Esta reportagem faz parte do #NarcoFiles: A Nova Ordem do Crime, uma investigação jornalística transfronteiriça sobre o crime organizado global, suas novas estratégias, suas ramificações e aqueles que o combatem. O projeto, liderado pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) em parceria com o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), começou com o vazamento de e-mails do Ministério Público da Colômbia que foram compartilhados com a piauí e outros veículos de mídia ao redor do mundo. Jornalistas examinaram e confirmaram as informações juntamente com centenas de outros documentos, bancos de dados e entrevistas.
Com colaboração da CNN.
Em 2021, uma onda de assassinatos chocou os moradores de Boa Vista. No começo do ano, o corpo de Ronniel Padilla, um jovem de 17 anos, foi encontrado envolto em plástico preto. Ele tinha as mãos e os pés enrolados num cordão de nylon, e marcas de perfuração espalhadas pelo corpo. Quatro meses depois, a vítima foi Luis Carlos Barrios, de 40 anos, encontrado dentro de um saco de lixo. Seu corpo tinha sido mutilado. Na mesma época, três pessoas foram executadas a tiros na cidade. Boa Vista terminou o ano como a quinta capital brasileira com maior índice de mortes violentas – 35 por 100 mil habitantes.
As vítimas tinham algo em comum: todos eram migrantes venezuelanos. Segundo as investigações da Polícia Civil, eles foram assassinados a mando de criminosos do Tren de Aragua, facção criminosa que atua na Venezuela e, nos últimos anos, vêm avançando sobre a fronteira com o Brasil. Entre março e agosto de 2021, a polícia atribuiu doze assassinatos em Boa Vista ao Tren de Aragua. Quatro vítimas foram esquartejadas.
“Vários venezuelanos estão sendo mortos com decapitações e esquartejamentos, e um dos motivos dessas mortes são acertos de contas por dívidas de consumo de entorpecentes”, informou um relatório assinado em agosto de 2021 pelo delegado da Polícia Civil Leonardo da Cruz Barroncas. O Tren de Aragua surgiu por volta de 2012 em um presídio do estado de Aragua e é reputado como uma das facções mais violentas da Venezuela. Emprega métodos bárbaros contra seus adversários. As execuções muitas vezes são filmadas.
A influência do grupo em Roraima cresceu conforme aumentava o fluxo de venezuelanos na fronteira. Entre 2015 e 2019, foram registrados 178 mil pedidos de refúgio ou residência temporária no Brasil. Com o agravamento da crise econômica na Venezuela, esse deslocamento se tornou mais intenso. Roraima teve, em 2022, o maior crescimento populacional do país, mas ainda é o estado menos populoso de todos: tem 637 mil habitantes, segundo o IBGE.
Em 2018, Roraima registrou a maior taxa de mortes violentas por 100 mil habitantes do país, uma alta de 54% em relação ao ano anterior. Isso fez com que, em 2019, o governo federal assinasse um acordo de cooperação com o governo roraimense para criar a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado. Segundo a Polícia Federal, a alta dos homicídios naquele momento era causada pela atuação do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção que surgiu em São Paulo e hoje tem ampla presença nos estados amazônicos.
De lá para cá, a presença de facções venezuelanas se tornou mais ostensiva. O Tren de Aragua é a principal delas, mas não a única: há indícios também da presença dos grupos Tren de Guayana e Sindicato em Roraima, em alguns casos se aliando a facções brasileiras. Um relatório de outubro de 2021 assinado pelo delegado da PF Alan Gonçalves aponta que, naquele ano, quase todas as drogas e armas apreendidas no estado vinham da Venezuela. Entre 2019 e 2021, mais de uma centena de traficantes foram presos na região, segundo a PF.
A marca registrada do Tren de Aragua é a violência. O grupo foi formado no presídio de Tocorón, onde os criminosos eram organizados a ponto de se autogerir. Em entrevistas à imprensa, o comandante da polícia venezuelana, Remígio Ceballos, relatou que já foram encontrados na prisão fuzis de alta precisão, granadas, lança-foguetes e até máquinas para minerar bitcoin. Após tomar alguns bairros próximos ao presídio, o grupo se espalhou pelas regiões fronteiriças da Venezuela e depois para a Colômbia, Peru, Chile e outros países.
