Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Camille Lichotti (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
No fim de maio passado, Silvana Freitas viu o filho empalidecer depois de comer sozinho dois pacotes de macarrão instantâneo. Marcos André, de 10 anos, teve tontura, vomitou, reclamou de dores no abdômen e pediu que a mãe o levasse ao hospital. Não era a primeira vez que ele sentia aquela sensação nauseante. Quando a médica perguntou o que ele havia comido naquele dia, a resposta foi um cardápio repleto de produtos ultraprocessados e alimentos de alto teor calórico. O diagnóstico foi idêntico ao que o menino recebera tantas vezes antes. “A doutora falou que ele tinha que parar de comer besteira porque estava doente de comida”, lembra a mãe.
Silvana Freitas, de 32 anos, está desempregada e recebe 400 reais do Auxílio Brasil para pagar as contas, comprar comida e criar dois filhos. Como o dinheiro é curto, ela precisou voltar a morar na casa dos pais na periferia de Trizidela do Vale, no interior do Maranhão, num bairro onde há casas de taipa, casas de tijolo sem reboco e terrenos abandonados. Com o preço da comida nas alturas, a carne sumiu do prato da família. “Antes, com 7 reais de carne, dava para almoço, janta e eu ainda mandava para os meus pais. Hoje eu tenho até vergonha de ir com 7 reais pro açougue”, diz ela. A família substituiu a carne por salsicha – uma proteína ultraprocessada com alto teor de gordura – ou linguiça. Verduras e legumes, já escassos, são os primeiros a desaparecer quando o orçamento aperta. “Isso não enche a barriga, não. A gente procura comprar comida que dê para matar a fome e [que nos permita] ficar muito tempo sem comer de novo”, diz.
O filho mais novo de Silvana, Marcos André, enche a barriga com fritura, salgados, biscoitos e lanches. Às vezes o café da manhã do menino é pão, refrigerante e duas bombas – bolas de massa frita recheadas com queijo e presunto que ele compra na padaria no fim da rua. O salgado, criado na capital do Piauí e popular nas cidades do Maranhão, pode chegar a pesar 1 kg – e é, de fato, uma bomba calórica. Também é comum que ele troque a refeição por pacotes de macarrão instantâneo, que custam apenas 1,50 real numa venda ao lado da casa dos avós. Apesar de ainda ser uma criança, Marcos André já está com colesterol alto – o que leva ao acúmulo de gordura no interior dos vasos sanguíneos e aumenta o risco de complicações cardiovasculares. O menino, que usa roupas largas de adulto, muito maiores que seu tamanho, pesa quase 60 kg. Segundo a OMS, o peso ideal de uma criança com 10 anos completos é 31 kg.
Trizidela do Vale é um município pobre de 22 mil habitantes, segundo a estimativa do IBGE. A cidade tem quase 66% da população inscrita no cadastro único do governo federal para famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza. De acordo com informações da própria prefeitura, mais de 8 mil pessoas são beneficiárias do Auxílio Brasil. Na cidade, o índice de obesidade infantil (somando a moderada e a grave) mais do que triplicou: subiu de 4% em 2008 para 16% em 2021 entre as crianças de 5 a 10 anos.
Os dados foram compilados pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde. O Sisvan registra peso e altura de crianças que chegam à rede de atenção primária do sistema público de saúde, a maioria atendida por programas sociais. As informações se referem prioritariamente a crianças em situação de vulnerabilidade social, e, por isso, o sistema serve de guia para todas as estratégias e ações do Ministério da Saúde na área de alimentação e nutrição.
Como mostrou a primeira reportagem da série Má alimentação à brasileira, a proporção de crianças de 5 a 10 anos acima do peso explodiu nos últimos treze anos em todo o país: a taxa de crianças com obesidade subiu 70% de 2008 a 2021. Isso significa que praticamente uma em cada cinco crianças atendidas pelo sistema público de saúde está obesa. Ao mesmo tempo, a fome persiste: os números do Sisvan mostram que a taxa de crianças abaixo do peso adequado para a idade parou de cair em 2021, interrompendo a tendência de queda registrada desde 2008. E, em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. A cidade maranhense de Trizidela do Vale é um microcosmo desse cenário. Ao mesmo tempo que a obesidade infantil disparou, a fome persiste. Em 2021, o índice de crianças abaixo do peso, que vinha caindo nos últimos anos, voltou ao mesmo patamar de 2008. A fome deixou de ser o principal problema nutricional em Trizidela do Vale – mas não porque tenha deixado de existir. Agora, desnutrição e obesidade são problemas que se somam.
