A preocupação atual, relevante e necessária com um possível “Capitólio brasileiro”, seja no Sete de Setembro, no dia das eleições ou após a proclamação de uma até aqui provável derrota de Jair Bolsonaro, não deve nos impedir de considerar quão grandes serão os danos à democracia brasileira causados por uma campanha eleitoral baseada em mentiras sobre a confiabilidade do processo eleitoral, protagonizada por um líder carismático e violento como nosso atual presidente. Devemos distinguir os eventuais danos de curto prazo, que talvez venham a ser causados por ações violentas dos apoiadores por ele instigados, dos danos de longo prazo, que macularão a confiabilidade da democracia para uma porção grande dos brasileiros mesmo que a temida violência não ocorra, mesmo que Bolsonaro perca e mesmo que seu sucessor consiga tomar posse em 1º de janeiro.
O genuíno pote de ouro ao final do arco-íris que guia os passos de Jair Bolsonaro é o fim da democracia. É importante termos clareza de que sua campanha seguirá o duplo propósito, que é contraditório para um político democrata mas perfeitamente razoável para um político autocrata, de buscar a vitória eleitoral e ao mesmo tempo minar as condições de que a democracia necessita para continuar existindo após as eleições, com ou sem ele na presidência a partir de 2023. Ou entendemos isso, ou perderemos o horizonte do que está em jogo neste momento para nós.
Para entender a estrutura de comunicação política bolsonarista, sua forma de operação e seus possíveis impactos, é útil partirmos de um documento divulgado em julho de 2019 pela divisão de cibersegurança e infraestrutura do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security, ou DHS) dos Estados Unidos. Trata-se de uma cartilha de título curioso, “A Guerra ao Abacaxi”, que usa o exemplo banal da cobertura de abacaxi na pizza – polêmica gastronômica dos Estados Unidos que é equivalente às passas no arroz natalino por aqui – para mostrar como agentes interessados em tumultuar eleições podem transformar um tema divisivo qualquer em gatilho para campanhas de desinformação, agitação extremista e, ao fim e ao cabo, de incitação a ataques reais contra autoridades eleitorais.
A preocupação principal do folheto, elaborado na entrada do período de campanha à eleição presidencial em que Trump foi derrotado por Joe Biden, era chamar atenção para o modo de operação de um possível ataque russo ao ambiente eleitoral dos Estados Unidos. Mas após a invasão ao Capitólio levada a cabo pela turba violenta que Donald Trump incensou e deixou agir, percebeu-se que a estrutura apresentada na cartilha do DHS aplicava-se também à atuação da comunicação trumpista naquela situação.
O documento descreve cinco etapas para uma bem-sucedida campanha de conspurcação da esfera pública que pode culminar com perturbações eleitorais: (1) a identificação de um assunto divisivo, que pode ser verdadeiro ou fabricado; (2) a montagem de uma infraestrutura de perfis em redes de comunicação, abertas (redes sociais) ou fechadas (aplicativos de mensageria), para espalhar a polêmica; (3) amplificação da contenda nas redes, pelo uso de desinformação (mentiras, dados velhos, vídeos fora de contexto) ou de interações agressivas, estimulando esclarecimentos, respostas e engajamentos conflituosos de outros usuários, fazendo o tema “bombar”; (4) migração da polêmica, já viralizada em redes sociais, para plataformas e veículos com maior credibilidade jornalística e maior alcance; e, por fim (5) convocação de atos, manifestações, ocupações e ações de bloqueio a pretexto da polêmica (“vamos fazer alguma coisa!”), visando a dificultar a atuação de pessoas e instituições encarregadas de levar as eleições a bom termo. O único erro da “Guerra ao Abacaxi” foi limitar a ameaça à interferência estrangeira, ignorando que ela poderia partir do próprio presidente do país.
