados e inesperados que sentiram.
A garota de cabelos descoloridos e capa de chuva não é a única que não sabe o que está usando. O consumo de drogas sintéticas no Brasil habita uma zona cinzenta de desinformação. Um dos exemplos é a droga NBOMe, uma adulteração do LSD. Criada em 2003, a droga chegou ao Brasil no início dos anos 2010. Teve um boom por volta de 2013 e, desde a pandemia, tem aparecido cada vez mais nas apreensões policiais.
A piauí, em parceria com a agência Fiquem Sabendo, teve acesso a um informe inédito produzido pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Os dados que estão no informe, produzidos pela Polícia Científica de São Paulo, mostram que têm crescido o volume e a variação de drogas sintéticas nas análises de apreensões policiais no estado.
Os canabinoides sintéticos (que imitam os efeitos do THC) ainda são maioria, mas chama atenção o aumento das feniletilaminas, classe em que está o NBOMe. Elas representaram 16% do total de novas drogas sintéticas identificadas em 2022, ante 7,6% em 2020. Como o LSD, o NBOMe pode provocar até 12 horas de alucinações. É apresentado em micropontos, pedacinhos de papel embebidos com a substância e ingeridos pelo usuário. São os chamados selos, blotters ou doces. Por isso, o NBOMe é muitas vezes vendido como LSD. Os efeitos colaterais, no entanto, podem ser diferentes.
O aumento de NBOMe e das demais feniletilaminas tem sido observado pelos peritos ao menos desde 2020, quando um investimento em equipamentos passou a permitir a detecção dessas substâncias. Luiz Ferreira Neves Jr, perito criminal da Superintendência da Polícia Técnico-Científica do Estado de São Paulo, explica que as drogas sintéticas vão sendo adulteradas em todo o mundo para facilitar o tráfico, tentando burlar as listas internacionais de controle de drogas. No Brasil, a lista de substâncias controladas é produzida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“Se o traficante traz uma droga nova e ela é apreendida, pode alegar que não é droga, pois ainda não está contemplada na lista da Anvisa”, diz ele. Ana Cristhina Maluf afirma que, para contornar o surgimento das drogas adulteradas, a Anvisa trabalha com as “famílias” das substâncias, no caso, proibindo as feniletilaminas. Com isso, a lista brasileira consegue ser mais eficaz para alcançar as novas drogas.
“O NBOMe é uma droga que vem de fora do Brasil. Em um papel tamanho A4 cabem centenas de doses”, explica o investigador Alexandre Avilez, do Departamento Estadual de Investigações Sobre Narcóticos (Denarc-SP). Como o LSD, o NBOMe é vendido em micropontos. Cada um tem, em média, mais de 50 microgramas da substância. Mas essas são estimativas, uma vez que, por ser do mercado ilegal, as informações sobre procedência, composição e dosagem escapam de qualquer controle. A reportagem chegou a encontrar um folheto online em que o LSD é vendido em blotters de 120 a 550 ug (microgramas).
Essa zona cinzenta não atinge apenas os usuários do mercado ilegal. As autoridades policiais, por exemplo, têm dificuldade em informar qual o volume de droga sintética apreendida no país. Cada estado tem sua própria forma de computar esses dados, e sobram informações e dados desencontrados. Um exemplo disso foi vivido pela reportagem, que pediu, via Lei de Acesso à Informação (LAI), as quantidades identificadas de NBOMe nos últimos anos pela Polícia Científica do Estado de São Paulo.
Na primeira resposta para a Fiquem Sabendo e a piauí, o órgão afirmou que, no ano passado, identificou mais de 100 kg de NBOMe, um salto absurdo diante das apreensões de anos anteriores, que se resumiam a gramas. Vale lembrar que um micrograma (µg) é um miligrama dividido por mil. Ou um grama dividido por 1 milhão. Assim, uma apreensão anual de 100 kg seria um verdadeiro escândalo internacional. Por mais de dois meses, a reportagem insistiu que os dados estavam errados. O órgão só admitiu o problema com as informações enviadas em junho – quando então orientou a reportagem a usar os dados do Ministério da Justiça.
