O pátio do Sesc Belenzinho, na Zona Leste de São Paulo, estava repleto de crianças com máscaras coloridas correndo entre adultos na tarde ensolarada do dia 2 de agosto. No palco estava o rapper Renan Inquérito, de 41 anos, que apresentava seu espetáculo ABRAKBÇA, no qual se dedica a explicar o hip hop às crianças. A poucos metros, sua produtora e diretora criativa do espetáculo, Maria Julia Barbieri, acompanhava cada movimento do artista, cantando e sorrindo junto. Em determinado momento, ela se ausentou e, discretamente, refugiou-se em uma sala. Chorava copiosamente.
Voltou minutos depois, olhos ainda vermelhos, sorriso esforçado. A emoção tinha explicação: aquela era a primeira apresentação de Renan após tratar um tumor maligno na tireoide. Ao receber a piauí após o show daquela tarde, ele mostrou o corte na região da garganta. A cicatriz impressiona. “Foi um período foda, mas estou vivo, firmão”, celebrou o rapper que tem vinte anos de carreira e dez álbuns lançados com o seu grupo, o Inquérito, e de maneira solo.
A descoberta da doença aconteceu por acaso, em outubro do ano passado. O artista, que vive em Nova Odessa, no interior paulista, ouviu de seu barbeiro que havia um caroço em seu pescoço. “Está estranho, vai ao médico”, recomendou o amigo. Renan ouviu o conselho e marcou uma consulta médica na mesma semana. O ar gélido daquela segunda-feira, 31 de outubro, ficou ainda mais frio diante do diagnóstico: carcinoma medular de tireoide, um tipo raro de câncer que representa apenas cerca de 3% a 5% de todos os tumores da glândula, segundo dados do Departamento de Tireoide da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
Esse câncer costuma surgir tanto de forma esporádica, como foi o caso de Renan, quanto associado a alterações genéticas herdadas. Embora os números variem entre países, estima-se que a incidência de carcinoma medular de tireoide seja baixa em comparação com outros tipos de câncer da tireoide. O carcinoma é causado pela transformação maligna das células C da tireoide – células que normalmente produzem o hormônio calcitonina, que regula os níveis de cálcio e fósforo no sangue – e pode se espalhar para os linfonodos do pescoço e outras regiões do corpo. Trata-se de um tumor que, quando descoberto precocemente, tem boas chances de controle.
Entre a descoberta do caroço e a notícia do câncer, Inquérito realizou duas biópsias, tomografias, PET scans (exame de imagem que mostra a atividade interna do corpo) e uma bateria de exames. Constatou que o tumor não estava em estágio inicial e já avançava silenciosamente por seu corpo, com sinais de metástase para os linfonodos do pescoço e a formação de pequenos nódulos no tórax. A partir daí, formou-se ao redor dele uma espécie de trincheira: um cirurgião de cabeça e pescoço, uma oncologista e um cirurgião torácico para entender qual seria o melhor tratamento.
A junta definiu que o primeiro passo seria iniciar a imunoterapia (tratamento medicamentoso que estimula o próprio corpo a combater as células cancerígenas) por seis meses com um medicamento chamado Retsevmo, tomado diariamente, via oral. O remédio é uma terapia-alvo: age como um “freio molecular” de células cancerígenas A droga tinha a missão de fazer o tempo trabalhar a favor do rapper, retardar o crescimento das células cancerosas, reduzir os tumores e, principalmente, afastá-los das estruturas que mais despertavam medo no artista: a veia jugular, a carótida, o nervo vago e as pregas vocais. “Se encostasse ali, já era.” A imunoterapia surtiu efeito sem provocar grandes efeitos colaterais. Renan seguiu trabalhando e fazendo shows, como se vivesse uma vida paralela à doença. Em meio ao tratamento, definiu-se que sua cirurgia seria em 9 de junho deste ano.
A operação durou seis horas. Primeiro, retiraram os nódulos do tórax; depois, avançaram para o pescoço, onde realizaram uma tireoidectomia total, cirurgia em que toda a glândula tireoide é removida, e um esvaziamento cervical, para retirar os gânglios linfáticos do pescoço quando há suspeita de que o câncer tenha se espalhado para essa região. Ao acordar da anestesia, a primeira preocupação era simples: testar a própria voz. Ela veio. “Mano, eu falei. E quando falei, chorei.”