A descrição em etapas da tática empregada por Trump para agitar uma turba revoltada e agressiva contra o Congresso é útil para que percebamos o quanto o mesmo expediente está à mão de Jair Bolsonaro caso ele pretenda valer-se de estratégia semelhante. Na verdade, pela participação ativa dos militares brasileiros, a estrutura de Bolsonaro é ainda mais poderosa. Talvez para tentar um golpe ou promover arruaça, como alguns temem; mas seguramente para disseminar descrença absoluta e apaixonada quanto à integridade das eleições. Em meio a mensagens ordinárias de campanha, que buscarão mostrar realizações de seu governo e diminuir seus adversários, essa estrutura passará meses martelando as cabeças de dezenas de milhões de brasileiros com a mensagem, ora mais explícita, ora mais cifrada, de que eleições no Brasil são cada vez mais uma grande farsa que serve para alienar os “verdadeiros brasileiros” dos destinos políticos da nação.
Bolsonaro sabe que tem à sua disposição um número bastante grande de apoiadores dispostos a apoiá-lo em suas postulações mais extravagantes. Seu mandato foi recheado de exemplos nos quais ele teve provas de fidelidade dessa sua base diante de comportamentos e falas alucinados. Entre uma e outra mentira bem construída, que serve mesmo para enganar quem de boa-fé acredita em seu presidente, suas alegações e ações mais desvairadas valeram sobretudo como renovações de um pacto de lealdade política incondicional. Bolsonaro é o presidente da cloroquina às emas e das vacinas que aceleram a Aids porque sabe que quem fechou com ele não tem intenção em fazer qualquer escrutínio racional do que ele faz ou diz. Essa lealdade quase incondicional, ostentada por muitos de seus eleitores, estará a serviço de qualquer absurdo que ele lance no debate público no período eleitoral.
Exatamente como Trump fez, Jair Bolsonaro está também plantando há tempos a tese de que o sistema eleitoral não é confiável. Curiosamente, a base de suas alegações é oposta à de Trump: ele reclama da falta de voto impresso, enquanto o ex-presidente dos Estados Unidos denunciava procedimentos justamente ligados ao voto em papel, como a votação pelos correios e o roubo de cédulas. O importante não é a confiabilidade de um ou outro sistema, mas sim o fato de que o debate sobre integridade de urnas é em si mesmo divisivo e polarizador em ambos os países. Logo, é material bruto perfeito para uma campanha bem-sucedida de desinformação política, tanto lá quanto aqui.
A teia de disseminação digital de Bolsonaro está muito estabelecida não é de hoje. Nos termos postos por Marcos Nobre, o verdadeiro partido do presidente não é PSL ou PL, mas sim o “partido digital bolsonarista”. Ele e sua família foram sabidamente pioneiros em levar a política, para valer, dos carros de som para os computadores e celulares. Cultivaram influenciadores em todas as redes, que replicam e capilarizam os conteúdos sinalizados como relevantes por pessoas chave, a começar pelos próprios membros da família Bolsonaro. O clã mantém próximo de si um grande número de parlamentares que controlam com coleira curta, e que sabem que a fidelidade canina ao presidente e a seus filhos é condição de sua sobrevivência política. Essa rede foi abalada desde 2018, menos pela defecção de alguns apoiadores que são facilmente substituíveis, e um pouco mais pela atuação implacável do STF contra alguns influenciadores e parlamentares bolsonaristas. Mas mesmo assim, Bolsonaro e seu entorno continuam sendo a força política mais relevante do ambiente digital brasileiro.
Assim como Trump dispunha da Fox News, o bolsonarismo tem também canais jornalísticos na mídia mainstream dispostos a alimentar seu público com qualquer carniça que o presidente lance no debate público. Alguns têm longa história de serviços prestados ao jornalismo, mas progressivamente tornaram-se veículos hiperpartidarizados, abrigando programas e profissionais cujo maior compromisso já não é com a integridade do jornalismo que praticam, mas com as causas políticas do bolsonarismo. Em outros casos, poderá valer-se de veículos menos partidarizados, mas que praticam um “doisladismo” dialético que é capaz de dar ares de posição debatível às teses mais esdrúxulas. Finalmente, na condição de autoridade cujas próprias manifestações constituem notícia – e esta é uma característica única de agentes políticos que adotam campanhas de desinformação eleitoral –, suas próprias falas podem e devem levar mesmo veículos sérios a dar espaço a alegações e insinuações absurdas, seguidos de desmentidos e checagens fatuais que nunca têm o mesmo alcance da mentira que pretendem refutar.
