Filmes de curta-metragem brasileiros demonstram vitalidade e respeito à dignidade humana, enquanto o espetáculo da política se degrada a cada dia. São faces opostas do mesmo país – uma se dedica em âmbito modesto a elevar o espírito, a outra representa o que há de pior.
Depois de fechar o bico por algumas semanas, quem havia silenciado agrediu um repórter que fez a nova pergunta que não quer calar – “…por que sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil reais de Fabrício Queiroz?”. Sucedendo a anterior – “Cadê o Queiroz?” –, já esclarecida, a indagação recente permanece sem resposta enquanto fecha o cerco a você sabe quem. Fica confirmado, ainda uma vez, que o impulso espontâneo dele é bater, ferir, em especial mulheres, ou ofender homens desde que esteja protegido por seus seguranças.
Personagem da fábula do poder brasiliense, o advogado Frederick Wassef reapareceu no enredo, depois de ter sumido desde que Queiroz foi encontrado, e preso, na sua casa, em Atibaia. Wassef deixou, em seguida, de representar o morador provisório do Palácio da Alvorada e seu zero primogênito. Além de ter recebido 2,3 milhões de reais, entre dezembro de 2018 e maio deste ano, repassados por uma empresa que tem contratos com o governo federal, Wassef pagou 276 mil reais ao advogado que representou o atual primeiro mandatário da nação em duas ações penais no Supremo Tribunal Federal por apologia ao estupro e injúria dirigida à deputada federal Maria do Rosário, em 2014. Em entrevista ao Globo (27/08), o ex-advogado do presidente e de seu filho mais velho nega, porém, haver alguma irregularidade nessas operações, assim como que ele tenha algo a ver “com Fabrício Queiroz em dezembro de 2018”. Em tempo: mentir, no Brasil, não é crime. Aguardemos, pois, os próximos capítulos em que essas tenebrosas transações devem ser esclarecidas.
Permanece por desvendar se há e qual é a relação entre o núcleo do poder federal e a queda do governador do Rio de Janeiro, afastado do cargo por 180 dias pelo Superior Tribunal de Justiça. Suspeito de envolvimento com o desvio de recursos na área da saúde, além de já responder a processo de impeachment instaurado pela Assembleia Legislativa, o governador já é considerado carta fora do baralho. Que a desventura do ex-juiz Wilson Witzel esteja sendo comemorada no Palácio do Planalto, não parece haver a menor dúvida.
A sordidez humana atinge o paroxismo no caso da pastora, cantora e deputada federal acusada de ser a mandante do assassinato do pastor que, além do seu marido, era também seu filho adotivo e ex-genro. O crime ocorreu em 2019, cometido por um dos 55 filhos da pastora, entre naturais e adotivos, e teria contado com a participação ou conivência de vários deles. Por mais diferentes que sejam, o fato de ela e você sabe quem terem sido eleitos, além de ferir o sistema político, é sintoma do grau de deterioração mental a que chegou a sociedade brasileira.
Enquanto isso, 212 filmes apresentados online no 31º Festival de Curtas Metragens de São Paulo, entre 20 e 30 de agosto, nos deram sinais alentadores. Alguns deles foram comentados na coluna da semana passada. Destaco ainda A Morte Branca do Feiticeiro Negro (10’, 2020), de Rodrigo Ribeiro, que recebeu o Prêmio Revelação, e Cinema Contemporâneo (5’, 2019), de Felipe André Silva, um atestado de talento, inteligência e coragem ao qual me parece ter faltado o merecido reconhecimento.
Ao final de A Morte Branca do Feiticeiro Negro, legendas informam que o corroteirista Timóteo, a quem o filme é dedicado, foi um “negro escravizado” que “morreu em Salvador, no ano de 1861”. A carta de suicídio dele, apresentada na íntegra, frase a frase, em sua grafia original, é superposta à imagem ao longo do curta-metragem, e constitui uma de suas principais vertentes narrativas.
Outra característica de A Morte Branca do Feiticeiro Negro resulta dos planos colhidos em diversos documentários brasileiros, de No Paiz das Amazonas (1922) e Alma do Brasil (1931) a O País de São Saruê (realizado em 1971, mas só lançado em 1979) e De Raízes & Rezas, Entre Outros (1972), além de alguns mais. Sem narração e diálogos, a trilha musical e os efeitos sonoros dissonantes completam o conjunto de recursos de que o roteirista e diretor lança mão.
Ribeiro recria a atmosfera do tempo da escravidão com imagens da antiga sede de uma fazenda, das plantações de algodão e café. Articula a carta de suicida com fragmentos visuais quase sempre pouco definidos, às vezes em alto contraste ou mesmo danificados, além de alguns planos gravados por ele e sua equipe. Dentre esses últimos, destaca-se, conforme Ribeiro explica em e-mail recente, a senzala localizada no subsolo da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador, construída por escravos e onde moravam, ao que parece, idosos e inaptos para trabalhos braçais.
Um plano merece menção especial. Colhido em Alma do Brasil, de Líbero Luxardo, transposto quase nove décadas depois para A Morte Branca do Feiticeiro Negro, e incluído mais de uma vez, adquire novo sentido – imóvel, o homem negro em close, com os olhos fixos na lente da câmera, faz apenas um discreto movimento da mão no sentido do pescoço. A expressão do olhar intenso é difícil de descrever. Parece transparecer ódio, desejo de vingança, em contraste flagrante com o tom da carta de suicídio.