A recuperação foi rápida. Em um mês, já estava de volta às atividades, como se o corpo tivesse pressa de alcançar o ritmo da vida que ele não havia permitido que parasse. Até que, em setembro, uma bateria de tomografias e biópsias revelaram a presença de um pequeno nódulo persistente na mesma região do pescoço. Nada parecido com o cenário inicial, mas suficiente para um novo procedimento cirúrgico. No início do mês, 3 de dezembro, Renan passou por uma crioablação — técnica minimamente invasiva que congela e elimina o tumor.
Em março de 2026, o rapper vai realizar uma nova bateria de tomografias e ressonâncias para descobrir se o procedimento eliminou completamente o nódulo e como a região tratada cicatrizou. A partir desse retorno, seguirá em acompanhamento regular, em intervalos definidos pela equipe oncológica, para monitorar possíveis novos focos da doença.
“É estranho pensar nisso tudo e, ao mesmo tempo, subir no palco sorrindo”, afirmou Renan em uma das conversas que teve com a piauí. Entre a descoberta do tumor, o tratamento e as cirurgias, o artista procurou manter sua rotina de trabalho, mas não foi um processo fácil. Houve momentos de solidão e tristeza. De desespero. Recuperado, comemora não só o fato de estar vivo, mas por ter conseguido, em meio ao caos, ressignificar a própria história.
Em dezembro do ano passado, enquanto ministrava a oficina Rap na Medida em Foz do Iguaçu, para adolescentes que estavam cumprindo medida socioeducativa em privação de liberdade, ele recebeu uma ligação de seu oncologista. O diagnóstico de câncer fora revelado havia dois meses e a suspeita de perder a voz, manifestada ao telefone, o atormentava. Foi ao banheiro, se trancou em uma das cabines e chorou por alguns instantes. Enquanto isso, os jovens, curiosos pela ausência prolongada do rapper, foram avisados por Barbieri, sua produtora, que o artista estava enfrentando uma grave doença.
Comovidos, eles escreveram cartas de apoio a Renan. “Foi um dos piores e melhores dias da minha vida. Eu não sabia, mas precisava muito daquilo. Aquele foi o gás que eu necessitava para continuar firmão.” A leitura das missivas e o desejo de dar novo sentido à vida em meio aos problemas o inspiraram a criar um novo disco, com músicas que seguem a cronologia da doença, do diagnóstico, passando pelo tratamento, até a cura.
O nome do novo álbum é uma homenagem às avessas: TIREOIDE. A escolha se deu após uma descoberta médica: a de que a glândula tem o formato de uma borboleta. O rapper, então, concebeu uma analogia que aproxima seu tratamento contra a doença e o desenvolvimento do inseto. A descoberta do nódulo, os exames e o diagnóstico são como o movimento lento de uma lagarta que acaba de quebrar a casca do ovo e começa a investigar sua nova forma de vida.
Depois, vem o casulo, a terceira etapa da metamorfose, quando o músico fez um mergulho profundo para dentro de si, durante a intervenção medicamentosa e a incerteza sobre sua eficácia. Foi nesse período de introspecção, medo e esperança que o disco começou a ganhar forma e as faixas foram escritas. A poesia funcionou como remédio e registro. Na última etapa, a cirurgia que retirou os nódulos marca o renascimento do rapper, como a borboleta que ganha asas para voar. A cicatriz no lado direito do pescoço foi ressignificada. “É irônico”, ele diz, “foi bem aqui, onde nasce a palavra, que a vida tentou me calar.” Renan ainda está finalizando o projeto e não quis revelar quantas faixas o disco terá. Afirmou, no entanto, que o trabalho deve ser lançado em março do ano que vem, justamente quando deverá retornar ao médico para saber se a última cirurgia que fez eliminou completamente os nódulos cancerígenos.
Renan Lélis tinha 15 anos, em 1999, quando fundou o Inquérito, seu grupo de rap, ao lado de Vinicius (Neguin), Diego (Die) e Mano And, amigos da Escola Estadual Professora Silvania Aparecida Santos, em Nova Odessa. Inspirado pela obra dos Racionais MC’s, ele passou a compor suas próprias rimas ao descrever as agruras da vida na periferia da cidade. Se envolveu tanto com a empreitada que adotou o nome do grupo para si. “Hoje eu até brinco com isso e falo: ‘Meu nome é Inquérito, e o vulgo é Renan.’”