À diferença de Trump, porém, Bolsonaro tem uma arma a mais no seu arsenal de amplificação qualitativa do descrédito eleitoral: as Forças Armadas. Nosso alto escalão militar tem emprestado seu protagonismo, seu prestígio técnico e o que resta de sua credibilidade pública para alimentar desavergonhadamente a conspiração antiurnas bolsonarista, dando pretexto a notícias que alimentam o pânico eleitoral que interessa ao presidente. Insistem na publicização de questionamentos tecnicamente imprecisos às urnas, alimentam boatos sobre uma inexistente sala secreta de apuração, cometem erros de cálculo em exigências descabidas e insistem em propostas sabidamente inexequíveis por falta de prazo ou impossibilidade legal. Tudo isso vira matéria-prima de primeira qualidade para desde memes até notícias de jornal que mantêm uma suposta dúvida sobre a confiabilidade das eleições no centro do debate mainstream. Só isso já é um bom ganho para os propósitos antidemocráticos de Bolsonaro. Não por acaso, os militares brasileiros são sujeitos ativos frequentes em peças de desinformação eleitoral que circulam nas redes bolsonaristas. Nada parecido partiu dos militares nos Estados Unidos – muito pelo contrário.
Incontáveis acontecimentos plausíveis, ou até mesmo prováveis, darão margem a campanhas de desinformação eleitoral a partir dessa estrutura. No dia da eleição, fatos corriqueiros – um vídeo de uma urna sendo retirada de uma seção eleitoral (porque, digamos, quebrou), ou um áudio de um eleitor alegando não ter ouvido barulho da urna após votar em Bolsonaro – servirão para alimentar toda sorte de teorias conspiratórias eleitorais. Talvez programas de tevê e emissoras de rádio mais comprometidas com o bolsonarismo do que com um relato equilibrado do processo eleitoral amplifiquem esse tipo de conteúdo: “Você teve problemas com as urnas? Conte para a gente o que você viu.” Se tomarem cuidado com os tempos verbais (“teria havido fraude”), salpicarem advérbios (“possivelmente houve falha nas urnas”) e fizerem ressalvas vazias (“não tenho provas, mas…”), talvez alguns candidatos arrisquem alimentar eles próprios essa onda desinformativa, confiando que serão poupados se não forem tão categóricos nas palavras quanto foi o ex-deputado bolsonarista Fernando Francischini, cassado por mentir sobre as urnas no dia da eleição de 2018.
É verdade que o TSE acertou com plataformas de internet protocolos para conter o estrago que podem provocar mensagens e postagens com desinformação sobre o processo eleitoral, mas ainda não está claro o quão bem esse expediente funcionará. O tempo de disseminação de notícias falsas costuma ser mais rápido do que o tempo de resposta da justiça. Ainda que a Justiça Eleitoral seja acostumada a agir rapidamente, qualquer denúncia de desinformação precisará ser minimamente apurada. A desinformação viral é serelepe: pula de uma plataforma para outra com a agilidade de um clique. A mentira está sempre dois passos à frente; e no curto espaço de uma campanha, dois passos podem ser suficientes para fazer estrago.
