Uma cantora e uma confusão de nomes: Sônia Soraya é o artístico; Sayara Gomes Dutra, o falso; e Nélida Sônia Sánchez Garcete, o verdadeiro Imagem: reprodução/ Instagram
Evidências criminais
Uma cantora sertaneja e uma organização que movimentava toneladas de drogas entre o Paraguai e o Brasil
Com cerca de 245 mil seguidores no Instagram, a cantora sertaneja Sônia Sayara, de ligeiro sotaque hispânico, vem se empenhando há anos em brilhar nos palcos. Em maio de 2019, o marido dela, José Roberto de Oliveira Lima, compartilhou no Instagram um vídeo no qual escreveu que a artista era uma “futura estrela do Brasil”.
O público mais chegado sempre ouviu que Sônia Sayara é uma alcunha artística para Sayara Gomes Dutra. A Polícia Federal descobriu, porém, que esse nome tampouco é verdadeiro, mas uma falsificação. Ela se chama Nélida Sônia Sánchez Garcete e é figura-chave em uma organização criminosa responsável por trazer toneladas de drogas traficadas do Paraguai para o Brasil.
A cantora foi presa preventivamente pela Polícia Federal brasileira na última quarta-feira (28). Documentos judiciais obtidos pelo OCCRP (Projeto de Investigação Sobre Crime Organizado e Corrupção, na sigla em inglês) revelam detalhes de uma investigação iniciada em 2020 sobre a organização criminosa da qual é acusada de fazer parte.
Além da cantora, outras cinco pessoas foram detidas durante a deflagração da Operação Tango Down, que buscava cumprir nove mandados de prisão preventiva contra integrantes de um grupo especializado no tráfico internacional de drogas. Três deles permanecem foragidos, incluindo seu marido, Oliveira Lima, mais conhecido como Tiquinho. Ele assumiu a liderança da organização depois da morte do chefe, o narcotraficante paraguaio Carlos Rubén Sánchez Garcete, conhecido como “Chicharõ”, ex-suplente de deputado e irmão de Nélida, assassinado com dezenas de tiros no Paraguai em agosto de 2021.
A organização era especializada no tráfico internacional de maconha e cocaína do Paraguai para o Brasil, com rotas aéreas e terrestres. O superintendente Regional de Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, delegado Carlos Henrique D’Ângelo, explica que o estado é uma das principais portas de entrada de drogas no país por sua extensa faixa de fronteira seca com o Paraguai. “O Mato Grosso do Sul era meio essencial para a internalização e escoamento das drogas para diversos estados da federação. O grupo possuía uma logística articulada com pilotos e transportadores terrestres.”
O superintendente diz que o “peso” dessa organização é evidenciado pelas apreensões vultosas que a polícia fez contra o grupo. Desde 2019, foram apreendidas 27,3 toneladas de maconha, 1.177 kg de cocaína, 2.347 kg de skunk e 2 aeronaves. “As investigações revelaram uma atuação contumaz e de grande impacto no tráfico transfronteiriço.”
O trabalho de investigação da polícia começou depois da apreensão, em junho de 2020, de um helicóptero carregado com 200 kg de cocaína em Naviraí, município sul-matrogrossense que fica a cerca de 350 km da capital Campo Grande e a apenas 138 km da fronteira com o Paraguai.
Em janeiro de 2023, a Força Aérea Brasileira interceptou um avião Neiva, modelo EMB-720C, de matrícula PT-EYL, depois que a aeronave entrou no espaço aéreo nacional sem plano de voo, vinda do Paraguai. Ao avistar o caça da FAB, o piloto realizou um pouso forçado em área rural de Santa Cruz do Rio Pardo, no interior de São Paulo, abandonando o avião com 528 kg de cocaína a bordo.
Os tripulantes fugiram para a mata, mas dias depois Fábio Alves de Jesus foi encontrado debilitado e confirmou ter participado do voo ao lado de Leandro Muller de Paula, o piloto, que receberia 5 mil reais pelo transporte. Leandro pilotava a aeronave desde 2021, embora o certificado de aeronavegabilidade estivesse suspenso desde agosto daquele ano. O avião estava registrado em nome de Derio Jamir Bervig, um “laranja” que emprestou o nome para o registro da aeronave, que na verdade pertencia a Carlos Rubén Sánchez Garcete “Chicharõ”.
Antes da apreensão da aeronave, ela foi vista pela polícia, em outubro de 2022, em um hangar em Porecatu, no Paraná. O dono do local é João Ramalho, piloto, empresário do setor de aviação agrícola e dono de uma pousada. Ramalho também foi preso na Operação Tango Down.
Já a logística terrestre da organização criminosa envolvia o transporte de grandes carregamentos de maconha e cocaína ocultos em cargas de madeira, com uso de notas fiscais falsas emitidas por madeireiras ligadas aos investigados. Caminhões com vigas de madeira legalizadas eram usados para esconder os entorpecentes, o que dificultava a detecção pelas autoridades nas rodovias. Empresas como a Amambai Madeiras Ltda., registrada em nome de Cleyton José Marques de Carvalho, também preso na quarta-feira passada, forneciam documentação para acobertar o transporte, emitindo notas fiscais de cargas fictícias que serviam como fachada para o tráfico. A participação dessas empresas foi essencial para o esquema, que envolvia a movimentação de dezenas de toneladas de drogas, escoadas principalmente para o estado de São Paulo.
“Sem o mercado brasileiro, o crime organizado paraguaio praticamente ficaria sem mercado. Na verdade, historicamente, tanto a produção de maconha quanto a de cocaína estão ligadas ao envio dessas mercadorias para o Brasil”, afirma o criminólogo paraguaio Juan Martens, pesquisador da Universidad Nacional de Pilar.
O acadêmico diz que a logística do tráfico entre Paraguai e Brasil se apoia na curta distância entre os principais polos de produção e consumo. “A partir de Salto del Guairá [no Paraguai], ou de toda a região de Canindeyú, é possível chegar ao interior do estado de São Paulo — um dos maiores consumidores — em uma hora e meia ou duas. O mesmo ocorre com a cocaína.”
Nélida atuava na coordenação da organização criminosa, segundo a polícia, e era conselheira do irmão Chicharõ. Embora não participasse diretamente da logística, as investigações policiais afirmam que ela tem plantações de maconha no Paraguai. No Brasil, ela era vista com frequência em uma chácara em Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, cidade onde também manteve uma loja de roupas registrada em nome de sua identidade falsa.
A reportagem procurou os advogados das pessoas mencionadas nesta reportagem. A defesa de João Ramalho afirmou que os indícios contra ele são frágeis e que sua inocência será provada durante a instrução. Já o advogado de Dério alegou que seu cliente foi enganado a assinar documentos sem saber do conteúdo, por conta de problemas financeiros e alcoolismo, e que ele não tinha conhecimento sobre a aeronave nem relação com a organização criminosa. Os advogados de José Roberto de Oliveira Lima e de Nélida Sônia Sánchez Garcete não responderam até a publicação.
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