Sentados diante da tevê, em um dos salões do Museu Paranaense (Mupa), em Curitiba, os seis indígenas do grupo mebêngôkre-kayapó mal piscavam, no fim da manhã de segunda-feira (16). Provenientes da Kubenkrãkenh, aldeia semi-isolada localizada no Médio Xingu, no Pará, eles tinham viajado mais de 3 mil quilômetros para serem os primeiros de seu povo a assistir a três filmes gravados em 16 mm há quase setenta anos – em 1954 – pelo pesquisador Vladimir Kozák. Assim que viu a imagem de uma grande queda d’água, Beppre re Kayapó, de 54 anos, apontou: “É a minha terra”, reconheceu, orgulhoso. Por quase uma hora e meia, os visitantes viram cenas que mostravam desde o cotidiano na tribo a rituais de festejos, com danças e pinturas corporais. Os filmes também registram a reconstrução da aldeia, que naquele ano tinha sofrido um incêndio catastrófico, e que ainda hoje é narrado de geração para geração como um fato histórico para os mebêngôkre.
Em seguida, a equipe do museu fez vir, aos poucos, trezentas imagens – entre fotografias impressas e slides – captadas por Kozák em duas expedições à terra mebêngôkre-kayapó na década de 1950. Os indígenas manuseavam as fotos com fascínio, ora compenetrados, ora apontando aos colegas algum detalhe na cena retratada. Uma das imagens que mais chamou a atenção do grupo mostra o próprio Kozák, de cabelos brancos, sem camisa e à vontade, entre três mebêngôkre que tinham os lábios ornamentados com botoques. “Mejtirekumrej! Mejtirekumrej! [Muito bom! Muito bom!]”, exclamavam os indígenas. Era a forma de manifestar orgulho em relação aos retratos de guerreiros da tribo, com pinturas e ornamentos característicos. Outra seção traz fotos da construção de novas casas após o lendário incêndio.
“Nossos avós sempre contavam desse incêndio. Diziam que um vento trouxe uma língua de fogo e destruiu a aldeia. O fogo comeu muitas e muitas casas. É muito importante a gente ver essas imagens. Elas dão vida ao que a gente ouvia falar. É a história do meu povo”, disse Beppre. “O que esse kuben [homem branco] fez foi muito importante”, asseverou, apontando para a foto de Kozák.
Antes de se debruçarem sobre as imagens, no início daquela manhã, os indígenas tinham sido apresentados à Coleção João Américo Peret, que também faz parte do acervo do Mupa e contém cerca de cem objetos tridimensionais – como utensílios, ornamentos, armamentos de guerra e instrumentos ritualísticos – de grupos mebêngôkre-kayapó. Ao ver as cestarias, as mulheres empunharam as peças com reverência, como se tocassem algo sagrado. Kokodjy Kayapó baixou a cabeça como se fizesse uma espécie de prece. Adiante, enquanto manuseava brincos e colares, Bekwynhtokti Kayapó se emocionou. Em sua língua nativa, tentou expressar o que sentia, pontuando sua fala com firmes movimentos de mão. Em seguida, enxugou os olhos úmidos na gola da blusa de lã.
“Ela está dizendo que está com muitas saudades dos seus antepassados. Toda essa questão da saudade é muito presente na cultura dos mebêngôkre. Eles costumam externar isso bastante”, explicou o indigenista Daniel Tiberio Luz, coordenador-geral de projeto da Associação Floresta Protegida, e que acompanhou os seis indígenas na expedição a Curitiba.