Mais ainda, a Justiça Eleitoral e as plataformas precisarão encontrar um balanço fino entre o que são informações falsas, maliciosamente plantadas para desacreditar as eleições, e o que são dúvidas genuínas ou erros desculpáveis de eleitores. O risco aqui é óbvio: se pecar pelo excesso a pretexto de proteger a credibilidade das urnas, a própria atuação da Justiça Eleitoral é que dará margem a outro tipo de acusação, que pode ser igualmente danosa à credibilidade do processo eleitoral. Reclamos contra a “censura” são um bordão há tempos repetido pelos apoiadores do presidente, e ele obviamente será muito explorado durante a campanha. O ataque às urnas será só um dos caminhos para desacreditar o processo eleitoral: denunciar a parcialidade da justiça eleitoral será o outro.
Os debates eleitorais que mais importam – aqueles entre os próprios eleitores – não ocorrerão em terreno limpo, entre interlocutores interessados em aprender uns com os outros e talvez chegar a consensos possíveis em temas de discordância. Eles acontecerão em solo já encharcado pela enorme desconfiança de uma grande parte do eleitorado bolsonarista, que vem sendo alimentado há tempos com a narrativa de que a cúpula do sistema de justiça, inclusive a Justiça Eleitoral, fará de tudo para que Bolsonaro perca as eleições.
Os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos foram chocantes e trágicos, mas a violência dos milicianos trumpistas e as revelações subsequentes do quanto o próprio Trump esteve pessoal e diretamente envolvido no desenrolar dos acontecimentos tiveram um efeito rebote prejudicial para seu extremismo político. Eleitoras e eleitores republicanos que já apoiaram Trump têm assistido a sucessivas condenações pesadas contra aqueles que invadiram o Capitólio armados, agrediram e mataram pessoas e destruíram partes do prédio do Congresso, enquanto permanecem intocados o próprio Trump e seus aliados de primeiro escalão. Vídeos dos condenados chorando em seus depoimentos, dizendo que destruíram suas vidas por terem sido manipulados e pedindo perdão por seus atos, vêm reforçando a percepção, mesmo entre os conservadores, de que o modo trumpista de fazer política é um culto ególatra que põe os benefícios imediatos de Trump acima de seus eleitores, de seu partido e das instituições do país.
As pesquisas mostram que Donald Trump é hoje um político mais fraco e menos popular do que era antes da insurreição que patrocinou. Muita gente já aposta que ele não conseguirá uma nova indicação de seu partido para concorrer em 2024, se quiser disputar as eleições. Políticos republicanos que estiveram na manifestação do “Parem o roubo!” no dia 6 de janeiro – sete manifestantes que estiveram nos protestos foram eleitos após os fatos – hoje dizem condenar a insurreição e confiar no sistema eleitoral do país. Impossível não se perguntar se o ponto do mínimo consenso estaria tanto para o lado da democracia sem a condenação em uníssono que se seguiu àqueles atos chocantes. A rejeição da maior parte da sociedade americana à violência tribal e aos desdobramentos trágicos daquele dia pode ter servido como inesperado amálgama sobre consensos mínimos de civilidade política, empurrando Trump mais às margens.
Mesmo que não tenhamos tentativa de golpe, arruaças violentas, mortes, depredações e invasões no Brasil – que são uma possibilidade real para a qual devemos estar alertas – os danos da campanha que Jair Bolsonaro colocará nas ruas nos acompanharão para além das eleições e são independentes dessa violência. Talvez esses danos abstratos, que não se comparam com vidas mas são também relevantes, sejam ainda maiores sem a rejeição que seria motivada por atos de violência bolsonarista no período eleitoral.
Bolsonaro trabalhará para bater Lula, mas também para fincar definitivamente entre milhões de brasileiros uma convicção arraigada, quase indistinguível da realidade, de que a partir de 2023, caso ele perca, o Brasil viverá sob uma presidência roubada por um complô de magistrados, veículos de imprensa, banqueiros e políticos de esquerda. Como será possível sustentar uma democracia saudável entre nós se dezenas de milhões de eleitores acreditarem que foram vítimas do maior complô político da história do Brasil? Para um autocrata atávico como Bolsonaro, eleições e a campanha que as antecede são muito importantes, mas não são tudo: sua corrida é mais longa, e só acaba quando acabar também a democracia.