A falta de informações consolidadas de todo o país é um dos problemas para que se estabeleçam políticas de redução de danos, afirma Tina. A opinião é compartilhada por outros especialistas que atuam na ponta desse trabalho. A pesquisadora afirma, no entanto, que o governo federal instituiu o SAR (Subsistema de Alerta Rápido) em 2021, com o propósito de detectar novas substâncias ou novos padrões de oferta e análise de riscos.
Até agora foram emitidos cinco informes. O mais recente, divulgado em julho, tem como foco o avanço dos canabinoides sintéticos, conhecidos como “drogas K” (K2, K4, K9), spice, selva, cloud9, entre outros nomes. O SAR reúne os ministérios da Fazenda, Saúde e Justiça e Segurança Pública, com padrões internacionais de trabalho e apoio de órgãos da ONU.
O NBOMe está tão difundido entre os usuários que uma de suas principais características, o gosto amargo, é identificada como se fosse uma garantia de que se está consumindo o LSD legítimo, que na verdade não tem gosto algum. “‘Se a substância não amarga ela não é LSD’, é o que dizem nas festas. Mas o LSD não amarga, o que amarga é o NBOMe”, explica Fernando Beserra, doutor em psicologia com foco em suporte às crises induzidas por psicodélicos em contexto de festa.
Beserra é fundador da ONG Associação Psicodélica do Brasil, coordenando o Núcleo de Redução de Danos. Sua organização, dentro da política de redução de danos, faz a testagem de drogas em festas promovidas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, no mesmo estilo da É de Lei e de diversas entidades que promovem esse tipo de atendimento.
Fernando Beserra afirma que a presença de NBOMe nos eventos é cada vez maior, mas os usuários não fazem ideia de que estejam consumindo a droga no lugar do LSD. “Ele é de produção mais fácil porque é uma substância mais estável, enquanto o LSD é muito instável”, diz o psicólogo, explicando que a produção do LSD exige extrema precisão, o que encarece o produto.
“O grupo dos NBOMe tem esse efeito psicodélico, que se assemelha ao LSD, mas gerou um barateamento. Num mercado de proibição, em que você não tem controle sanitário nem de qualidade, pareceu interessante para as pessoas colocarem NBOMe no lugar do LSD por ser mais barato.”
Uma das comprovações de que o “LSD” ficou mais barato é que o preço do produto não tem acompanhado a inflação. “Ele acaba se tornando um LSD mais barato, mas que não é LSD. É uma mistura grande de substâncias. Qual a sua vantagem? Ele é muito mais barato.”
Apesar de ilegal, o mercado de venda dessas drogas se espalha pelas redes sociais e aplicativos de mensagem. Os nomes dos lisérgicos são como grifes que atestam “qualidade” do produto. Shiva, Melancia, Banana, Fly Pig estão entre os doces (LSD ou NBOMe) mais baratos. Um dos blotters mais potentes tem o nome de “Jesus”.
Nas redes sociais, os usuários compartilham experiências com os alucinógenos. A reportagem encontrou algumas queixas sobre pessoas que usaram NBOMe por engano. Os relatos indicam mais efeitos colaterais, como dores no corpo e no estômago. A resposta, explica Tina Maluf, está na composição das duas drogas. Embora sejam alucinógenas, são de famílias diferentes, e os NBOMe e nBOH atuam também no Sistema Nervoso Periférico.
Uma das pessoas que relataram experiências negativas com o NBOMe é o estudante de psicologia José Guilherme Medina, de 26 anos. Ele acredita ter usado um NBOMe em um Réveillon alguns anos atrás. “Eu achei que ia ter um AVC. Falei: ‘É, eu tenho um AVC, minha cabeça está dolorida demais. Está me dando uma sensação muito estranha.’ Minha amiga falou: ‘Sai dessa noia.’ Mas não era noia, eu estava sentindo isso fisicamente”, conta ele. Ele afirma ter usado a substância ainda em outra ocasião e, mais uma vez, sofreu com os efeitos.
Medina tem um perfil no TikTok onde fala sobre redução de danos. O nome é “caos sutil”. “[O perfil] é sobre como a gente se comporta na sociedade e como é cobrado por essa performance social, né?”, explica o estudante que, depois de formado, quer se aprofundar no estudo de psicodélicos.
Ele conta que se aproximou da redução de danos depois que começou a usar drogas e queria consumir as substâncias com segurança. “Comecei a prestar atenção na redução de danos porque eu sempre fui uma pessoa muito medrosa.” Seus vídeos já foram denunciados na plataforma, e ele já enfrentou haters, que acreditam que Medina estimula o consumo de drogas.