Enquanto os artefatos eram expostos pela equipe técnica do museu, os indígenas explicavam seu uso e ocasião. “Esse aqui, era pra matar onça ou pra matar kuben”, apontou Beppre, empunhando uma lança de pouco mais de dois metros. Entre as outras peças, pelo design, o índigena identificou um ngàb (colar de nácar de caramujo) e um ayn (espécie de tipoia ornamental) que continham elementos exclusivos da família dele. “São meàkàkrés: artefatos que identificam determinada família. É como se fosse um brasão deles. Provavelmente, esses objetos foram feitos pelos antepassados do Beppre”, explicou Luz. Os visitantes também viram duas bolsas de palha fina trançada que já não são mais produzidas na aldeia. Elas foram fotografadas pelos próprios indígenas em celulares. A ideia do grupo é que os anciãos da tribo ensinem os mais jovens a fabricá-las.
“Estamos levando cópias dos filmes e das fotos. Vamos reunir a aldeia e mostrar para todos. Os mais antigos vão poder relembrar o passado. Os mais jovens vão poder ver como tudo era antes”, vislumbrou Beppre. “Os mais velhos vão dizer quem são os guerreiros dos retratos. Vamos anotar os nomes e mandar para o museu, para eles colocarem junto [das fotos, como legenda]. É importante que todo mundo saiba. São os heróis do nosso povo”, acrescentou. Ele notou que, por outro lado, muitos outros artefatos do cotidiano dos mebêngôkre não estão contemplados no acervo do Mupa. “Nós vamos mandar aqui para o museu, para que todo mundo conheça”, adiantou.
Situada na Terra Indígena Kayapó, a aldeia Kubenkrãkenh fica em uma área cercada por cachoeiras e quedas d’água e que tem como afluentes os rios Fresco e Riozinho. Ali, vivem exatamente 140 indígenas. Trata-se de um grupo semi-isolado: embora alguns homens já tenham tido significativos contatos em cidades grandes – inclusive com atuação em mobilizações em Brasília –, a maioria de seus moradores, principalmente as mulheres, nunca saíram da aldeia e não falam ou mal compreendem o português. Apesar de alguns elementos externos – como celulares – já terem sido assimilados pelo grupo, a maior parte dos mebêngôkre vive em casas de palha ou de pau a pique. A cidade mais próxima é Ourilândia do Norte, município de 34 mil habitantes, a uma hora de avião ou a três dias de barco.
Quando Vladimir Kozák fez suas expedições à terra indígena, o grupo estava instalado em uma área vizinha, hoje conhecida como apiekrere, que significa aldeia antiga. Beppre estima que na ocasião a tribo contava cerca de mil pessoas. A aldeia era tão grande que tinha duas “casa dos guerreiros”, uma espécie de centro político onde se realizam assembleias. Pouco depois do incêndio, o grupo se transferiu para o espaço atual e, de lá, houve uma pequena diáspora, que deu origem a outras aldeias na própria região do Médio Xingu. “Essa abertura, essa dispersão é uma característica deles. Tem a ver com o fato de serem faccionalistas, que se dividem muito em função dos grupos familiares”, explicou Luz.
Embora sejam conhecidos pelos homens brancos como kayapós – que significa “aqueles que se parecem com macacos”, os indígenas desse grupo não adotam essa denominação. Eles se referem a si mesmos como mebêngôkre, que quer dizer “homens do buraco d’água”. Conforme seu mito de criação, eles moravam no céu, até que um tatu fez um buraco em uma nuvem. Alguns dos indígenas, então, desceram por uma corda, chegando à área cercada por cachoeiras. Um dia, no entanto, a corda se rompeu, fazendo com que os que não conseguiram voltar ao céu iniciassem uma tribo ali. Além da caça e da pesca, o grupo vive da extração de castanhas e do cumaru – um fruto amazônico conhecido como baunilha brasileira. Apesar do assédio ter aumentado, a aldeia tem conseguido manter o garimpo e os madeireiros fora de suas áreas.
“O garimpo afeta a região desde a década de 1970, quando começaram a ser fundadas as cidades por lá. Eles vêm sendo constantemente assediados. Mais ao norte, o garimpo está presente em algumas aldeias de grupos kumaru. Em outras, chegou a ter conflito entre os próprios indígenas. Teve um caso no ano passado, por exemplo, em que um cacique decapitou o outro. Esse assédio fomenta isso”, observou Daniel Tiberio Luz.
