Marília Savarego morreu de falta de informação. Professora e artista circense, atlética aos 31 anos, ela estava despreocupada quando foi a Bragança Paulista fazer uma escalada. Não sabia que se tratava de uma área de risco para o contágio de febre amarela. Uma semana depois do passeio, ela foi internada com dores no corpo e chegou a ser colocada na lista para um transplante de fígado. A intervenção foi feita, mas já era tarde: Marília morreu na sexta-feira, 9 de março, treze dias depois da viagem em que se arriscou sem saber.
A professora de circo e ativista cultural foi vítima da maior epidemia da doença nos últimos setenta anos, que já matou 177 pessoas só no estado de São Paulo. Quando ela esteve em Bragança para escalar com um grupo de amigos, porém, o auge do interesse no assunto já havia passado.
O pico de curiosidade sobre a doença foi registrado em janeiro deste ano, quando uma campanha nacional foi lançada. Mas a preocupação passou rápido: no fim de semana em que a professora participou da escalada em área de contágio, a atenção dos paulistas já havia caído a 20% do que era no auge, dois meses antes, segundo uma análise de buscas na internet por meio da ferramenta Google Trends. E quando Marília morreu, uma semana depois, o número de pesquisas pelo termo chegava a 10% do que foi no pico da procura pela epidemia.
À medida que o interesse cai, porém, a epidemia continua matando. Cerca de 30 novos casos são registrados toda semana só no estado de São Paulo – um número que vem oscilando entre 16 e 54 casos da doença semanalmente, de janeiro para cá. E, de acordo com especialistas, o número de vítimas deve aumentar, justamente por causa da movimentação do vírus a lugares onde é falha a comunicação sobre o risco de contágio. “Houve um descuido nas políticas públicas, sim, e espero que algo seja feito para que outros não sejam vítimas”, disse o pai de Marília, o aposentado Edison Savarego, muito emocionado, em uma conversa por telefone no dia em que foi buscar as cinzas da filha.
Com a procura ativa das pessoas pelo assunto na internet em baixa, uma campanha forte do Estado ganha ainda mais importância. Além dos avisos ineficazes, problemas na estrutura de vigilância e na assistência médica, pouca informação sobre a vacina e cortes no orçamento para o combate ao vírus contribuíram para uma tragédia que não tem data para acabar.
A epidemia que vitimou Marília, mãe de uma menina de 12 anos, feminista, não foi a maior da história recente por acaso. E não há apenas um motivo para explicar sua proporção e o grande número de vítimas. Mas há pistas para elucidar o que aconteceu.
Comunicação pouco eficiente é um dos principais problemas. As informações sobre quais áreas de recomendação de vacina no estado – atualmente, 620 cidades em São Paulo – não têm chegado à população com a urgência necessária. As mensagens confusas provocaram, num primeiro momento, correria aos postos de saúde e, logo depois, apatia em relação ao vírus.
O problema não foi a reação imediata à existência do vírus no estado. Quando um caso foi detectado numa área populosa, em Monte Alegre do Sul, perto de Campinas, em abril de 2017, pesquisadores da Superintendência de Controle de Endemias, a Sucen, foram a campo para estudar qual seria a movimentação do vírus pelo estado. Em 2008 já havia sido registrado um surto, mas em proporções menores – com 30 casos confirmados e 13 mortes, 7% do número de vítimas fatais da epidemia atual.
Os técnicos previram como o vírus se deslocaria calculando a velocidade do mosquito e considerando as áreas de mata e rios dentro do estado. No mesmo mês em que o caso foi confirmado perto de Campinas, tinha-se uma boa ideia do deslocamento e de quando a febre amarela poderia chegar a cada cidade. Era preciso, a partir daí, aplicar as vacinas nas regiões prioritárias e avisar a quem viajaria até elas que havia risco nesses locais.
