O guarda municipal Marcelo Aloizio de Arruda foi atacado a tiros no dia exato em que comemorava 50 anos. Morreu horas depois– num crime anunciado por um bolsonarista na festa de aniversário da vítima. Na manhã de sábado (9), Arruda acordou feliz, ansioso por reunir os amigos e celebrar a data. Pouco depois das dez da manhã, ele e a mulher – a policial civil Pamela Suellen Silva – foram recebidos na pousada do amigo André Alliana, que preparou um café da manhã ao ar livre, com frutas, pães e frios. De lá, no fim da manhã, Arruda voltou para casa para cuidar dos preparativos para a festa. Reconhecido pela família e amigos como exímio cozinheiro, o aniversariante preparou para servir na comemoração um entrevero, uma espécie de churrasco feito no tacho, com um mix de cortes diferentes – nesse caso, ele serviria carnes suína, bovina e de frango.
Como tinha sobrado “um dinheirinho”, Arruda teve a ideia de fazer a festa temática. Chegou ao salão da Associação Recreativa Esportiva de Segurança Física Itaipu pouco depois das 15 horas, usando uma camiseta estampada com a foto de Lula. Preparou um arco com balões vermelhos, que circundava um painel com o nome e a idade do aniversariante. A família também tinha encomendado um bolo decorado com a estrela do PT, combinando com os adereços da mesa. À noite, ao longo da festa, o guarda municipal ganhou de um dos convidados uma toalha com a imagem do ex-presidente e a pendurou no painel, completando o cenário. Entre os convidados havia não só apoiadores de Lula, mas muitos bolsonaristas – inclusive o padrinho de um dos filhos do aniversariante.
“Ele era contra o ódio e a intolerância. E ele queria que isso circulasse. Fazia questão de se manifestar. Por isso, teve a ideia de fazer a festa temática”, disse Silva à piauí. “O Marcelo [Arruda] era um sonhador, um lutador, um idealista, que queria mudar o mundo a sua volta”, definiu, sem conseguir conter as lágrimas. Arruda era tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu e nas eleições de 2020 foi candidato a vice-prefeito, mas a chapa não foi eleita. Ele também era diretor do Sindicato dos Servidores Municipais de Foz do Iguaçu.
Nascido na Favela do Cemitério, em Foz do Iguaçu, Arruda era o sexto dos sete filhos de um servente e de uma diarista. De origem humilde, ainda criança começou a trabalhar como engraxate, a fim de ajudar nas despesas domésticas. “Trabalhou desde cedo pra ajudar os pais a botarem comida em casa. Ele teve uma infância humilde, difícil, mas não caiu para o lado errado. Sempre apostou nos estudos”, disse Silva. Há 28 anos, Arruda passou a integrar a primeira turma da Guarda Municipal (GM), depois de ter sido aprovado em um concurso. Pouco depois, paralelamente aos serviços na GM, formou-se em biologia. Segundo a viúva, a família vivia modestamente e, recentemente, vinha “apertando o cinto” por causa de dificuldades financeiras. Apesar disso, no aspecto familiar ele estava se sentindo realizado com o nascimento de um novo filho, que completou 40 dias no último fim de semana. Além dele, Arruda tem uma filha de seis anos, com Silva, e dois filhos de um casamento anterior.
“O Marcelo [Arruda] estava muito feliz. Sexta-feira [dia 8], tinha saído uma progressão de carreira para a turma dele, da Guarda Municipal, que tinha sido uma luta de anos da categoria. Ele era muito tranquilo. A gente sempre brincava que estava na pindaíba. Ele sempre falava, com aquele jeito dele: ‘Vai dar tudo certo'”, contou Silva. “Por muitos anos, não conseguimos tirar férias em janeiro. Tínhamos, enfim, marcado para o próximo ano. Íamos viajar. A ideia era colocar as duas ‘crias’ no carro e sair por aí, passeando. Essa tragédia acabou com tudo”, lamentou.
Até as 22h30, ninguém diria que haveria uma tragédia na festa. Após cantar os parabéns ao lado de três de seus filhos, Arruda puxou um coro reconhecido entre eleitores do Partido dos Trabalhadores (PT): “Olê, olê, olá, Lula, Lula!” Animado, o aniversariante posou para fotos e fez brincadeiras com os amigos bolsonaristas presentes na celebração. O clima começou a mudar por volta das 23 horas, quando ouviram-se gritos, como “Aqui é Bolsonaro!” e “Mito!”, vindos de fora. Arruda saiu, pensando se tratar de um convidado, mas se deparou com o policial penal Jorge Guaranho, que passou a xingá-lo.