No prólogo, o tema subjacente de A Morte Branca do Feiticeiro Negro é definido de modo preciso por meio da palavra quicongo mbanzu, origem do substantivo masculino banzo – nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil; e sinônimo dos adjetivos triste, abatido, pensativo. É desses sentimentos que o filme se nutre, através da carta de suicídio de Timóteo, que, ao pesquisar sobre o banzo, Ribeiro encontrou “na incrível dissertação do professor baiano Jackson Ferreira Loucos e pecadores: suicídio na Bahia do século XIX, de 2004”, conforme explicou no mesmo e-mail mencionado acima. A carta é em si mesma um documento extraordinário que ganha força adicional ao ser reproduzida no filme. Começa pedindo “Perdaõ”, com til no “o” mesmo. Segue-se o trecho reproduzido a seguir com a mesma grafia do filme e barra oblíqua indicando a divisão das legendas:
“A muito tempo que tenho dezejo de naõ existir/pois a vida me hé abborrecida/porem naõ existindo naõ será mais/pois quem pode viver sem ter disgostos/que vá vivendo/A Iaia Pombinha e a toda família d’ella/sou muito grato/por isto pesso pelo amor de deos/Perdaõ/sendo que com esta vez hé a 3ª/que eu tenho tentado contra minha existência…”.
Quanto ao título, colhido em A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira, de Renato Ortiz, publicado em 1988, Ribeiro explicou ter dito a Ortiz que há “parentesco de alma” entre o livro e o filme – “o livro registra um processo externo de branqueamento de uma religião de matriz africana”, enquanto “o foco no filme é num cruel processo interior de morte. O título traduz a intenção de apontar os ecos da escravidão na formação do Brasil, trazendo uma perspectiva de escravizados que se encontravam nas encruzilhadas entre a vida e a morte, a materialidade e o desencarnado, a pátria e o exílio, o silêncio e o ruído”.
No encerramento, mulheres e homens escravos posam na colheita de café para a lente de Marc Ferrez, em 1882.
Cinema Contemporâneo, de Felipe André Silva, é a história de uma fotografia, única imagem do filme, da qual são feitos, de início, recortes aproximados difíceis de situar. Pouco a pouco, os enquadramentos são ampliados, permitindo distinguir que se trata de um grupo posando diante da câmera. Não é um grupo qualquer. Através da voz em off na primeira pessoa, fica-se sabendo que é um grupo de estupradores cujos rostos borrados impedem que sejam identificados. O único rosto revelado é o da vítima – um menino sorridente, supostamente o narrador quando “bem novo”. O impacto da história e o modo de contá-la, que inclui certa ironia, põem em questão a moda de documentários na primeira pessoa.
Tratar de senhores e escravos, estupradores e estuprados é a forma que A Morte Branca do Feiticeiro Negro e Cinema Contemporâneo encontram para sinalizar a barbárie das relações que persistem entre nós – inclua-se aí a prepotência e a corrupção praticadas no exercício do poder.
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Na próxima terça-feira, 08/09, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Jorge Bodanzky. Ao completar 198 anos de independência, o descaso histórico com os povos indígenas, além da violência de que são vítimas, persistem no Brasil. Serão abordados esse e outros temas ligados aos filmes de Bodanzky. Haverá exibição, com exclusividade, de trechos inéditos de Amazônia: a nova Minamata?, novo documentário do realizador que aborda o perigo invisível representado pelo envenenamento pelo mercúrio utilizado nos garimpos da Amazônia. Acesso através do link https://www.youtube.com/watch?v=6UZBWZPAAn0 .
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Resistindo heroicamente para sobreviver, após ter sido obrigada a entregar o edifício sede aos Correios, a Escola de Cinema Darcy Ribeiro oferece cursos regulares online de direção, roteiro e montagem, a partir de 08/09, de segunda a sexta-feira, de 19 às 21 horas. Inscrições através dos links http://bit.ly/ECDR-direcao ; http://bit.ly/ECDR-roteiro e http://bit.ly/ECDR-montagem .
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De 8 a 27 de setembro, o DOBRA – Festival Internacional de Cinema Experimental será hospedado pelo Canal da Cinemateca do MAM, na plataforma Vimeo, e exibido no site do Festival, integrando a celebração dos 65 anos da Cinemateca. Todas as sessões dos dez programas de filmes são gratuitas e estarão disponíveis em www.festivaldobra.com.br . Haverá ainda um curso e bate-papos online. Com a curadoria de Cristiana Miranda, Lucas Murari e Luiz Garcia, foram selecionados 44 filmes, sendo catorze brasileiros, dos 1.094 inscritos de 71 países.
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A Trilogia do Futebol, de Lucho Pérez Fernández que se apresenta como “assistente de mágico e fabulador de verdades inventadas”, continua em https://vimeo.com/440045735.
A Copa dos Refugiados, Os Boias-Frias do Futebol e Boca de Fogo, três documentários de curta-metragem, estão acessíveis em programa único de 37 min, e permanecem online até 20/9. O diretor é ex-aluno do curso Cinema Documentário da Fundação Getulio Vargas.