Mas a forma como o alerta foi dado não foi efetivo – e pessoas como Marília Savarego viajaram sem saber do risco. Para o professor Expedito Luna, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, a ineficácia para criar senso de urgência teve impacto no número de vítimas. “Foi feita uma divulgação nem sempre verdadeira dos eventos adversos. Criou-se uma ideia de que a dose fracionada não seria eficaz, por exemplo. Foi uma grande quantidade de contra-informação e fake news. E o Ministério da Saúde e a Secretaria de Estado fizeram uma divulgação passiva, que dependeu dos veículos de comunicação para divulgarem da maneira como queriam”, disse Luna. “Em outros momentos, se contratava agências e eram comprados espaços publicitários, mas desta vez os órgãos pareceram esperar a boa vontade dos veículos de informação, o que, com tanta informação circulando, é um erro.”
Responsáveis por coletar o mosquito e calcular sua movimentação, integrantes da Sucen ouvidos pela piauí criticam a comunicação sobre os lugares sob risco de contágio. Nesse momento, as epizootias – nome técnico para a infecção e morte de macacos – continuam ativas no estado e ainda deve haver mais vítimas, como alertou um integrante do órgão envolvido no planejamento do combate à epidemia. “Infelizmente, ainda deverá haver vítimas em Ubatuba, Registro, Vale do Ribeira. O vírus está circulando, indo em direção a esses lugares, e há uma procura menor da população pela vacina”, disse o funcionário, que trabalha no combate ao vírus desde o início da epidemia.
A pesquisadora Cláudia Malinverne, da Faculdade de Saúde Pública da USP, estuda comunicação de risco em casos de saúde pública e, em especial, a febre amarela. Segundo ela, em 2008, tratou-se como epidemia o que era um surto da doença em São Paulo. Houve uma comunicação excessiva, especialmente de jornais e tevês, o que gerou uma corrida à vacina. Já na atual epidemia, para a pesquisadora, houve “cautela excessiva”. “A baixa cobertura atual da febre amarela tem a ver com a quebra de credibilidade da vacina, o que, para mim, está relacionado à crise de 2008 e a mudanças de discurso oficial. Primeiro se dizia que ela só tinha validade por dez anos. Depois, afirmou-se que é para a vida inteira. Então foram divulgadas as contraindicações e casos de reações adversas, e, por fim, instituiu-se a dose fracionada. O pacote interpretativo não faz sentido para as pessoas. E o público-alvo deixou de acreditar no Estado.”
A diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica do estado, o CVE, Regiane de Paula, rebate as críticas e afirma que a comunicação foi feita “por todos os canais possíveis”. “Publicamos quais são as áreas de risco de febre amarela, temos boletins epidemiológicos, alertamos sobre viagens. Isso está em sites, redes sociais, jornais e televisão. Nossas 27 regionais estão conversando com os secretários para criarmos um fluxo e alinharmos a comunicação. Fizemos várias conversas com os municípios para falarem da melhor forma com o cidadão. Mas isso não está sendo suficiente. É como se houvesse um esquecimento coletivo. Usamos todos os artifícios para levar à população a informação de que a vacina é necessária.”
De acordo com a diretora do CVE, nas 54 cidades que entraram na região de recomendação da vacina em janeiro de 2018, apenas 58% da população foi vacinada – uma cobertura que o estado considera abaixo do esperado. Sobre a comunicação de locais de risco, a Secretaria de Estado da Saúde afirmou por meio de nota que “porta-vozes têm dado entrevistas constantemente a todos os veículos de imprensa, relatando todas as medidas e ressaltando a importância da vacinação.”
O impacto da epidemia em Mairiporã – cidade mais afetada pela febre amarela no estado, com 42 mortes e 157 casos confirmados – é um exemplo contundente da necessidade de mensagens efetivas aos que viajam a lugares de risco. Mais da metade dos casos, 80 infectados, foram de pessoas que não viviam no município. Distante 40 quilômetros de São Paulo, é um lugar procurado para casamentos e festas justamente por ficar em área de mata.