“O Marcelo [Arruda] disse a ele: ‘Vai embora. Aqui é uma festa de família.’ Ele [Guaranho] sacou a arma e apontou pela janela do carro, gritando: ‘Olha o que eu tenho pra vocês, seus vagabundos!’ Nervoso, o Marcelo jogou um copo plástico de chope nele e voltou para dentro. Nisso, a mulher dele [de Guaranho] começou a gritar para ele parar, para irem embora. Eles estavam com um bebê na cadeirinha. Ele gritou: ‘Eu vou voltar e matar todo mundo.’ E arrancou com o carro”, relatou Alliana, uma das testemunhas ouvidas pela polícia. Segundo familiares e convidados, Arruda e Guaranho não se conheciam.
Quando voltou para o salão, o aniversariante relatou aos convidados o que tinha acontecido. Nesse instante, temendo que Guaranho voltasse ao local, Arruda foi ao carro e pegou sua arma, colocando-a na cintura. Cerca de 20 minutos depois, o bolsonarista retornou sozinho, já com uma pistola em punho. Imagens gravadas por uma das câmeras de segurança da associação mostram Guaranho invadindo o salão, abrindo fogo contra Arruda. O aniversariante foi atingido por um tiro na perna e caiu. Com a vítima no chão, o invasor fez mais um disparo, que acertou Arruda no peito. Silva investiu contra o atirador e o empurrou. Mesmo baleado, Arruda conseguiu sacar a arma e revidou, atirando inúmeras vezes no invasor. Segundo testemunhas, o bolsonarista foi atingido por pelo menos três tiros. A Polícia Civil recolheu quatro estojos de projéteis disparados por Guaranho e 16 estojos da arma de Arruda.
“O Marcelo [Arruda] foi um herói. Ele evitou uma tragédia maior, uma chacina. Foi terrível, todo mundo pulando no chão, tentando se esconder. O Marcelo era um dos caras mais sossegados que conheci. Nunca o vi ter uma briga, nunca vi dar uma carteirada”, disse Alliana. “O assassino ficou colérico quando viu a toalha do Lula. As pessoas estão doentes. Se acham no direito de jogar merda, de jogar bomba e, agora, de matar as pessoas que pensam diferente”, acrescentou.
Arruda foi hospitalizado, mas morreu durante a madrugada do último domingo (10). Guaranho foi levado ao Hospital Municipal Padre Germano Lauck. Pela manhã, as autoridades chegaram a divulgar que o policial penal também teria morrido. Procurado pela piauí, o hospital confirmou, no fim da tarde, que Guaranho continuava internado, mas que não poderia detalhar o estado de saúde do paciente. À Polícia Civil, a unidade informou que Guaranho está em estado grave. Segundo o delegado Carlos Eduardo Pezzette Loro, que estava de plantão e atendeu a ocorrência, o atirador será indiciado por homicídio qualificado.
“Não tenho dúvidas de que se trata de um crime com motivação política, cometido em meio a esse ambiente de polarização política e com discurso de ódio. O indiciado é um bolsonarista bastante ativo nas redes. Temos um presidente que inflama a população e favorece esse tipo de ocorrência”, disse Pezzette Loro. “É algo que não imaginávamos ver em Foz. Nem nas manifestações anteriores tivemos ocorrências, nada relevante. Foi o primeiro crime político”, observou. Em seu perfil no Twitter, Guaranho escreve: “Policial Penal Federal, Conservador, Cristão, Bolsonaro Presidente, armas = defesa, Não ao Aborto, Não às Drogas”[sic]. Ele postava quase exclusivamente conteúdos políticos. Há uma foto dele ao lado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Na tarde de domingo, enquanto aguardava a liberação do corpo do marido, a viúva tentava entender a tragédia. Por um lado, clamava por respeito ao longo da campanha eleitoral. Por outro, não deixou de vincular o crime ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e de bradar por justiça. “Só peço que as pessoas se cuidem, que sejam mais tolerantes e que respeitem as diferenças. Ninguém pode sair atirando em quem pensa diferente”, disse. “É uma tragédia que tem o dedo do presidente. Ele estimula a violência, o ódio e faz política para que as coisas aconteçam dessa forma, enquanto o país sofre com fome e desemprego. Quanto ao assassino, ele acabou com duas famílias. Você me desculpe pela expressão, mas eu espero que ele vá para o inferno”, complementou.
Dados do Grupo de Investigação Eleitoral (Giel), da Unirio, mostram a escalada de casos de violência ocorridos por motivação política. De janeiro de 2019 a março de 2022, o país somou 1.108 ocorrências. No primeiro trimestre deste ano – o período mais recente apurado –, foram registrados 113 novos casos, o que representa um aumento de 27% em relação ao mesmo trimestre do ano anterior. No mesmo período de 2020, foram 20 casos e, no de 2019, 20 casos. Este ano, os atos de violência ocorreram em 23 estados. Segundo o boletim do Giel, 46% dos casos se referem a ameaças a lideranças. Entre os 113 casos do primeiro trimestre de 2022, o PT foi quem mais sofreu com os ataques: seus integrantes foram vítimas em 10 casos. O Giel também identificou 21 homicídios – o que corresponde a 18,6% das ocorrências.
