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    Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

questões jurídico-políticas

Falta de decoro sem impeachment é crime sem castigo

Requisito jurídico para abrir processo contra Bolsonaro por crime de responsabilidade foi cumprido; o resto é política

Rafael Mafei | 28 fev 2020_14h29
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O impeachment é jurídico e político. Esse truísmo, se não for bem interpretado, serve de tapume para abusos e evasivas.

O abuso: alicerçar a tese descabida de que o Congresso define crimes de responsabilidade como bem quiser, de acordo apenas com a conjuntura política do dia. Crimes de responsabilidade são atentados graves à Constituição, praticados pelo presidente que tem o dever de respeitá-la e fazer com que ela seja respeitada; se configurados, permitem sua remoção pelo Congresso, como medida extrema de salvaguarda democrática. Tal definição é jurídica e se faz não apenas à luz da lei e dos precedentes relevantes sobre a matéria, mas também dos pressupostos do impeachment dentro do quadro de uma democracia presidencialista.

A evasiva: autoridades políticas incumbidas de levar adiante o processo de impeachment se esconderem atrás de supostas polêmicas de interpretação legal. Polêmicas podem ser esticadas até o infinito se a autoridade competente para decidir sobre elas assim desejar.

Como pretendo demonstrar, não existe mais dúvida jurídica sobre os crimes de responsabilidade por quebra de decoro por parte de Jair Bolsonaro. Há crime, e o requisito jurídico para seu impeachment está atendido. A discussão pertence, doravante, apenas ao terreno da prudência das lideranças políticas do país, especialmente Rodrigo Maia.

Impeachments têm lugar quando estão presentes dois requisitos concomitantes: 1) uma autoridade abusando de seus poderes de modo grave, trazendo perigo à integridade de instituições essenciais à democracia (os demais poderes, a imprensa, as organizações da sociedade civil etc.); 2) e quando esses abusos de poder não podem ser contidos de maneira eficaz por meio dos mecanismos ordinários de freios e contrapesos constitucionais, como ações judiciais ou decretos legislativos.

Esse desenho básico ganha contornos diferentes em cada país. No Brasil, é da nossa tradição definir em lei especial os crimes de responsabilidade e as regras de seu processo, bem como dar aos cidadãos, e não à Câmara dos Deputados, a atribuição de oferecer denúncias.

Entre os crimes de responsabilidade de nossa Lei do Impeachment está o de “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Ao contrário de outros crimes, cujas condutas são desenhadas com contornos mais precisos (“permitir que força estrangeira transite pelo território do país quando a isso se oponha o Congresso Nacional”, por exemplo), a definição de conduta indecorosa e indigna exige maior imaginação interpretativa. Mas o crime está na lei e não pode, só por essa dificuldade, ser ignorado.

Seu sentido é simples: ele exige que o presidente guarde limites no comportamento e no verbo, de modo que não apenas preserve a respeitabilidade da Presidência, mas também que não se aproveite do peso de seu cargo para atacar e constranger as instituições, autoridades e profissionais encarregados de refreá-lo, fiscalizá-lo e dar transparência a suas ações.

 Não há nada de estranho em meros atos de fala implicarem crimes de responsabilidade. A Lei do Impeachment é repleta de crimes que são cometidos apenas com a palavra: “hostilizar”, “constranger”, “ameaçar”, “incitar”, “provocar animosidade”. 

Esse rol é pedagógico para quem ainda insiste em polemizar quanto à possibilidade de crimes de responsabilidade serem cometidos apenas pela retórica presidencial: a lei corretamente reconhece que o discurso do presidente é uma forma de exercício de poder, e que por isso deve guardar limites de convivência institucional e civilidade política. Ela o faz porque sabe que a palavra presidencial é capaz de gerar consequências tangíveis.

A lei não aceita que um presidente nomeie jornalistas, jornais e redes de TV como adversários do governo, sabendo que a turba que o segue os perseguirá nas redes e fora delas; não aceita que ele provoque assinantes e anunciantes a boicotarem a mídia que o incomoda, sabendo que leitores e empresários que o admiram atenderão a seu apelo; não aceita que ele oferte suas aparições aos veículos que o afagam e que a sonegue aos demais, rompendo com seu dever de impessoalidade; não aceita que ele abra mão do compromisso com a verdade para colocar em dúvida a integridade de repórteres e cientistas que publicam fatos e dados que não interessam ao governo, afetando também a reputação do jornalismo e da ciência; não aceita que ele estimule policiais à violência e criminosos ambientais ao desmatamento, oferecendo leniência que não é sua para dar; não aceita que se regozije com a morte de um adversário da ditadura, regime incompatível com o da Constituição que o presidente deve defender, para atacar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. E a lei, definitivamente, não admite que o presidente da República endosse quem vai às ruas pedir o fechamento do Congresso “chantagista” e do Supremo Tribunal Federal. Tudo isso integra o repertório das violações de Bolsonaro ao decoro presidencial, um rol que ele atualiza diariamente.

Bolsonaro fez carreira no Congresso às custas de uma retórica ao mesmo tempo degenerada e descompromissada com qualquer realização prática. É produto da leniência das sete gerações parlamentares que deram de ombros a seus abusos enquanto deputado: odes à tortura e a torturadores, apelos ao fechamento do Congresso, celebrações anuais do golpe militar de 1964, lamentos pelo baixo número de assassinados na ditadura e insultos misóginos integram a retrospectiva de seus piores momentos, porém únicos de destaque, na Câmara dos Deputados.

Quando deputado, ele ainda podia tentar argumentar que era protegido pela inviolabilidade constitucional por suas opiniões e palavras; como presidente, já não pode mais. Bolsonaro presidente não tem a proteção de que Bolsonaro deputado desfrutou para dizer o que bem lhe aprouvesse, como se não houvesse consequências. Há: jornalistas são ameaçados, assinaturas de jornal são canceladas, ONGs são atacadas, burocratas leais e oportunistas correm para mostrar serviço, seguidores se inflamam nas ruas, palestras são canceladas, famílias são criminosamente expostas. O abuso do poder retórico do presidente produz vítimas reais, enfim; por isso a lei lhe impõe decoro.

É fundamental fixar esta premissa: o requisito jurídico para o impeachment por indignidade e quebra de decoro está cumprido. Quando as denúncias chegarem à mesa de Rodrigo Maia, apenas juízos de conveniência política poderão impedi-lo de prosseguir. É o jogo jogado, e há mesmo sensatas razões para que Maia resista em dar-lhes andamento. A mais óbvia delas, o trauma político que representaria um terceiro impeachment na história recente do Brasil.

Mas a preservação da integridade da Presidência da República exige que, mesmo nesse caso, as lideranças políticas venham a público deixar claro que Bolsonaro cometeu, sim, crime de responsabilidade, e que a decisão de aceitar ou não a denúncia contra ele já pertence ao terreno das avaliações políticas, renovadas à luz da conjuntura de cada dia.

Se alimentar a versão de que ainda há dúvidas jurídicas sobre a ocorrência do crime, Rodrigo Maia emitirá o atestado de óbito da exigência de decoro presidencial: se nem a conduta de Jair Bolsonaro configurar abuso indecoroso do poder retórico presidencial, será o caso de riscar, de uma vez por todas, o crime da lei, e reconhecer que ele é impossível de ser cometido.

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