Para chegar a Curitiba e resgatar parte da própria história, os seis mebêngôkre escolhidos pela tribo enfrentaram uma odisseia. Eles saíram da aldeia no dia 3 de maio, a bordo de dois pequenos barcos a motor, navegando pelo rio Riozinho. Em um trecho de corredeira, o grupo teve que apear e caminhar pela margem, puxando as embarcações com cordas, por mais de uma hora. Para se alimentar, comiam arroz e farinha trazidos da aldeia, além de peixes que pescavam ao longo do caminho. Após três dias de navegação, chegaram a um ponto conhecido como P-9, que dá acesso à estrada que leva à Ourilândia do Norte. Até a cidade, foram mais sete horas, divididos em dois carros da Associação Floresta Protegida.
O grupo descansou por seis dias em Ourilândia do Norte, até tomarem um ônibus de linha para Marabá. Lá, na madrugada de 13 de maio, pegaram um voo comercial para Curitiba, com escalas em Belo Horizonte e em São Paulo. A aventura parece ter sido maior para as mulheres e para um dos homens, que não falam português e nunca tinham estado em um aeroporto. Pela primeira vez, viram uma escada rolante. “Elas não sabiam se pegavam uma mão na mão das outras. Viam aquele monte de degraus surgindo. Ficaram naquele ‘vai-não vai’. Deram muita risada. Estavam maravilhadas, querendo conhecer tudo”, contou Luz. “Eu não tive medo do avião. Somos de um povo guerreiro. Eu estava feliz de vir a Curitiba”, disse Moxare Kayapó, segundo tradução do marido, Mrynho re Kayapó.
A expedição a Curitiba faz parte de uma iniciativa do Museu Paranaense, viabilizada por meio de um programa público chamado “Se enfiasse os pés na terra”, que consistiu em uma série de ações artísticas e culturais. A iniciativa marca uma nova fase de uma “renovação” do Mupa – fundado em 1876 e terceira instituição museológica pública mais antiga do país. Desde o início da década de 1990, o museu mantém o acervo de Vladimir Kozák. Nascido em 1897, numa região do antigo Império Austro-Húngaro em que hoje fica a República Tcheca, ele chegou ao Brasil em 1924 e, após passar por diversas cidades, se estabeleceu em Curitiba, trabalhando na Companhia Força e Luz do Paraná. Apesar de ser engenheiro mecânico de formação, o tcheco filmava, fotografava e pintava com técnicas muito refinadas, o que chamou a atenção dos intelectuais locais. Contratado pelo Mupa em 1946, fez uma série de expedições a diversos territórios indígenas, com recursos próprios. De certa forma, a vinda dos mebêngôkre a Curitiba reconecta as duas pontas da história.
“Essa vontade de trazê-los estava conectada a ações que temos feito, olhando nosso acervo e tentando entender as lacunas, a partir da aproximação com os protagonistas das histórias que temos, aqui, guardadas. É uma releitura. Não é apagar o que tinha, mas criar novas perspectivas”, definiu a diretora do Mupa, Gabriela Bettega. “A vinda específica dos mebêngôkre se deve a esse acervo imagético do Kozák. Para que eles pudessem olhar para a própria história, a partir dos registros do Kozák”, acrescentou.
Os contatos do museu com os mebêngôkre começaram no fim de janeiro, por intermédio da Associação Floresta Protegida. Como é de se supor, a vinda dos indígenas requereu uma logística intrincada, que envolveu todo o corpo técnico do museu – e videochamadas semanais com a aldeia. Já em Curitiba – antes de vasculharem o acervo do Mupa – os mebêngôkre participaram de um evento aberto, realizado em 14 e 15 de maio, dentro do programa público. Na ocasião, as indígenas fizeram tradicionais pinturas corporais kayapós em visitantes do museu, com tintas feitas de jenipapo e carvão. Concentradas, elas pareciam não se importar com o assédio do público – em dois dias, quase 800 pessoas passaram pelas oficinas – ou com os flashes e as selfies. Algumas pessoas chegavam a tentar entabular conversa com as mebêngôkre, por meio de sinais. “Eu estou gostando muito de trabalhar aqui no museu e de mostrar a nossa cultura, as nossas pinturas para o povo de Curitiba. Nós viemos de longe para isso. Eu fico com orgulho”, disse Moxare.