“Informação não é apologia, tá, queridas?”, começa ele em um de seus vídeos, que tem mais de 160 comentários. O perfil Caos Sutil tem 64 mil seguidores. Muitos procuram o estudante de psicologia em mensagens privadas. Para o futuro psicólogo, é um canal de escuta. Tem quem diga a ele que pretende estabelecer um plano de abstinência a partir de suas dicas. O próprio Medina tem planos de abandonar a cannabis, mas continuar usando as drogas psicodélicas. “Eu gosto de falar sobre redução de danos, quando você tem a capacidade de reflexão sobre si mesmo e sobre o outro. Você escolhe o que vai usar, quando e de que forma. Você acaba sendo mais responsável, mais autônomo. Então não adianta a gente falar que tem de proibir.”
Medina conta que os seguidores cresceram exponencialmente no TikTok e que o crescimento abrupto o assustou. A plataforma chegou a censurar três ou quatro vídeos. Um de seus temores iniciais era sobre sua imagem. Ele vive em uma cidade do interior de São Paulo e faz um trabalho para a prefeitura local. “Era um medo sobre a minha imagem, do que poderiam interpretar, tipo: ‘Nossa, um estudante de psicologia falando sobre drogas, que coisa feia.’ Mas, ao mesmo tempo, eu falo que, se não estiver bom pra mim num lugar eu vou para outro, eu vou para a Europa, eu vou para onde tenha políticas públicas. Falar sobre redução de danos é um puta tabu.”
No meio acadêmico, a redução de danos também é cercada de críticas e de preconceito. E não é de hoje. Em 2007, um dos projetos pioneiros nesse sentido sofreu um revés depois de críticas ao aporte financeiro da Fapesp ao programa Baladaboa (que pode ser lido como Balada Boa ou Bala da Boa), de redução de danos ao uso de ecstasy. As coordenadoras Stella Pereira de Almeida e Maria Teresa Araujo Silva tiveram as verbas suspensas pela Fapesp e foram alvo de inquérito no Ministério Público de SP. O inquérito tramitou até 2010, quando foi arquivado.
Depois de um extenso abaixo-assinado a favor das pesquisadoras, a Fapesp retomou o financiamento, mas, dois meses depois, não renovou o contrato, como é praxe na instituição. E o Baladaboa morreu, no silêncio.
Stella Pereira de Almeida foi defendida pelo advogado Cristiano Marona, um dos principais nomes nas discussões sobre descriminalização de drogas e garantias de redução de danos. Para ele, a situação não mudou muito nos últimos quinze anos. Ele afirma que grupos de redução de danos, como a Craco Resiste, enfrentam ondas de ataques e acusações de apologia ao consumo de drogas. O debate, para ele, também sofre interdição de grupos e políticos de direita, como um prefeito que recentemente proibiu a marcha da maconha em uma cidade do interior paulista.
Depois do sufoco com o inquérito, Stella acabou abandonando o estudo sobre ecstasy. “Eu acabei mesmo mudando de trabalho, sim. Foi muito trabalhoso e me desencantei um pouquinho”, contou. Hoje, ela trabalha com prevenção ao álcool, uma droga legalizada.
Matuzza Sankofa, coordenadora-geral do Centro de Convivência É de Lei e do projeto ResPira, acompanha de perto o trabalho da equipe na festa. “Para algumas pessoas, a redução de danos é a única possibilidade de permanecerem vivas”, diz ela, contando sua própria história à reportagem.
Foi um programa de redução de danos que a ajudou a deixar as ruas de Belo Horizonte, mais de dez anos atrás. Mulher trans, Matuzza saiu de casa, no interior de Minas, aos 13 anos. Sem muitas chances de futuro, acabou vivendo nas ruas da capital até ser acolhida por um programa local de redução de danos. Ali, descobriu que, mais do que se levantar, queria trabalhar no programa. Fortalecida, acabou se mudando para São Paulo. Hoje, coordena não só o Centro de Convivência É de Lei, como preside a Casa Chama, que atende e acolhe pessoas trans. “Sou uma mulher preta e trans. E hoje coordeno esses projetos. Eu nunca desisti”, diz, com orgulho.