Edson Alexandre Pinto de Góes, major da Polícia Militar do Rio de Janeiro, condenado a cinco anos de prisão por lavagem de dinheiro e ocultação de bens. Maycon Macedo de Carvalho, major da PM do Rio, réu por corrupção passiva, fraude a licitação e organização criminosa. Tenente-coronel Arlei Balbino, réu por improbidade administrativa. Além da farda, esses policiais militares têm em comum o fato de terem sido homenageados na Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj, pelo mesmo parlamentar: Flávio Bolsonaro, ex-deputado estadual e hoje senador pelo PSL.
Levantamento feito pela piauí com base nos registros da Alerj revela que, entre 2003 e 2018, o filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro aprovou moções e medalhas para pelo menos 23 policiais e militares que são réus na Justiça ou foram condenados por crimes diversos, que vão do homicídio à lavagem de dinheiro, organização criminosa ou fraudes em licitações. São dezenove policiais militares, três policiais civis e um tenente-coronel da reserva do Exército. Desses, seis foram condenados, e dois estão presos. Entre as homenagens concedidas por Flávio há as chamadas “moções” – usadas para expressar louvor – e as Medalhas Tiradentes, a mais alta condecoração que pode ser dada pela Alerj. Na maioria dos casos, os indiciamentos e as punições ocorreram depois de os policiais terem sido homenageados por Flávio Bolsonaro.
O major Edson Raimundo dos Santos é um dos PMs homenageados. Em 2008, quando era capitão do Batalhão de Operações Especiais, o Bope, o policial recebeu de Flávio Bolsonaro uma moção de louvor e congratulações pelos serviços prestados ao estado do Rio. Cinco anos depois, em julho de 2013, foi um dos principais responsabilizados pela morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, que desapareceu após ser abordado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha.
Na época, o major Edson dos Santos era o comandante da UPP. No fim das investigações, em 2016, ele foi descrito na sentença da 35ª Vara Criminal do Rio como “mentor intelectual” do crime de tortura qualificada. Foi condenado a treze anos e sete meses de prisão, em ação que puniu também outros onze agentes pelos crimes de tortura, ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa. No ano seguinte, Santos recebeu nova condenação, desta vez por corrupção de testemunhas. O major atualmente está preso numa unidade prisional da Polícia Militar em Niterói. O corpo de Amarildo, presumido morto cinco anos atrás, nunca foi encontrado.
Durante seus quatro mandatos na Alerj, Flávio Bolsonaro aprovou 495 moções e 32 medalhas para policiais militares, policiais civis, bombeiros, guardas municipais e membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Foram louvados também policiais envolvidos com milícias. Os PMs Adriano Magalhães da Nóbrega e Ronald Paulo Alves Pereira, líderes de uma milícia que atua com grilagem de terras na Zona Oeste do Rio, foram homenageados por Flávio Bolsonaro em 2003 e 2004, respectivamente. Em janeiro deste ano, os dois foram alvos de mandados de prisão numa operação do Ministério Público com a Polícia Civil. Ronald Alves Pereira foi preso preventivamente, assim como outros quatro suspeitos de envolvimento com a milícia; Adriano da Nóbrega está foragido. Segundo investigadores, a operação pode levar a novas informações sobre a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018.
A primeira homenagem de Flávio a um PM envolvido com crimes a vir à tona foi a moção de louvor concedida ao militar reformado Fabrício Queiroz, assessor de Flávio na Alerj e pivô do caso das movimentações atípicas de 1,2 milhão de reais detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), no início deste ano. Queiroz foi homenageado por Flávio Bolsonaro em 2003, quando ele era segundo-sargento da PM. Na moção, o militar é elogiado pela “absoluta presteza e excepcional comportamento nas suas atividades”. O caso das movimentações financeiras atípicas na conta de Queiroz hoje é investigado pelo Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) do Ministério Público do Rio. Consultando-se os arquivos da Alerj, percebe-se que Queiroz faz parte de uma longa lista de homenageados com o mesmo perfil.
