O motorista de ônibus Marcos Antonio da Silva, de 37 anos, passava pela Avenida João XXIII, na Zona Leste de Natal, quando recebeu pelo celular, por volta das 13 horas, um comunicado da empresa: todos os ônibus deveriam retornar à garagem. A capital do Rio Grande do Norte amanhecera na terça-feira (14/3) sob o impacto de seguidos ataques a ônibus por grupos armados. Pouco depois, o ônibus de Silva foi abordado por quatro homens em duas motos, e todos tiveram de descer do veículo. “Quando eu estava saindo, já começaram a jogar a gasolina, e pegou nos meus pés. O ônibus estava cheio, tinha entre trinta e quarenta passageiros. Uma mulher havia acabado de subir com uma criança de uns 4 anos, e a criança gritava sem parar: ‘Eu vou morrer, mamãe, eu vou morrer.’ Eu também pensei que ia morrer pegando fogo ali.”
Silva já sabe que a tensão e o medo fazem parte da jornada de trabalho. Motorista de ônibus há doze anos em Natal, ele fora contratado havia pouco mais de um ano quando presenciou pela primeira vez os ataques incendiários a ônibus da cidade, em 2012. “Das outras vezes, eu estava sempre em intervalo ou para sair da garagem, então sempre dava tempo de recolher o ônibus. Dessa vez, me pegaram no meio da viagem.”
Diante das ameaças, o motorista e os passageiros desceram às pressas, o ônibus ficou. Foi um dos veículos incendiados numa série de ataques que já duram dois dias e atingiram pelo menos 22 cidades do Rio Grande do Norte entre a madrugada de segunda (13) e quarta-feira (15). Os ataques são atribuídos à facção criminosa Sindicato do Crime. Os criminosos atiraram contra prédios públicos, sedes de prefeituras e garagens públicas, além de entrar em confronto com a polícia. Fundado há onze anos, após romper com o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Sindicato do Crime é a facção criminosa mais forte no Rio Grande do Norte.
Até a manhã desta quarta-feira, segundo a Polícia Militar, 28 suspeitos de participação nos ataques foram presos em diversas cidades do Rio Grande do Norte; 6 armas de fogo e 18 artefatos explosivos foram apreendidos. A pedido da governadora Fátima Bezerra, que estava em Brasília na terça-feira e se reuniu com representantes do Ministério da Justiça, a Força Nacional de Segurança Pública foi acionada e já está no Rio Grande do Norte. Em postagem feita em sua rede social, o ministro Flávio Dino disse que 220 policiais foram destinados para auxiliar as forças estaduais de segurança no RN, e que o efetivo pode ser ampliado “se configurar necessário”.
Entre 2012 e 2022, houve pelo menos seis episódios de ataques a ônibus no Rio Grande do Norte. Apesar de terem curta duração, os atentados transformam a vida dos potiguares, em particular os habitantes da região metropolitana da capital, formada por quinze municípios. É comum ver dezenas de pessoas nas paradas de ônibus vazias após o recolhimento da frota, em busca de uma forma de retornar para casa.
Nesta semana, serviços de saúde fecharam as portas, escolas cancelaram aulas, e os comerciantes foram orientados a fechar suas lojas mais cedo. As aulas foram suspensas na rede particular de ensino e nas principais universidades públicas e privadas do estado. Unidades básicas de saúde suspenderam atendimentos em Natal e, em Mossoró, segunda maior cidade potiguar e onde também houve ataques, não há previsão para o retorno da circulação de transportes públicos. Nas repartições públicas que abriram, o expediente foi encerrado mais cedo, e a preocupação era chegar em casa com segurança.