Na mesma rua onde mora o menino que enche a barriga com alimentos supercalóricos, uma família vive em insegurança alimentar grave. A desempregada Verônica Coelho, de 27 anos, mora algumas casas adiante, na mesma calçada, com as filhas de 9, 6 e 4 anos. O local onde ela mora é na verdade uma adaptação nos fundos da casa da mãe. Sala e cozinha dividem o mesmo ambiente, separados por um lençol, e o banheiro é improvisado do lado de fora. Coelho também recebe os 400 reais do Auxílio Brasil, que não são suficientes para pagar todas as despesas. Quando vai ao mercado, ela só consegue comprar três pacotes de leite em pó, que custam 7 reais a unidade. Mas isso só é suficiente para duas semanas. No último mês de junho, as meninas ficaram o resto do mês sem beber leite. “Elas pediam e eu não tinha pra dar”, conta a mãe.
A comida sempre acaba antes que Coelho consiga dinheiro para comprar mais. No fim do mês passado, por exemplo, ela só tinha feijão e café em casa. As crianças só não passaram fome porque comeram na escola e pediram comida na casa da avó. Mas Coelho está acostumada a passar os últimos dias do mês só bebendo café. Segundo ela, isso espanta a fome. “Eu tenho vergonha de pedir pra comer na minha mãe e fico pensando que a comida lá pode acabar. Não dá para ficar nós duas sem nada”, explica. “Às vezes eu pergunto pra minha mãe por que a nossa vida é tão ruim. E ela responde que tá assim para todo mundo aqui.”
Tanto a fome quanto a crescente epidemia de obesidade atingem em cheio a população mais vulnerável hoje porque os dois fenômenos têm as mesmas causas: pobreza, desigualdade e má alimentação. Graças à alta prevalência de obesidade infantil, a cidade de Trizidela foi um dos 1.320 municípios brasileiros a entrar na Estratégia Nacional de Prevenção e Atenção à Obesidade Infantil (Proteja), lançada em agosto de 2021 pelo Ministério da Saúde. Ao todo, a pasta vai transferir 32 milhões de reais para que os municípios coloquem em prática ações de vigilância. Quando a piauí esteve na cidade, no fim de junho, o município estava na fase de levantamento de dados.
Crianças obesas têm mais chance de se tornarem adultos obesos – e podem adquirir ao longo da vida uma série de doenças relacionadas ao excesso de peso, como hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares. E quanto mais precoce o início da obesidade, maior é o impacto na saúde do indivíduo. Enquanto a obesidade infantil traz uma nova carga de vulnerabilidade aos mais pobres, o Brasil caminha para ter uma população doente no futuro. “A consequência disso é a mortalidade prematura, aumento de gastos na área da saúde e sobrecarga do sistema hospitalar”, explica a nutricionista Daniela Neri, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
Um grupo de pesquisadores coordenado pelo pesquisador Leandro Rezende, do departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo, estimou que só em 2019 foram gastos mais de 1,4 bilhão de reais com doenças crônicas não transmissíveis relacionadas ao excesso de peso no Brasil. Naquele ano houve 128 mil mortes, 496 mil hospitalizações e 32 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados pelo SUS atribuíveis ao sobrepeso e obesidade. E a tendência é que esse quadro piore nos próximos anos.
Mas antes de se tornarem adultos doentes, crianças com excesso de peso estão começando a ter a qualidade de vida prejudicada ainda na infância. Nos últimos anos, a endocrinologista Maria Edna de Melo, chefe da Liga de Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da USP, começou a notar uma diferença no padrão de atendimento de crianças com sobrepeso: elas chegam ao hospital mais jovens e com quadros cada vez mais graves. Também se tornou assustadoramente comum atender meninas e meninos que têm colesterol alto, hipertensão e diabetes antes de chegar à adolescência. “Eu nunca tinha visto isso antes”, diz a especialista. “O mais triste é que essas crianças não tiveram praticamente nenhum tempo de vida saudável.”
Em 2021, o Brasil registrou número recorde de internações de crianças de até 14 anos por causa de diabetes na rede pública de saúde. Segundo dados do Ministério da Saúde, só na faixa etária de 5 a 9 anos foram mais de 2 mil internações – 22% a mais que no ano anterior. O tipo mais comum de diabetes está relacionado ao excesso de peso e sedentarismo. Enquanto a tendência geral foi de queda na quantidade de internações por pela doença, entre as crianças essa é uma curva que só cresce.