A estadia na capital paranaense propiciou aos mebêngôkre uma imersão no cotidiano do homem branco – inclusive, com alguns choques culturais que poderiam advir dessa aproximação. O grupo ficou em uma casa alugada, de três quartos, bem perto do Aeroporto do Bacacheri, um terminal voltado a pequenas e médias aeronaves executivas. No início, se assustavam com os aviões que sobrevoavam, baixinho, a residência, a caminho da pista de pouso. Um restaurante local forneceu as refeições, de acordo com as especificações do grupo: um assado, arroz, feijão e farinha puba – mais granulada que as farinhas comuns –, além de muitas frutas. Após o almoço, uma mebêngôkre era capaz de comer, sozinha, metade de um mamão formosa, por exemplo. Depois de uma das refeições no museu, os visitantes também provaram o pinhão, a semente comestível da araucária e um dos símbolos de Curitiba – que, em guarani quer dizer “terra com muito pinheiro”. “Mejtirekumrej! Parece castanha, tem gosto de inhame”, definiu Kokodjy, admirando as duas araucárias do jardim do museu.
O grupo também sentiu na pele as diferenças climáticas. Na terça-feira (17), os termômetros chegaram a marcar 4ºC. Ainda assim, os indígenas se agasalhavam apenas com uma blusa de lã ou de moletom e não usaram calçados – apenas chinelos de dedo. As mulheres dispensaram as calças, permanecendo o tempo todo de saia ou vestido. Quando o vento soprava com maior intensidade, no máximo, usavam uma manta fina como xale. Mesmo com o frio agudo, todos enfrentaram o chuveiro, tomando banhos gelados. “Eu estava preocupado com essa questão do clima, mas que nada! Eles parecem gostar desses desafios. Encaram como se fosse uma prova de bravura”, disse Daniel Tiberio Luz.
Os mebêngôkre quiseram conhecer o mar, e o Mupa, numa van, levou-os até Caiobá, praia localizada em Matinhos, no litoral paranaense, a uma hora e meia de Curitiba. Mais curiosas, as mulheres molharam o pé e fizeram questão de beber um pouco da água, duvidando que fosse, mesmo, salgada. Mais introspectivo, Mrodjãnh ficou contemplando o horizonte, parado. Mrynho (sem camisa) e Beppre tiraram fotos com o celular, para mostrar na aldeia. Por fim, todos quiseram saber o que havia “do outro lado” do Oceano e ficaram deslumbrados quando Luz contou-lhes que havia um continente.
Na tarde de quarta-feira (18), os seis indígenas embarcaram de volta ao Pará, carregando na bagagem sacos de pinhão, artefatos que ganharam de presente de indígenas de outras etnias e, é claro, as fotos e os vídeos do acervo de Kozák. “[A visita] foi muito importante para o nosso povo. Estamos levando um pouco da nossa história, que tinha no museu, e estamos levando um pouco de Curitiba. Também deixamos aqui um pouco da nossa cultura. Queremos voltar, vir mais vezes”, definiu Beppre. “Enxergo isso como o início de um relacionamento constante, um caminhar juntos. É um pouco diferente de ações que se deram no passado. Agora não tem um caráter de exploração científica, mas de contarmos juntos uma nova narrativa. Precisamos deles no museu, para personificar esse acervo. Seria fantástico se o museu pudesse fazer isso com todos os povos de que temos acervo”, concluiu Gabriela Bettega.