A última edição da revista britânica Antiquity, uma das mais respeitadas da arqueologia, traz um pacote de artigos que aponta para o fim de uma controvérsia que se arrasta há décadas. O material relata os últimos resultados do grupo de pesquisadores franco-brasileiros que estudam os sítios da Serra da Capivara, no Piauí. Mais uma vez, eles relatam ter encontrado ali indícios da presença humana com mais de 20 mil anos – no passado, achados com idade parecida foram contestados pelos colegas.
A novidade é que, na mesma edição do periódico, foram publicados cinco avaliações do trabalho escritas por pesquisadores independentes, incluindo antigos opositores dos resultados. Embora críticas ainda persistam, é crescente na comunidade a convicção de que de fato havia grupos humanos no Nordeste brasileiro bem antes do que se imaginava, embora ainda não haja um modelo de ocupação da América capaz de explicar como eles foram parar ali.
Alegações da presença humana muito antiga no Piauí despertam a desconfiança dos arqueólogos que investigam a ocupação da América, em parte por serem incompatíveis com a hipótese mais aceita para o povoamento do continente, segundo a qual os primeiros americanos entraram pelo Alasca vindos da Sibéria, em algum momento por volta de 16 mil anos atrás. Os primeiros indícios da presença humana muito antiga no Piauí, descobertos no fim dos anos 1970 pela arqueóloga brasileira Niède Guidon no sítio do Boqueirão da Pedra Furada, foram duramente criticados pelos colegas, assim como outros achados feitos ali desde então.
Recentemente, novos sítios arqueológicos foram escavados na Serra da Capivara, mas os resultados foram recebidos com a resistência habitual por parte da comunidade. A história da dificuldade dos pesquisadores franco-brasileiros para convencer seus pares foi contada na reportagem “Os seixos da discórdia”, publicada na piauí de janeiro (disponível para assinantes).
O artigo da Antiquity, assinado por catorze pesquisadores vindos do Brasil, Chile, França e Espanha, traz os resultados das escavações do Vale da Pedra Furada, um sítio que ainda não havia sido explorado. Foram encontrados ali artefatos de quartzo e quartzito com datação de até 24 mil anos de idade que, na avaliação dos autores, foram produzidos inequivocamente pela ação humana.
Para evitar que, mais uma vez, a origem humana dos artefatos fosse questionada, os autores redobraram o cuidado com as análises. Todos os fragmentos líticos encontrados na escavação que tivessem mais de 2 cm numa das dimensões foram catalogados e analisados – a foto que abre o post dá uma ideia da minúcia da tarefa. Outra novidade foi a análise funcional, que permite apontar o tipo de uso que se fez das ferramentas na pré-história. O exame indicou que alguns artefatos parecem ter sido usados para cortar materiais como carne, madeira ou couro. “Os resultados confirmam que os artefatos foram fabricados por humanos e usados por indivíduos em suas atividades cotidianas”, escreveram os autores.
Ao interpretar os resultados do trabalho, os autores afirmam que as Américas podem ter sido ocupadas por populações distintas em episódios dispersos no tempo e no espaço, sem que esses grupos tivessem contato significativo uns com os outros. “Precisamos aceitar que as Américas do Norte e do Sul foram ocupadas como resultado de eventos de migração sucessivos e irregulares. Apenas as ondas de migração mais marcantes permanecem visíveis no registro arqueológico. Ainda assim, a visibilidade desses eventos não deve ofuscar os demais.”
Artefatos escavados no sítio arqueológico do Vale da Pedra Furada, na Serra da Capivara, expostos num congresso sobre a ocupação das Américas realizado em outubro do ano passado em Santa Fé, nos Estados Unidos (foto: Bernardo Esteves)
Cioso dos debates acalorados que a questão costuma provocar, o editor da Antiquity decidiu publicar, junto com o artigo franco-brasileiro, cinco comentários feitos por especialistas independentes de diferentes especialidades da arqueologia. O mais simbólico deles é o publicado pelo americano Tom Dillehay, da Universidade Vanderbilt. Em 1994, ele foi o autor da refutação mais veemente feita até então do material arqueológico da Serra da Capivara, num artigo assinado com dois colegas e publicado na mesma Antiquity.
Em seu comentário, Dillehay disse que mudou de ideia após examinar o material lítico encontrado nos novos sítios do Piauí. “Estou mais convencido de que alguns desses seixos foram talhados por humanos”, escreveu o americano, ele próprio autor de achados arqueológicos antigos no sul do Chile que levaram anos até serem aceitos pelos colegas. “Os registros humanos mais antigos na América do Sul são mais diversos que os encontrados na América do Norte e devem ser examinados com padrões e expectativas mais flexíveis”, concluiu.