Silvana Freitas conta que o filho, Marcos André, o menino que nem entrou na adolescência e já está com o colesterol alto, tem peso acima do ideal desde muito novo. Mas ela sempre viu nisso um sinal de saúde. Esse tipo de pensamento é uma espécie de herança cultural entre as pessoas que já passaram fome, como a própria Silvana. Durante a infância, na mesma Trizidela do Vale, ela chegou a dividir dois ovos com os nove irmãos – porque não havia mais o que comer. Naquela época, diz ela, os salgadinhos de pacote baratos não ficavam amontoados nas prateleiras do mercado e biscoito era coisa de criança rica. Certa vez, Freitas e os irmãos precisaram catar mangas no vizinho para enganar a fome de um dia inteiro. Por isso, diz ela, o medo era que os filhos crescessem muito magros e desnutridos.
Agora Freitas teme pela saúde do filho mais novo. A família tem histórico de diabetes – uma doença relacionada ao excesso de peso. O pai do menino, que também é obeso, toma remédios contra a doença e teve que parar de trabalhar por complicações. “Eu fico pensando que isso pode dar no meu filho também, então tenho que ficar controlando”, diz. Mas as idas ao hospital e as orientações dos médicos não impedem o garoto de continuar comendo os salgadinhos e pacotes de macarrão instantâneo. “Ele só faz uma pausa quando sente essas gasturas e vai para o hospital. Mas assim que ele melhora, volta a comer tudo de novo”, conta a mãe.
Marcos André precisa dar apenas alguns passos para chegar ao mercadinho mais próximo de casa. A venda improvisada na varanda do vizinho é um oásis para as crianças do bairro, que passam a maior parte do tempo livre na rua. O balcão é repleto de potes de bala, doces e bombons. Mas ao eleger seu produto favorito, Marcos André aponta para um salgadinho de pacote sabor carne seca que custa 50 centavos. Um único pacote desses contém praticamente toda a quantidade de sódio que a OMS recomenda para crianças em um dia. O salgado de milho, produzido em Imperatriz, no Maranhão, a 333 km de Trizidela do Vale, é a única marca de biscoito oferecida na pequena venda.
O refrigerante que Marcos compra, que também é produzido no estado, é a cópia da cópia da marca mais famosa – o que lhe rende a alcunha de “espoca-bucho”, porque só serve mesmo para fazer engordar. A garrafinha de 250 ml custa 1 real. Doce e barata, a bebida é campeã de vendas entre as crianças, diz o dono da venda, um senhor de cabelo grisalho e óculos grossos. Mercadinhos desse tipo se espalham por toda a cidade de Trizidela, até nas ruas sem calçamento da área rural. É praticamente impossível encontrar as grandes marcas de biscoito nessas vendas. Mas nas prateleiras sempre há macarrão instantâneo – uma febre entre as crianças da cidade –, refrigerantes “espoca-bucho” e salgadinhos de pacote mais baratos que frutas.
De carne seca, o salgadinho favorito de Marcos só tem o aroma. No verso da embalagem, em letras miúdas, estão listados os ingredientes: grits [uma espécie de papa] de milho, gordura vegetal hidrogenada, sal refinado iodado e glutamato monossódico – um intensificador de sabor responsável por uma explosão no paladar – além de corante de urucum. O menino de 10 anos não sabe o que significa nenhuma dessas coisas – muito menos que o consumo exagerado de glutamato monossódico pode elevar os níveis de estresse e agitação porque essa substância se comporta como um neurotransmissor no cérebro. “Aqui na rua todas as crianças são viciadas nessas pipocas”, diz Silvana Freitas, referindo-se ao salgadinho de pacote.
Marcos diz que quando come dois pacotes se sente um pouco “pesado”, mas às vezes troca o almoço pelo petisco porque é gostoso. Os ultraprocessados sequer são considerados comida de verdade – o Guia Alimentar para a População Brasileira classifica como “formulações industriais” –, mas são ingrediente central do cardápio de má nutrição das crianças brasileiras. E o maior perigo desses produtos está justamente na dificuldade de parar de consumi-los. Isso porque os ultraprocessados são basicamente uma mistura de sal, açúcar, gordura e conservantes que rapidamente ativam o sistema de recompensa do cérebro, explica a endocrinologista Maria Edna de Melo. “Depois que o corpo se acostuma a isso, a pessoa vai querer comer sempre e cada vez mais. É muito difícil negociar com esses alimentos hiper palatáveis porque não existe racionalidade na hora de comê-los, é quase um reflexo”, diz ela.