O caso gerou comoção imediata. Ainda pela manhã, Lula se manifestou por meio de sua conta do Twitter, lamentando o incidente. “Uma pessoa, por intolerância, ameaçou e depois atirou nele [em Arruda], que se defendeu e evitou uma tragédia maior. (…) Meus sentimentos e solidariedade aos familiares, amigos e companheiros de Marcelo Arruda”, escreveu o ex-presidente. Na ocasião, a informação oficial era de que Guaranho também tinha morrido. “Pelos relatos que tenho, Guaranho não ouviu os apelos de sua família para que seguisse com a sua vida. Precisamos de democracia, diálogo, tolerância e paz”, concluiu Lula.
Bolsonaro passou o dia em silêncio e só abordou o crime no início da noite, também pelo Twitter. Em nenhum momento o presidente diz lamentar a morte de Arruda. Bolsonaro fez menção ao incidente ocorrido em setembro de 2018, às vésperas da eleição, em que foi vítima de uma facada, imputando atos de violência a seus opositores. “Independente das apurações, republico essa mensagem de 2018: Dispensamos qualquer tipo de apoio de quem pratica violência contra opositores. A esse tipo de gente, peço que por coerência mude de lado e apoie a esquerda, que acumula um histórico inegável de episódios violentos”, escreveu.
À piauí, o secretário de Estado de Segurança Pública, Wagner Mesquita, informou, na manhã desta segunda-feira (11), que o inquérito do assassinato de Arruda passou a ser presidido pela delegada Camila Cecconello, chefe da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), de Curitiba. Ela já está em Foz do Iguaçu e vai liderar uma força-tarefa, reforçada com uma equipe de investigadores da DHPP. Cecconello foi designada para o caso depois de terem viralizado postagens feitas pela delegada Iane Cardoso, da Delegacia de Homicídios de Foz do Iguaçu. Em sua conta no Facebook, Cardoso postou uma montagem, em que se lê: “Petista quando não está mentindo está roubando ou cuspindo…” Em outra postagem, a delegada usou as hashtags #foraDilma, #foraLula, #foraPT. Também na manhã desta segunda, o Ministério Público do Paraná emitiu nota afirmando que vai acompanhar as investigações por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). A Justiça decretou a prisão preventiva de Guaranho.
No fim da manhã desta segunda-feira, Bolsonaro recebeu apoiadores na área externa do Palácio do Planalto, no chamado “cercadinho”. Mais uma vez, o presidente não manifestou pesar pela morte de Arruda e voltou a mencionar o episódio da facada. “Vocês viram o que aconteceu. [Disseram] ‘É bolsonarista, não sei o que lá…’ Mas ninguém fala que o Adélio é filiado ao Psol”, disse, em referência a Adélio Bispo, preso como autor do ataque contra Bolsonaro. O presidente voltou a defender a política de armas. “Entendo que arma é liberdade, é segurança e é a garantia de uma nação também. O maior exército do mundo é o americano, que são seus Cacs [Colecionadores, Atiradores e Caçadores] também, né. Aqui, estamos chegando a 700 mil Cacs. Em três anos e meio, dobramos o número de Cacs no Brasil”, afirmou.
Marcelo Aloizio de Arruda foi velado nesta segunda-feira (11) na quadra do ginásio de esportes Sebastião Flores, no Centro de Foz do Iguaçu. O corpo dele trajava o uniforme da Guarda Municipal. Sobre o caixão, a família colocou duas bandeiras: uma da GM, outra do PT. Em clima de comoção, centenas de pessoas passaram pelo velório para se despedir de Arruda, entre os quais a deputada federal e presidente do PT Gleisi Hoffmann, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), o prefeito de Foz do Iguaçu Chico Brasileiro, além de vereadores e outras lideranças locais e regionais. Os amigos e parentes fizeram orações conduzidas por um padre. Arruda era católico. O enterro está marcado para a tarde desta segunda-feira, no cemitério Jardim São Paulo.
“Tem muita, muita gente vindo para se despedir do Marcelo [Arruda]. Eu nunca vi tantas coroas de flores. Deve ter mais de cinquenta. Está todo mundo consternado”, disse André Alliana. “A família fez questão de colocar as bandeiras que simbolizavam duas das paixões dele: a Guarda e o PT. O Marcelo [Arruda], infelizmente, morreu por causa do ódio contra algo em que ele acreditava”, definiu.