Na tarde cinzenta da última quarta-feira, um grupo de mulheres se reuniu silenciosamente em frente ao Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Dias antes, naquele mesmo prédio, uma mulher fora estuprada logo após o parto pelo anestesista Giovanni Quintella Bezerra, de 31 anos. A calçada estava tomada por manifestantes. Havia mulheres jovens, velhas, grávidas, mulheres que seguravam bebês, bandeiras e faixas. Entre elas, a produtora cultural Silvia de Mendonça, de 61 anos, se destacava por carregar um livreto de papel pardo. O material não tinha a exuberância dos cartazes com frases de efeito, mas ela o empunhava com uma expressão severa no rosto. Era um exemplar resumido do Dossiê Caxias, um documento publicado por mulheres da Baixada Fluminense em 1986 para denunciar uma série de violências que ocorriam à época dentro das maternidades da região – casos que iam de estupro a tortura. “Eu estou vendo a história se repetir”, disse Mendonça, com a voz embargada e segurando o choro. “Sinto nojo e ódio de estar voltando aqui 36 anos depois para falar da mesma coisa.”
O estupro no Hospital da Mulher foi gravado com um celular escondido num armário de vidro fosco da sala de cirurgia. As enfermeiras disseram desconfiar do anestesista devido à alta dose de sedativos que ele aplicava nas gestantes e ao comportamento estranho do médico, que sempre ficava ao lado da mesa de cirurgia, na altura da cabeça das pacientes, fazendo movimentos suspeitos com o corpo. O vídeo que foi entregue à polícia mostra o médico, depois da cesárea, inserindo o pênis na boca da paciente sedada. Bezerra foi preso em flagrante na segunda-feira (11) e teve o CRM – registro que permite o exercício da profissão – suspenso. Mas esse não é um caso isolado.
A piauí teve acesso a um levantamento recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que identificou, só em 2021, 467 casos de estupro em estabelecimentos de saúde no Brasil, considerando hospitais, postos de saúde, consultórios e outros. Significa que, em média, a cada dia, uma pessoa sofre violência sexual em estabelecimentos de saúde – e isso se refere apenas aos casos denunciados e registrados. Dessas ocorrências, 256 foram estupros de vulnerável – cometidos contra crianças menores de 14 anos ou pessoas adultas incapazes de consentir –, como o ocorrido em São João de Meriti. A suspeita de que o médico aumentou propositalmente a dose da anestesia para dopar a paciente – o que, por si só, pode trazer riscos à saúde – confere uma dupla carga de violência ao comportamento do anestesista. Além da violência sexual, ele pode responder também por violência obstétrica, que caracteriza abusos sofridos por mulheres quando procuram serviços de saúde durante a gestação.
O caso ganhou repercussão nacional ao longo da semana e representa uma mácula na história do Hospital da Mulher, onde as manifestantes se reuniram em protesto na última quarta-feira. A unidade é fruto da luta do movimento de mulheres da Baixada, que desde a década de 1980 reivindica a construção de unidades de saúde na região. Inaugurado em 2010, o Hospital Heloneida Studart foi o primeiro espaço de saúde especializado no atendimento a gestantes e bebês de médio e alto risco no município de São João de Meriti – e também o primeiro a trazer o conceito de parto humanizado para a Baixada, um bolsão de pobreza na região metropolitana do Rio. Além do atendimento obstétrico de pacientes graves, a unidade também conta com o serviço SOS Mulher, que acolhe vítimas de violência a partir de 12 anos de idade. “Esse hospital foi uma vitória da nossa caminhada. Ver que ele se tornou palco desse episódio terrível é um desgosto muito grande para nós”, lamenta a ativista Leila Silva, de 59 anos, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de São João de Meriti e integrante do Fórum de Mulheres da Baixada Fluminense, criado em 2002.
