Diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantan, Ricardo Palacios liderou os estudos da fase 3 da CoronaVac realizados com 12,7 mil voluntários em dezesseis centros de pesquisa no Brasil e que resultaram na autorização do uso emergencial da vacina chinesa pela Anvisa em janeiro. Desde então, mais de 25,6 milhões de doses da CoronaVac foram fornecidas ao Ministério da Saúde para imunização contra Covid-19 em todo o país. Palacios também é responsável pela pesquisa clínica com quase toda a população adulta do município de Serrana, no interior paulista, que está sendo vacinada para testar a redução da transmissão do novo coronavírus. No relato a seguir, o médico colombiano de 47 anos explica seu trabalho e fala dos esforços para entregar os dados que faltam à Anvisa para o registro definitivo da vacina mais aplicada no país até agora.
(Em depoimento a Lia Hama)
Talvez vocês tenham ouvido falar muito nos últimos meses dos cientistas do Instituto Butantan. Eu sou um deles. Meu trabalho há quase dez anos no instituto é o desenvolvimento clínico de produtos. Até pouco tempo atrás, esse era um trabalho quase invisível. Mas, com as notícias dos ensaios clínicos de vacinas contra Covid-19 nos meios de comunicação, o público veio a acompanhar de perto nosso dia a dia nos testes da CoronaVac, que desenvolvemos em conjunto com a empresa chinesa Sinovac.
Mas, afinal, o que é meu trabalho? Quando vemos que algum produto é promissor – no caso de uma vacina, quando os testes de laboratório apontam que ela oferece proteção contra uma doença –, o grupo de desenvolvimento clínico entra em campo para imaginar como será o produto aplicado em seres humanos.
Nosso trabalho começa com uma espécie de sessão de “bola de cristal” para imaginar o futuro. Pegamos as informações que saem dos laboratórios de pesquisa – por exemplo, de experimentos com animais – e imaginamos como será a bula do produto a ser desenvolvido: para que serve, como será administrado, quantas doses serão necessárias, qual o intervalo entre elas, para que faixas etárias é indicado, quais são as possíveis reações adversas.
A partir disso, tentamos gerar informação científica que sustente os dizeres da bula. Desenhamos o plano de desenvolvimento clínico: que estudos são necessários para gerar evidência científica daquilo que está na bula? O que vou avaliar em cada um deles? Quantas pessoas vão participar? E, ao mesmo tempo, construímos o marco conceitual sobre a doença: como a infecção acontece no organismo, como se dá a resposta imunológica, como a doença é transmitida dentro da comunidade etc. Juntamos as informações do marco conceitual com as da bula imaginada e, a partir disso, montamos os estudos clínicos.
No acordo entre o Instituto Butantan e a Sinovac, os estudos realizados na China eram de responsabilidade deles. Por exemplo, os iniciais de fase 1 e 2 em adultos, idosos e crianças. Já os realizados no Brasil são liderados pelo Butantan, e eu, como diretor médico de Pesquisa Clínica, sou o responsável por dirigir a equipe que elabora e coordena esses estudos. No caso da fase 3, o trabalho conjunto das equipes do Butantan com os dezesseis centros de pesquisa no Brasil resultou num dos estudos mais rápidos que já conduzimos. Com a ajuda de quase 12,7 mil participantes, demonstramos que a CoronaVac reduz a intensidade clínica da Covid-19. Quem não toma a vacina e é infectado pelo vírus tem cerca de 2 vezes mais chances de contrair a doença, inclusive os casos mais leves, e 4,5 vezes mais chances de contrair uma forma grave, que precise de assistência, seja ambulatorial ou hospitalar.
Os resultados desse estudo brasileiro tiveram um grande impacto. Esses dados gerados pelo Instituto Butantan foram rigorosamente avaliados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e outras agências regulatórias e fundamentaram a aprovação de uso emergencial da CoronaVac em vários países. Apenas 180 dias se passaram entre a primeira vacinação no estudo e a primeira vacinação de uso emergencial no Brasil. Hoje, essa é a vacina mais usada em programas de imunização do Brasil e de outros países da América Latina, além de vários países asiáticos, e já foi administrada em milhões de pessoas.
