O roteiro é bastante conhecido: nas proximidades das eleições, um político anuncia que vai dar uma solução definitiva para a cracolândia. Diz reconhecer a complexidade do tema e que esse é um problema de “saúde pública”, para no momento seguinte anunciar uma série de ações… policiais.
Em 2012, a Prefeitura de São Paulo e o governo do estado anunciaram a operação “Centro Legal”, nome bonito logo rebatizado popularmente para operação “dor e sofrimento”. A premissa era de que seria necessário gerar “desconforto” ao usuário de crack para estimulá-lo a buscar tratamento. As imagens da época ficaram marcadas, com carros da Polícia Militar escoltando de um lado para o outro o fluxo de dependentes químicos, em um movimento que ficou conhecido como as procissões do crack.
O que o governador Rodrigo Garcia, também candidato ao Palácio dos Bandeirantes, anuncia agora para a região, com apoio do prefeito Ricardo Nunes, não tem nada de novo. Usar forças policiais para apreender pertences e cachimbos, e forçar deslocamento destas pessoas, além de não ter base legal, não aumenta a procura por tratamento, como têm afirmado os políticos. Até agora o resultado obtido nesta ação, como nas anteriores, foi dispersar o fluxo de usuários, fazer com que eles se desloquem desordenadamente pela cidade, multiplicando minicracolândias.
Nas últimas semanas, assistimos a inúmeros episódios em que a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar empregaram munições químicas para dispersar usuários e fazer remoções na Praça Princesa Isabel. Tem sido recorrente o uso de balas de borracha, muitas vezes disparadas a curta distância contra alvos indiscriminados buscando dispersar pessoas, o que é um desvio de finalidade para o uso deste tipo de artefato que só poderia ser empregado contra um suspeito que pratica alguma violência ou ameaça. Na semana passada, três policiais civis do Garra apontaram armas e fizeram disparos com espingardas e pistolas contra usuários. Alegam que foram disparos de advertência para o chão. Raimundo Fonseca, um dependente químico de 32 anos, foi atingido no peito e morreu no mesmo dia.
Os policiais, sem uniforme nem equipamento de proteção, alegaram agir contra a depredação de patrimônio e comércios do local. Contudo, o que se vê é a estratégia de empregar a força para lidar maciçamente com um problema de saúde pública. Trata-se de uma estratégia antiga, desgastada, muitas vezes ilegal e comprovadamente ineficaz. O disparo de armas de fogo (uso de força letal) não é autorizado nesses casos. A lei federal 13.060, de 2014, é explícita ao dizer que não é legítimo o uso de arma contra pessoa desarmada e que não represente risco ao policial ou a terceiros.
Vemos, portanto, uma forma de agir que banaliza o uso da força, tão caro à polícia, e cria problemas para as próprias equipes de segurança. É comum ouvir dos policiais que esse tipo de ação nada mais é do que enxugar gelo e que uma abordagem mais completa, investindo em saúde pública e ampliação dos serviços de atendimento e acolhimento a esse público seria muito mais eficaz. Causa mais estranhamento, ainda, o fato de que o governo, que vem apoiando a Polícia Militar de São Paulo na sólida política de gestão, com redução expressiva de letalidade e vitimização policial, seja o mesmo que na cracolândia incentive o uso da força, inclusive com uma morte cometida por um policial civil. Um contrassenso.
A cracolândia deve ser tratada como um problema social e de saúde pública. Para as demandas específicas de segurança pública, o esperado para a Polícia Civil é investir na investigação e localização dos pontos de armazenamento de drogas, nos arredores do fluxo e dos fornecedores que abastecem a região, como visto em algumas etapas da operação Caronte (com uso de drones para identificação de fornecedores). A Polícia Militar e a Guarda Civil precisam investir em patrulhamento, prevenção e repressão de crimes e comportamentos efetivamente violentos, além de apoiar atividades dos assistentes sociais e de saúde, quando requisitados. Banalizar o uso da força é uma opção que, além de ineficiente, desrespeita todos os envolvidos, dos usuários aos próprios policiais.