Até por isso fica difícil definir, inclusive para Renan, qual a situação da banda. “No final da década de 1990, fui orientado por uma gravadora que uma carreira solo não vingaria. Aí fui colocando uns amigos, mas todas as músicas foram escritas por mim. O Inquérito é uma lenda, um mito, que não existe como grupo há muito tempo. Só que não consegui me desvincular totalmente desse estigma de grupo. Digamos que é uma curva longa a se fazer.”
Em duas décadas, sozinho ou com os amigos, Renan Inquérito lançou dez álbuns, entre eles Mais Louco que U Barato (2005), Um segundo é pouco (2008) e Tungstênio (2018). Suas parcerias incluem nomes tradicionais do rap nacional, como GOG, Rael, Emicida e Rashid, e artistas da MPB, como Zeca Baleiro e Tulipa Ruiz. Seu último disco foi ABRAKBÇA (2023), dedicado ao público infantil, que teve participações de Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes e Maria Rita.
Além da música, Renan mantém uma profícua carreira de escritor. Publicou #PoucasPalavras, com versos sobre literatura marginal e periférica; Poesia Pra Encher a Laje, influenciado pela poesia concreta; e Literatura Ostentação, misto de poesia e rap, em que denuncia a desigualdade social. Participou ainda de diversas antologias nacionais e internacionais, do Brasil à Argentina, México e Chile.
O vínculo com a palavra serviu de motivação para mais um projeto: a Parada Poética. Trata-se de um pequeno sarau realizado às segundas-feira à noite na estação ferroviária de Nova Odessa. Uma vez por mês, a parada se enche de “poesia de primeira, numa noite de segunda”, como diz o bordão criado pelo artista. A cada edição do sarau ele convida escritores e o público a tomar o microfone e “maltratar a gramática, jogando a culpa na licença poética”. Atualmente, além de Nova Odessa, o evento ocorre mensalmente, também às segundas-feiras, em outras duas cidades do interior paulista: Hortolândia e Jaguariúna.
A vida como rapper e escritor ocorreu em paralelo à acadêmica. Aos 16 anos, Renan se ligou durante uma conversa com sua namorada da época que poderia prestar vestibular em uma universidade pública. “Fiquei sabendo que dava pra estudar de graça.” Primeiro, cursou o Cotuca, o Colégio Técnico de Campinas, vinculado à Unicamp. De tanto ouvir o nome da instituição entre colegas e professores, afeiçoou-se à ideia de prestar o vestibular. Cogitou engenharia, mas foi desencorajado pelos cálculos matemáticos. Sondou o jornalismo, mas a nota de corte era muito alta. Ao explorar outras opções na área de humanas, descobriu o curso de ciências da terra, que une geologia e geografia.
Passou no vestibular e, para se manter em Campinas, ingressou no Programa Bolsa de Permanência (PBP), financiamento estudantil voltado para estudantes de baixa renda em universidades públicas. O benefício foi concedido, mas com uma contrapartida: dar aulas em escolas rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Foi a melhor experiência da minha vida. Lá nos assentamentos, aprendi na prática a ser professor. Desenvolvi um amor profundo pela educação.”
Após a graduação, Inquérito fez mestrado em geografia na Unicamp e doutorado em educação na Unesp. Seguiu dando aula em cursos populares e, desde 2008, promove rodas de conversa em unidades da Fundação Casa para menores privados de liberdade. Certa vez, em um desses encontros, disse o seguinte: “Hoje vamos falar sobre poesia.” Os jovens reagiram: “Pô, tio, você tá tirando? Poesia é mó chato!” Ele, então, recitou Mário Quintana. Em poucos minutos, estavam inebriados pelas palavras e pela cadência dos versos do poeta gaúcho, conhecido pela concisão e simplicidade.
A partir dessa experiência, Renan desenvolveu uma estratégia para lidar com os adolescentes: privilegiar textos curtos e sucintos, já que a maioria deles não tinha o hábito ou gosto pela leitura. “Não precisa de muitas palavras para passar o recado. Se você for preciso, com uma palavra pode derrubar ou levantar alguém.” Ao mesmo tempo, ensinava aos jovens que, para usar poucas palavras, era preciso conhecer muitas. E que, ao dominá-las, eles tinham uma arma poderosa – não para ferir, mas para se defender, se expressar e ter a possibilidade de contar a própria história. Interessante será descobrir quais palavras Renan Inquérito escolheu para narrar a batalha contra o câncer em seu próximo disco.