Apesar de a estratégia de vacinação ter criado áreas prioritárias para os residentes, a população de outros lugares, desinformada sobre a dimensão da doença, foi exposta ao vírus. “Fiquei sabendo do primeiro caso de febre amarela contraído no meu município pela tevê”, disse Grazielle Bertolini, secretária de saúde de Mairiporã, em um evento sobre febre amarela na Faculdade de Saúde Pública da USP. “Era de uma pessoa de fora da cidade. E, no passo seguinte, eu não sabia o que tinha acontecido com os pacientes que foram para os hospitais de referência. Há um gargalo nesse sistema de informação.”
No caso do grupo de Marília Savarego, que foi ao interior do estado para escalar, não houve comentários antes da viagem a respeito do risco de infecção de febre amarela. “Eu não sabia que Bragança era uma área de risco”, afirmou Eliane Kuroda, que estava com ela naquele dia. “Foi tudo muito inesperado, pela idade dela, pela rapidez e pela intensidade”, disse a amiga Bianca Sanches, em uma visita à Casa 345, escola fundada por Marília e outros treze professores em janeiro deste ano. No local, um sobrado amarelo de janelas azuis na Vila Olímpia, na Zona Sul da capital paulista, há fotos dela em todos os cômodos. Marília aparece nas imagens ajudando na reforma da casa: arrancando rodapés, mexendo com ferramentas, pendurada em um andaime. “Ela comentou que viu uma placa na mata alertando sobre a doença, mas só quando já estava lá”, complementou Camila Santos, amiga com quem a professora de circo morava.
Um outro problema apontado por municípios que enfrentam a epidemia é o atraso para padronizar os atendimentos. O protocolo de assistência, que determina quando levar um paciente a um hospital de referência – como o Hospital das Clínicas de São Paulo e o Emílio Ribas –, foi criado apenas quando já havia casos graves. “Falta diálogo entre as instâncias de controle da epidemia, e as definições de casos suspeitos são conflitantes. A ficha de notificação distribuída em 2011 tem uma definição, o manual de 2017 tem outra, e os materiais de apoio têm outras. Minas criou seu próprio critério e nós fizemos o nosso, que foi de vigilância laboratorial. Essas conversas não acontecem na velocidade que nós, gestores, precisamos”, disse a secretária de saúde Grazielle Bertolini.
Para completar esse cenário, cortes de orçamento prejudicaram o combate à doença. Em 2016, antes de a epidemia atingir de vez o estado, o orçamento para Vigilância em Saúde foi de 162 milhões de reais, de acordo com o site da Transparência. Já em 2017, o orçamento para a área passou a 138 milhões, um corte de 15%. Na Sucen – que atua junto com o CVE e o Instituto Adolfo Lutz no controle da epidemia – houve um corte de 33% nas diárias de viagem, indispensáveis em um trabalho como esse. Sem recursos para as diárias, a coleta de mosquitos para identificar áreas de riscos foi prejudicada.
Muitas vezes os funcionários ficaram na sede do órgão sem ter o que fazer, “lendo jornal”, como disse um deles. A manutenção de equipamentos também apresentou problemas – o freezer usado para preservar os mosquitos coletados quebrou e um ventilador teve de ser adaptado para acondicionar o material.
Para Regiane de Paula, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica do estado, os recursos para o CVE, pelo menos, foram suficientes. “Fizemos coletas e estabelecemos a prioridade de análise. Oferecemos carro, motorista e ajudamos os municípios com pagamentos para o controle epidemiológico. Estivemos o tempo todo no território”, disse. A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo afirmou que o investimento para combate a arboviroses (além de febre amarela, dengue, zika, entre outras doenças) foi de 120,3 milhões de reais em 2017, e que vai gastar 122 milhões de reais neste ano.
Em 20 de março, o Ministério da Saúde anunciou que todo o território brasileiro será área de recomendação de vacina de febre amarela. A imunização será gradual, com começo previsto para este ano e previsão de acabar em abril de 2019. A intenção é antecipar a proteção ao vírus que pode ter vindo para ficar. “A febre amarela chegou ao Brasil pelo litoral no século XVI e agora o vírus está voltando para este mesmo lugar”, afirmou o professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Eliseu Waldman. “Teremos que encontrar recursos, produzir uma quantidade maior da vacina e progressivamente imunizar a população toda.”