Apesar do volume e da crueza das revelações dos delatores da Odebrecht, persiste uma enorme lacuna nas centenas de horas de depoimentos judiciais replicados pela imprensa ao longo dos últimos dias. Tanto a companhia quanto os procuradores da Lava Jato estão devendo uma resposta à pergunta que muitos se fazem, a esta altura. Ou o maior esquema de corrupção do planeta se desenrolou nas barbas de juízes ineptos e desinformados, ou a empresa escondeu dos olhos do público (e do Ministério Público) a participação (ou a omissão deliberada, ou a complacência, ou tudo isso junto) do Judiciário nas irregularidades cometidas ao longo dos anos. Quem conhece o mundo dos empreiteiros sabe que uma liminar concedida em um momento estratégico de uma licitação pode virar o jogo a favor de um competidor. Sabe também o valor de uma decisão da alta corte suspendendo investigações da Polícia Federal sobre uma obra ou concorrência. E sabe que, se para a Odebrecht todos tinham um preço, não faz sentido imaginar que os juízes brasileiros eram exceção.
Pelo menos um episódio, em meio a vários outros, os delatores da Odebrecht têm a obrigação de esclarecer. Trata-se de uma história contada em detalhes pelo ex-senador Delcídio do Amaral, em delação. Segundo ele, a presidente Dilma Rousseff nomeou o desembargador Marcelo Navarro para o Superior Tribunal de Justiça em troca de seu voto em favor da soltura de Marcelo Odebrecht e do presidente da Andrade Gutierrez, Otávio Azevedo, na época também preso em Curitiba. Navarro teria sido indicado pelo então presidente da corte, Francisco Falcão, que garantia ter o controle da turma que julgaria os pedidos de habeas corpus dos dois empreiteiros. Com Navarro no time, teria dito Falcão, a soltura era certa. Navarro foi nomeado e realmente votou pela libertação. Mas, segundo Delcídio, os outros membros da turma do STJ teriam ficado sabendo do acerto e se rebelado, votando contra. Os empreiteiros continuaram presos, e a Odebrecht passou a considerar seriamente a hipótese de um acordo com o MP. Todos os citados pelo ex-senador negaram o conluio. Ainda assim, nos subterrâneos de Brasília, circularam diversas versões a respeito dos termos e valores do acerto entre Falcão, o governo e a Odebrecht. A delação dos executivos da empreiteira deveria ao menos esclarecer, afinal, se relato tão grave é verdadeiro ou falso. Até agora, porém, reina o silêncio.
Proteger os membros do Judiciário é a estratégia óbvia para uma empresa que tem um futuro repleto de pendências a resolver com a Justiça e contempla o sério risco de entrar em recuperação judicial. Não é razoável, porém, que uma operação com a envergadura e a ambição da Lava Jato aceite esse tipo de omissão.
Os procuradores certamente perceberam o jogo da Odebrecht e deixaram rolar – pelo menos por enquanto. Fizeram um cálculo político, já que o acordo era considerado essencial para a Lava Jato. Nos últimos momentos da negociação, porém, exigiram algo que deixou os advogados da empreiteira de cabelo em pé: todos os documentos relativos a contratos com escritórios de advocacia feitos pela Odebrecht enquanto durou o esquema de corrupção deveriam ser entregues ao MP – o que só foi feito depois de alguma hesitação. Os investigadores esperam poder identificar, nesses pagamentos, evidências de propinas pagas a juízes por meio de parentes e prepostos. Sabem que, uma vez fechado um acordo, todos estão sujeitos a serem chamados para complementar suas confissões. Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa já estão na fila – esta dificilmente escapará de revelar como conseguiu sepultar, na Justiça, a Operação Castelo de Areia, que apurava um esquema de corrupção semelhante ao descoberto agora. Espera-se que a Odebrecht não seja exceção, e que a caixa-preta do Judiciário venha a ser aberta em breve. Mas essa, a Lava Jato ainda está devendo.