Ainda temos enormes desafios em relação à Covid-19. Encontrar marcadores que indiquem se uma pessoa fica protegida após a imunização é um deles. A maior parte dos exames para detectar a resposta imune contra o novo coronavírus não serve como indicador da proteção contra a doença. Por isso estamos trabalhando com a colaboração de colegas dentro e fora do Brasil na procura desses marcadores e esperamos entregar em breve os resultados dessas pesquisas à Anvisa. Mas não há garantia de que teremos o teste que correlacione com a proteção. Mesmo assim, mais do que qualquer teste laboratorial, é a eficácia em prevenir a doença, em particular os casos graves, o fator mais importante para respaldar o uso da vacina.
Há muitos meses que nossa equipe perdeu o limite de horários de trabalho, os finais de semana e as férias. Trabalhamos o quanto é necessário até o limite de nossas forças e das queixas de nossas famílias. Esse esforço é recompensado quando recebemos as fotos da vacinação de nossos colegas, dos pais de nossos amigos, das pessoas morando em regiões afastadas, como aldeias indígenas e comunidades quilombolas. Fica sempre a dúvida: mas será que a vacina está dando certo? E aí vêm as estatísticas das autoridades de saúde, não só do Brasil, mas de outros países, mostrando a tendência de queda dos casos graves de Covid-19 entre aqueles que foram vacinados primeiro. Essa tendência acontece até nos mais idosos em regiões em que a temida variante P.1 do vírus está cobrando cada dia mais vítimas. Aí penso que mais netos poderão escutar as histórias de seus avós, graças ao nosso trabalho.
Para poder ir além e avaliar de forma mais precisa como a vacina protege de forma coletiva, estamos fazendo um estudo na cidade de Serrana, no interior de São Paulo. No começo, o mantivemos em segredo, mesmo dentro do Butantan, e demos o codinome de “Projeto S”, que conservamos até hoje. Queremos entender qual é a efetividade da vacina na diminuição da transmissão do vírus em uma população. É possível controlar mais facilmente esse tipo de doença por transmissão respiratória em lugares que são ilhas, como Nova Zelândia, Austrália, Taiwan e até mesmo Israel, espécie de ilha geopolítica no Oriente Médio.
Serrana, no entanto, é uma “cidade-dormitório”, boa parte de seus moradores trabalham em Ribeirão Preto. Isso é interessante para entendermos como a vacina consegue resistir à constante exposição das pessoas ao vírus através do contato com municípios ao redor. Esse trabalho, em parceria com a USP Ribeirão Preto, coincide com a chegada da variante P.1, conhecida por ser mais transmissível e que já predomina na região.
O que já ficou demonstrado é o alto nível de aceitabilidade. Houve muitos receios sobre se a população estaria disposta a aceitar a CoronaVac após tantos questionamentos infundados por causa da origem chinesa da vacina. E o que ficou provado é que as pessoas estão ansiosas para serem imunizadas. Um total de 27.621 voluntários receberam a primeira dose, o que representa 97,3% da população-alvo da vacinação no município, formada pelos moradores acima de 18 anos, com exceção de gestantes, lactantes e pessoas com comorbidades.
Numa situação de emergência de saúde pública como a que enfrentamos hoje, é fundamental entender como funciona a proteção coletiva pela vacina com a epidemia em curso. Para isso, é preciso realizar estudos como o de Serrana. Só com esse tipo de informação podemos cogitar abrir mão, no futuro, de outras medidas de proteção contra a Covid-19, como o distanciamento social ou o uso de máscaras. O estudo teve início em fevereiro, e a nossa expectativa é que, em meados de maio, saiam os primeiros resultados.
Nós, cientistas do mundo todo, continuamos trabalhando para conter esta pandemia. Não temos a expectativa de erradicar esse novo coronavírus, mas de reduzir seu impacto a níveis que permitam que possamos voltar a frequentar a casa de nossos amigos e familiares, conhecer novas pessoas e abraçar uns aos outros. A gente também sente falta dessa proximidade, mas ainda precisamos de um pouco mais de tempo e da colaboração de todos para reduzir o sofrimento causado por essa doença.