Os aditivos industriais usados para tornar os ultraprocessados mais palatáveis também os tornam mais baratos, práticos e acessíveis – uma combinação perigosa num país empobrecido e cada vez mais faminto. “As pessoas mais pobres estão comendo comida de baixa qualidade porque é mais barato”, diz o economista Arnoldo de Campos, ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Um levantamento feito por ele mostra que, das 20 maiores altas de preços acumuladas este ano até o mês de abril, 19 foram de alimentos in natura.
Na casa de Silvana Freitas, em Trizidela do Vale, não há variedade de frutas: ela só compra quando o dinheiro sobra, o que dificilmente acontece. Legumes e verduras, que as crianças já não costumavam comer antes, agora se tornaram um luxo praticamente inacessível. Com o valor do Auxílio, Freitas diz que agora mal consegue comprar o básico. Mas quando pensa em uma refeição saudável, o prato obrigatoriamente tem uma colher de arroz, feijão, carne assada e salada. “O que impede de fazer é o dinheiro mesmo”, justifica ela.
Relatório publicado pelo Unicef no final de 2021 revelou um alto consumo de ultraprocessados entre crianças integrantes do programa Bolsa Família (substituído em novembro passado pelo Auxílio Brasil). Em metade dos domicílios, as crianças com menos de 6 anos consomem salgadinho de pacote, macarrão instantâneo e refrigerante de uma a três vezes por semana. O estudo concluiu que a vulnerabilidade socioeconômica das famílias é um fator que influencia no consumo de ultraprocessados, e a maior dificuldade para melhorar os hábitos alimentares foi o alto custo dos alimentos saudáveis.
Além das doenças crônicas relacionadas ao excesso de peso, muitas crianças com obesidade – incluindo os níveis mais severos – não escapam da desnutrição. Não porque elas não têm o que comer, mas porque as dietas baseadas majoritariamente em produtos ultraprocessados costumam ser pobres em nutrientes essenciais. “As pessoas sentem uma falsa sensação de saciedade porque na verdade não estão se alimentando quando comem esses produtos”, diz a endocrinologista Zuleika Halpern, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
Isso aparece na ponta do sistema de saúde de Trizidela do Vale, nos postos espalhados pela região. “Muitas crianças obesas chegam aqui com um quadro grave de deficiência nutricional”, relata a enfermeira Isabel Brandão, responsável pela Unidade Básica de Saúde do bairro Jerusalém, próximo ao Centro da cidade. “Geralmente a criança já está pálida, com as mucosas dos olhos embranquecidas e a palma da mão amarelada. Os pais acham que elas são saudáveis porque estão gordinhas, mas elas têm deficiência de ferro, de vitaminas B, B12, B6.” É o que os especialistas chamam de “fome oculta”. Esses são nutrientes facilmente adquiridos com uma alimentação saudável, mas as crianças não conseguem ter acesso a eles por causa das dietas pobres.
A enfermeira conta que os pais procuram o serviço de saúde quando os filhos com sobrepeso reclamam de cansaço e já estão com a imunidade baixa. Alguns até pedem suplementos vitamínicos no posto de saúde para introduzir nutrientes na rotina das crianças. As vitaminas são as mesmas usadas no atendimento de pessoas desnutridas, em situação de insegurança alimentar grave, ou doentes. “Eles querem substituir a alimentação pela vitamina que eu dou no posto, mas isso não pode substituir a comida. A criança tem que comer carne, arroz, feijão, verdura, fruta, leite e ovo”, diz a enfermeira.
Mas diante do cenário catastrófico de crianças obesas que acumulam doenças, as enfermeiras distribuem sachês de micronutrientes em pó para reverter os casos de desnutrição. Cada pacotinho contém quinze micronutrientes e é adicionado na refeição, sem alterar o gosto ou a cor da comida. “A gente tenta suprir a carência dessa forma porque as crianças comem menos arroz e feijão que o necessário. Elas comem mais é besteira mesmo”, diz Brandão.
A enfermeira concorda que a obesidade infantil é atualmente o principal problema de saúde entre as crianças de Trizidela do Vale. Sentada à mesa de sua sala, ela se estica para alcançar algumas folhas dispostas no escaninho. É o último relatório de acompanhamento de sua equipe de saúde, uma das dez que atuam em Trizidela. “Na nossa região temos 8 crianças abaixo do peso ideal. As obesas são 45”, diz ela, lendo as páginas. Mesmo que Brandão tente, com os outros agentes de saúde, organizar campanhas de conscientização para uma alimentação melhor, ela reconhece que é quase impossível disputar com o preço, o sabor e o marketing dos alimentos ultraprocessados. “A gente tá enxugando gelo”, lamenta.