Até hoje Leila se lembra da euforia no dia da inauguração do hospital, batizado em homenagem à ex-deputada estadual fluminense e feminista histórica Heloneida Studart. Depois de anos se reunindo com secretários, prefeitos e governadores para pedir a construção de uma unidade como aquela, as mulheres dos coletivos feministas comemoraram como se elas próprias tivessem erguido a construção de 13 mil m². “A gente nem sabia direito o que significava um hospital de alto risco, só estávamos maravilhadas de vê-lo pronto”, lembra. “Mas lutar para conseguir as coisas não é suficiente. É triste saber que a gente tem que continuar lutando o tempo todo para ter nossos direitos garantidos.”
O acesso à saúde sempre foi prioridade do movimento de mulheres na Baixada, explica Luciene Medeiros, professora do departamento de Serviço Social da PUC-Rio e membro do Fórum de Mulheres da Baixada. Os municípios que compõem a região têm taxas de mortalidade infantil maiores que a média nacional e que a da capital do estado. Enquanto representantes da segunda onda do movimento feminista já avançavam nas discussões de gênero, as mulheres da Baixada, majoritariamente negras, ainda lutavam por direitos básicos – para si mesmas e seus filhos. O primeiro posto de saúde de São João de Meriti, o Posto de Assistência Médica (antigo PAM, hoje transformado em hospital municipal), por exemplo, só começou a ser construído depois que mulheres se deitaram no meio da Rodovia Presidente Dutra – uma via movimentada do estado – em protesto. “Os homens saíam para trabalhar na capital e quem vivia profundamente as carências de infraestrutura urbana eram as mulheres. Então são elas que estão, desde a década de 1980, na luta por creches, postos de saúde, escolas, saneamento básico etc.”, avalia a professora Luciene Medeiros.
Quando as notícias do estupro no Hospital da Mulher começaram a se espalhar, na última segunda-feira (11), cerca de quarenta integrantes do Fórum de Mulheres da Baixada Fluminense marcaram uma reunião emergencial. Por causa da pandemia, o grupo estava havia dois anos sem se encontrar presencialmente, mas aquela era uma situação que exigia uma resposta rápida. Dali surgiu a ideia de convocar o protesto na rua do Hospital da Mulher. A indignação com a violência registrada em vídeo misturou-se com o ressentimento por tamanha violação ter acontecido justamente num espaço conquistado pelo movimento feminista.
“Nem nos filmes de terror você imagina uma mulher sendo estuprada no serviço público de saúde, um local em que ela deveria estar protegida”, diz Medeiros. “Chegamos ao nível mais baixo possível.” Assim que soube do comportamento atroz do anestesista em São João de Meriti, a professora conta que sentiu uma dor “na alma e no corpo”, seguida de uma incômoda sensação de déjà-vu. Medeiros, hoje com 57 anos, lembrou-se na hora de quando tinha 19 e participou de uma mobilização que acabou se tornando um divisor de águas para o movimento de mulheres na Baixada.
Era 1986, fazia pouco tempo que a ditadura militar havia chegado ao fim, e Luciene Medeiros estava estudando para o vestibular da faculdade de história. Moradora de Duque de Caxias, vizinha a São João de Meriti, ela participava do Movimento União de Bairros (MUB) da cidade. As associações de moradores eram a expressão mais comum de mobilização social no Rio de Janeiro à época. Naquele ano, o centro comunitário de Caxias começou a receber uma série de denúncias de mulheres que haviam sofrido vários tipos de violência em três maternidades da cidade e queriam fazer algo a respeito. Os primeiros relatos indicavam que os médicos estavam induzindo partos de forma precoce sem respaldo clínico, o que coloca a vida de mulheres e bebês em risco. Os primeiros depoimentos foram tão assustadores que Medeiros e suas colegas começaram a ir atrás de outras possíveis vítimas espalhadas pela cidade – e encontraram um cenário apavorante.