Integrantes da facção costumam postar vídeos chocantes nas redes sociais, mostrando as vítimas implorando antes de serem executadas – método pensado para aterrorizar os adversários. Os assassinatos são cometidos com violência extrema. Em Boa Vista, parte das vítimas identificadas pela polícia tinha sinais de tentativa de esquartejamento. A principal atividade da facção é o tráfico, embora também comande casas de prostituição.
“O Tren de Aragua é hoje a organização mais destrutiva da América Latina”, diz Óscar Naranjo, ex-vice-presidente da Colômbia e chefe de polícia aposentado. Na década de 1980, Naranjo atuou no combate ao famoso cartel de Medellín, liderado por Pablo Escobar.
Agora, há sinais de que alguns membros do Tren de Aragua estão rumando para o Norte. A Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos informou ao OCCRP que, desde outubro do ano passado, 38 suspeitos de integrar a facção venezuelana foram presos no país. Pelo menos dois deles estão sendo processados, acusados de entrada ilegal nos Estados Unidos.
Em outubro de 2021, a Polícia Civil de Roraima deflagrou a Operação Cuchillo. O objetivo era cumprir um mandado de busca e apreensão na casa de Frank Alexander Bolivar Rojas, traficante conhecido como Pure Pito. Segundo as investigações, Rojas foi o mandante do assassinato de Ronniel Padilla, em março de 2021. O criminoso é apontado como uma das lideranças do Tren de Aragua no Brasil. Segundo a polícia, Rojas é responsável por supervisionar a logística de distribuição de drogas e vender armamentos em Roraima.
Os policiais, ao chegarem na casa, apreenderam uma pistola Glock 9mm com 49 munições e encontraram papéis com anotações que pareciam ser uma contabilidade da venda de drogas. Rojas foi preso em flagrante, junto com duas venezuelanas que o acompanhavam naquele momento. A operação, no entanto, não deteve o avanço do grupo criminoso, que está espalhado por diferentes cidades de Roraima e interage com outras quadrilhas.
As delegadas roraimenses Simone Arruda do Carmo e Cândida Alzira Bentes de Magalhães publicaram, no ano passado, um artigo acadêmico intitulado Tríplice Fronteira: Aspectos do Crime Organizado em Roraima. As policiais afirmam, no texto, que “no segundo semestre de 2022 foi confirmada a presença de integrantes das facções criminosas venezuelanas Tren de Aragua, Tren de Guayana e Sindicato em pelo menos quatro bairros de Boa Vista”. Um desses bairros é conhecido por ser reduto do PCC.
As facções brasileiras e venezuelanas, em alguns casos, atuam de maneira coordenada. “É uma união de forças”, explicou Carmo em entrevista ao OCCRP. Em julho de 2020, a Polícia Federal cumpriu dezenove mandados de prisão contra venezuelanos acusados de cerrar fileiras com o PCC. Segundo a PF, o grupo atuava dentro e fora de presídios e tinha sido responsável por ao menos 29 crimes no Brasil, entre eles homicídios, latrocínios, sequestros e tráfico de drogas. Foram denunciados à Justiça por participação em organização criminosa armada.
O OCCRP teve acesso a um documento de inteligência da Secretaria de Segurança Pública de Roraima, datado de março de 2023, que detalha o poderio bélico das facções presentes em Roraima. Segundo o relatório, os grupos criminosos andavam armados com AK-47, UZI e AR-15. O secretário de Segurança Pública, Edison Prola, que assina o relatório com o capitão da PM Ubirajara Capaverde e o delegado de polícia José Avelino Junior, pediu ajuda do governo federal para fazer frente aos criminosos. “Estamos solicitando armamento e munição adequada e proporcional, a fim de nivelar as condições de atuação no enfrentamento ao crime organizado nas áreas da Amazônia pertencente ao estado de Roraima.” Em julho, o governo federal anunciou um repasse de 38 milhões de reais do Fundo Nacional de Segurança Pública para o estado. O dinheiro terminará de ser entregue no final do ano.
A reportagem tentou ouvir o advogado de Frank Alexander Bolivar Rojas, Antônio Agamenon de Almeida, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. O espaço segue aberto para eventual manifestação.