O convencimento de Dillehay não é novidade para os leitores de piauí – ele já havia admitido a mudança de atitude na reportagem de janeiro. Mas esta é a primeira vez em que ele registra sua nova convicção na literatura acadêmica. “Dillehay havia assassinado o Boqueirão da Pedra Furada há vinte anos, então é muito importante que ele reconheça nossos resultados”, contou o francês Eric Boëda, que há alguns anos assumiu o lugar de Niède Guidon à frente da equipe de pesquisadores da Serra da Capivara.
Outros comentários do trabalho publicados na Antiquity reforçaram as alegações do grupo brasileiro. O sueco Kjel Knutsson, da Universidade de Uppsala, fez críticas à análise funcional dos artefatos feita pelo grupo, mas ressaltou que isso não afeta a conclusão do trabalho. “Se as datações estiverem corretas, os autores mostraram de forma convincente que a América do Sul já estava ocupada há mais de 20 mil anos por produtores de ferramentas competentes”, escreveu.
O americano James Feathers, especialista em datação que assinou outro comentário, não questionou as datas encontradas pelos pesquisadores franco-brasileiros. Para ele, Niède Guidon e seus colegas merecem o benefício da dúvida, e mais pesquisas deveriam ser feitas para entender como os sítios de datação muito antiga na América do Sul evoluíram até chegar aos registros mais recentes e abundantes no resto do continente. “Se essa lacuna puder ser preenchida, isso poria esses sítios em contexto e a controvérsia em torno deles diminuiria.”
Falando por telefone de Burgos, na Espanha, onde participava de um congresso, Eric Boëda, atual líder da equipe franco-brasileira, disse considerar o pacote de artigos publicado na Antiquity como um marco simbólico do fim da controvérsia. “Superamos a barreira dos vinte mil anos”, afirmou. Para o francês, já não há mais flancos por onde eles possam ser atacados. “As provas transbordam em todas as direções. Agora só se nos acusarem de mentir ou fraudar os dados.”
O mapa destaca da localização dos sítios arqueológicos onde o grupo franco-brasileiro fez as últimas escavações na Serra da Capivara (reprodução / Antiquity)
Mas os novos resultados da Serra da Capivara ainda não são unânimes na comunidade. Um dos cinco comentários publicados na Antiquity fez críticas duras ao trabalho da equipe de Boëda. Assinado por dois pesquisadores brasileiros – Adriana Schmidt Dias e Lucas Bueno, das universidades federais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, respectivamente –, o comentário alegou que o novo artigo trazia as mesmas falhas dos trabalhos anteriores do grupo. Para a dupla brasileira, faltam informações sobre a relação contextual entre as amostras datadas e os artefatos encontrados, bem como estudos específicos que permitam explicar as diferenças entre as distintas fases de ocupação dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara.
Dias e Bueno também criticaram a equipe por não buscar entender as relações entre os grupos humanos que habitaram a Serra da Capivara e outras populações antigas encontradas em outras localidades do Brasil – a região de Lagoa Santa (MG), por exemplo, é rica em sítios arqueológicos com datação bastante recuada. “Um diálogo real com a comunidade acadêmica ‘nativa’ certamente teria acrescentado argumentos mais interessantes para o debate do que a validade dos métodos de datação, a perícia dos ‘tecnólogos’ encarregados da análise ou as comparações com as tecnologias da África e leste da Ásia”, escreveram.
Falando por telefone de Porto Alegre, Adriana Schmidt Dias lamentou que o debate sobre o povoamento das Américas esteja reduzido à celeuma das datas. “Nosso interesse é tentar entender o modelo de povoamento, como os espaços foram colonizados, como os territórios foram negociados, como as identidades foram construídas”, afirmou. “Reduzir a discussão a esse enfoque simplista só empobrece a beleza do objeto.”
Eric Boëda, por sua vez, disse que ele e o resto da equipe se surpreenderam com o tom do comentário de Dias e Bueno. Mas o programa de pesquisa que ele anuncia para o futuro próximo parece caminhar na direção sugerida por Dias. “Agora que deixamos para trás a etapa da prova, vamos passar a um tipo mais clássico de pré-história, e investigar de onde vieram esses grupos, quais eram suas atividades e as especificidades dos sítios.”
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