Segundo os relatos, era comum que equipes médicas subissem na barriga das gestantes para forçar a saída da criança, prática conhecida como manobra de Kristeller, técnica que é contraindicada pela Organização Mundial da Saúde. Em maio deste ano, porém, o Ministério da Saúde lançou a nova edição da Caderneta da Gestante, uma cartilha que guia as práticas do SUS, incentivando o uso da técnica agressiva. O Ministério Público solicitou ao Tribunal de Contas da União a abertura de uma investigação contra o Ministério da Saúde.
Uma paciente que participou das denúncias, identificada pelas iniciais M.C.L., disse que, antes do seu parto, em agosto de 1984, o médico da maternidade Jardim Primavera a deixou por mais de uma hora com as pernas levantadas, presas em ferros de apoio, na sala de cirurgia enquanto ele ouvia música no cômodo ao lado – uma punição por ela não ter aceitado fazer a cesárea na semana anterior. Segundo a denúncia, o médico ainda disse, ao fim do atendimento, que era ela a culpada pelo que aconteceu. Outra mulher relatou ter ficado com “um buraco na vagina”, uma fístula, por onde passavam fezes, resultado da negligência médica na hora da cirurgia. Várias mulheres perderam os bebês e algumas morreram na mesa de cirurgia.
As integrantes do MUB e do centro comunitário juntaram todos os relatos escritos à mão, documentos, certidões de óbitos, laudos e, junto com representantes da Comissão dos Direitos de Reprodução da Alerj, escreveram o Dossiê Caixas em 1986, para denunciar os casos de violência nas maternidades – que elas chamavam de açougues ou casas de morte. O material virou um calhamaço que está até hoje guardado na casa da produtora cultural Silvia de Mendonça, aquela que estava com o livreto em mãos na frente do Hospital da Mulher em São João de Meriti.
O exemplar que ela carregava naquele dia é uma versão reduzida de 25 páginas, que foi distribuída ao público na época. “Quando visitamos as maternidades, vimos coisas horríveis. As mulheres eram tratadas como um pedaço de nada. Eram estupradas, recebiam anestesia vencida e as crianças morriam porque não tinha incubadora”, lembra Mendonça. No documento, as mulheres constataram que havia dentro das maternidades “uma relação de opressão, violência, pouco caso e irresponsabilidade” – cenário muito semelhante ao que encontraram em 2022, 36 anos depois.
O Dossiê Caxias foi a gênese da discussão sobre violência obstétrica – quando esse termo ainda nem existia. Pela primeira vez, as tantas violências sofridas em maternidades da Baixada vieram à tona. Como consequência, duas maternidades citadas foram fechadas. Na época, o SUS ainda não existia, e o serviço de saúde ficava a cargo do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamps), que passou a incorporar “ações de saúde que atendessem às especificidades das mulheres”. Os médicos denunciados tiveram os CRMs suspensos.
“O dossiê nasceu da fala das mulheres, da coragem para relatar as violências sofridas. Isso é muito importante. Foi importante na década de 1980 e continua sendo importante agora”, diz a professora Luciene Medeiros, traçando um paralelo entre o dossiê e a filmagem realizada pela equipe de enfermagem do Hospital da Mulher. Além do vídeo, as enfermeiras guardaram as gazes usadas pelo anestesista para limpar os vestígios do estupro no rosto da mulher e entregaram à polícia as ampolas do anestésico aplicado. “A atitude dessas profissionais foi fundamental. Se não fosse a dedicação delas para reunir as provas, quantos não iriam duvidar dessa história macabra?”, questiona.
Para Medeiros, além da violência sexual e obstétrica, o caso do Hospital da Mulher também é exemplo de violência institucional. “O espaço público é o lugar onde a mulher deve ser protegida pelo Estado, não onde ela é vítima”, diz. Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informou, por meio de nota, que a Fundação Saúde, responsável pela gestão do Hospital da Mulher Heloneida Studart, instaurou uma sindicância para apurar a atuação do anestesista Giovanni Quintella Bezerra e todos os procedimentos adotados por ele durante o parto.