A antropóloga Juliana Melo estuda desde 2010 a situação do sistema penitenciário potiguar e diz que os ataques estão ligados à dinâmica das facções dentro do sistema prisional, hipótese que não é descartada pelo próprio governo. “Tudo que acontece dentro do sistema prisional reflete no que acontece do lado de fora. A gente pensa que são duas realidades separadas, mas elas são muito próximas e vinculadas. Quanto mais o sistema prisional é uma máquina de moer e matar gente, mais consequências isso tem para quem está do lado de fora, porque essa situação transborda”, explica Melo, professora associada do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A Secretaria de Estado de Segurança Pública não descarta que a origem dos ataques tenha partido do sistema penitenciário, mas destaca que a situação dentro dos presídios está controlada, sem registros de ocorrências internas. Em entrevista coletiva concedida na terça-feira, o secretário de Administração Penitenciária do Estado, Helton Edi Xavier, afirmou que o órgão tomou providências e determinou o isolamento imediato de presos que eles acreditam que poderiam estar envolvidos no comando das ações.
Segundo a pesquisadora Melo, os ataques são cíclicos e acontecem quando a situação dentro dos presídios se torna “insustentável”. Ela, que trabalha diretamente com famílias de detentos, relata ter recebido diversos relatos de tortura e violações de direitos humanos. “Tudo isso são tentativas deles de denúncia e de fazer isso reverberar aqui fora. Eles sabem que quando fazem essas coisas na rua, terão muito mais represálias lá dentro, então evitam fazer isso. Mas, quando fazem, é porque estão apanhando tanto lá dentro, e pensam: ‘eu já estou apanhando, então eu vou ao menos me rebelar.’”
Desde 2017, de acordo com Melo, familiares de presos e organizações de defesa dos direitos humanos denunciam situações de violações dentro dos presídios no Rio Grande do Norte, com a organização de passeatas, greves de fome e até mesmo cultos, mas sempre sem sucesso. “A partir de 2017, após o massacre de Alcaçuz (quando 27 detentos foram mortos em uma batalha entre facções rivais que lutavam pelo controle daquela penitenciária), eu mesma já fiz muitas denúncias disso. Eram pessoas passando por choques elétricos, sendo obrigadas a beber a própria urina, a beber água sanitária, a ficar nuas, a ficar com quarenta pessoas em uma cela em que cabem três…”
Ela disse ter sofrido ameaças de morte após denunciar a situação e, na época, teve que deixar por um ano a capital potiguar. “A sociedade não quer ver, ela quer que eles apodreçam lá. Já a violência fala, ela grita, e eles adotam esse método. Muita gente pensa que defender melhorias no sistema prisional é defender bandido, mas não é isso. Quem trabalha com o sistema prisional quer defender a sociedade, porque quer uma sociedade menos violenta”, diz.
Sobre as denúncias de violações de direitos humanos dentro dos presídios, o secretário Xavier afirmou: “A questão dos maus-tratos é um tema que ocorre pontualmente em qualquer presídio do mundo inteiro. De vez em quando, temos notícia que ocorreu em um lugar ou outro, mas não existe isso de forma estrutural como eles querem mostrar. O que existe são os protocolos de segurança e disciplina, que são necessários para a segurança deles e dos próprios policiais.” Xavier disse que o governo não descarta a possibilidade de transferir para outras unidades da federação presos que podem estar à frente dos ataques. Até lá, as visitas, inclusive de advogados, foram suspensas no sistema prisional. “Pelo tempo que for necessário, até que a normalidade seja estabelecida”, afirmou o secretário.
Para a população, o impacto da violência ultrapassa os ônibus queimados e lojas destruídas, deixando um clima de medo. Em Macaíba, município da região metropolitana, a estudante Renata Raiane da Silva, de 18 anos, estava em um dos ônibus atacados na tarde de terça-feira. O veículo foi abordado por quatro homens em duas motos, que mandaram que o motorista parasse. Como ele não parou, eles atiraram contra o veículo e atingiram o motorista. Renata escapou sem ferimentos. “O que assusta é que as coisas vão acontecendo, a gente vê no WhatsApp, na televisão, mas pensa que nunca vai acontecer com a gente. A gente que mora aqui tá até acostumado de certa forma a saber dessas coisas. Até o dia que acontece com a gente. Nunca vou esquecer dos tiros, do vidro do ônibus quebrando, de pensar naquele momento que eu ia morrer.”