Os cabelos brancos da professora de história Ladisséa Silva, de 59 anos, se destacavam na aglomeração das manifestantes na Praça José Alves Lavouras, a 100 metros do Hospital da Mulher Heloneida Studart, na última quarta-feira. O espaço espremido entre barracas de açaí e uma quadra de futebol estava tomado por jovens representantes do movimento feminista que gritavam palavras de ordem contra o estupro. Silva se esgueirava entre elas com o celular em mãos para registrar os discursos inflamados do grupo.
No ano de publicação do Dossiê Caxias, Ladisséa tinha 23 anos. O documento deixou nela uma impressão tão forte que ela decidiu se engajar de vez no movimento feminista. “O dossiê foi fundamental para o processo de organização das mulheres de toda a Baixada”, diz ela. No ano seguinte à publicação do documento, militantes dos treze municípios da região se reuniram pela primeira vez para debater seus direitos e discutir as principais carências da região. Ladisséa se juntou ao grupo que produziu um documentário sobre o Dossiê e levou o mesmo espírito de reivindicação para outras frentes do movimento. Enquanto as mulheres continuavam reivindicando a abertura de novas maternidades e unidades de saúde, o grupo de Ladisséia entrou na luta por uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Nova Iguaçu, outra cidade que faz parte da Baixada Fluminense.
Como não havia dados sobre violência contra a mulher, elas bateram na porta de todas as delegacias da região para coletar os boletins de ocorrência e fazer seu próprio levantamento. “Os policiais e delegados ficavam do nosso lado com fuzis enormes, rindo e debochando, e a gente se tremia toda”, lembra ela. Folha por folha, elas separavam as ocorrências e anotavam as informações em cadernos próprios. Acabaram descobrindo que os documentos estavam incompletos: não informavam o nome das mulheres, nem a cor, idade ou local do acontecimento – uma bagunça que dizia muito sobre como o tema era ignorado pelas autoridades. “A gente não sabia fazer estatística. Tivemos que aprender para provar que a violência contra a mulher era um problema e que isso justificava a existência de uma delegacia para as mulheres.”
Se hoje o caso do anestesista que estuprou uma gestante está sendo investigado em uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), é graças à luta de mulheres como Ladisséa. Assim como a produtora cultural Silvia de Mendonça, a ativista Leila Silva e a professora universitária Luciene Medeiros, ela também fez parte da primeira geração de mulheres que se organizaram em movimentos sociais na Baixada – e que nesta semana voltaram para lutar contra as mesmas violências. “Os problemas são os mesmos. A gente dá dois passos para frente e um para trás”, afirma Ladisséa.
Segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o número de mulheres que sofreram violência sexual aumentou em 2021, em comparação com o ano anterior: ao todo, foram 52,8 mil ocorrências. Ou seja, a cada dez minutos, uma mulher foi estuprada. Juliana Martins, coordenadora institucional do FBSP, acredita que esse número pode aumentar ainda mais nos próximos anos. “O anestesista é um homem comum, igual a todos os agressores e autores de violência contra mulher, que se vê respaldado nessa cultura machista e patriarcal com a certeza da impunidade”, avalia ela. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), foram registrados 2,3 mil estupros no estado do Rio Janeiro nos primeiros cinco meses deste ano, um aumento de 7% em relação ao mesmo período do ano passado. Em São João de Meriti, entre janeiro e maio de 2022, foram relatados 76 casos de estupro, 29% a mais que no mesmo período do ano anterior.
Quando Ladisséa Silva tinha 23 anos, ela não acreditava que o machismo seria totalmente superado no futuro, mas também não esperava que as coisas continuassem tão ruins. O vídeo do estupro no Hospital da Mulher mostrou que ainda há um longo caminho a ser percorrido. A boa notícia, diz ela, é que diante da barbárie ainda há resistência – como houve 36 anos atrás. “Isso aqui é o novo Dossiê Caxias”, afirmou, apontando para as jovens de cabelos pintados de azul e roxo que pediam o fim da violência naquela praça de São João de Meriti.