Dentre os militares honrados publicamente por Flávio Bolsonaro também está o PM reformado Anderson Cláudio da Silva. O agente recebeu moção na Alerj em 2007. Onze anos depois, em abril do ano passado, ele foi assassinado com dezenas de tiros quando entrava no seu carro, modelo BMW, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio. A execução aconteceu três dias depois do assassinato de Carlos Alexandre Pereira Maria, líder comunitário da região da Taquara e colaborador do vereador Marcello Siciliano, do PHS. As duas mortes são vistas pela polícia como uma possível “queima de arquivo” feita por milicianos.
Quando foi homenageado por Flávio, Anderson da Silva era lotado no 16º Batalhão da PM, no bairro de Olaria. O então deputado estadual não poupou palavras para elogiar o capitão da PM. Segundo ele, o militar – “exemplo do policial combatente de ontem e de hoje” – destacava-se pela “atuação responsável, abnegada, aguerrida e corajosa”.
Procurado pela reportagem, Flávio não quis comentar as condecorações aos policiais e militares condenados ou réus na Justiça. Ele afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que já se posicionou sobre o assunto e não voltará a falar. Em janeiro, o parlamentar divulgou uma nota em que minimizava sua relação com os homenageados. “Sobre as homenagens prestadas a militares, sempre atuei na defesa de agentes de segurança pública e já concedi centenas de outras homenagens. Aqueles que cometem erros devem responder por seus atos.”
Os crimes associados a práticas de corrupção são os mais frequentes entre os homenageados de Flávio Bolsonaro. Ao todo, nove policiais formalmente elogiados por ele são réus ou foram condenados por corrupção passiva, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa e crimes contra a lei de licitações.
Um deles é o major reformado da PM Sérgio Pereira de Magalhães Júnior. “Imbuído de espírito comunitário”, como o definiu Flávio Bolsonaro em uma moção de 2003, o militar é réu por crimes de fraude a licitação em um processo sigiloso que corre na 2ª Vara Criminal de Guapimirim, cidade da Baixada Fluminense. A ação é fruto de uma operação do Ministério Público deflagrada em agosto de 2017 contra um esquema de contratos fraudados na prefeitura de Guapimirim. Na época, o major Magalhães Júnior foi preso temporariamente, assim como sua sogra, sua cunhada e dois ex-prefeitos da cidade. Hoje respondem ao processo em liberdade.
Segundo os procuradores, o major era o responsável pela ONG Casa Espírita Tesloo – que depois foi renomeada como Obra Social João Batista. A acusação do Ministério Público é de que a entidade venceu licitações “fraudulentas e direcionadas” para fornecer mão de obra terceirizada à prefeitura entre 2012 e 2015. A empresa tinha apenas quinze funcionários registrados, mas, pelos contratos, deveria fornecer ao menos 1.200 trabalhadores ao governo. Em duas licitações, embolsou 84,4 milhões de reais dos cofres públicos. O caso se desdobrou ainda numa ação civil pública por improbidade administrativa, da qual o major Magalhães Júnior também é réu. Segundo a denúncia produzida pelo MP, o militar e seus familiares atuaram “consciente e voluntariamente” no desvio de dinheiro público.
O major é réu ainda num terceiro processo, também por improbidade administrativa e enriquecimento ilícito. A ação, que corre na 3ª Vara de Fazenda Pública, apura se a ONG do policial teria irrigado um esquema de corrupção atribuído ao ex-secretário municipal de Assistência Social do Rio, Rodrigo Bethlem, do MDB. A apuração derivou de uma reportagem da revista Época que mostrou, em 2014, uma gravação em que Bethlem dizia receber dinheiro oriundo de contratos firmados pela prefeitura. Na época, Bethlem chamou de “mentirosas” as denúncias e disse ter blefado na gravação em que dizia receber dinheiro de convênios. Anos antes, a secretaria comandada por ele havia contratado, sem licitação, a ONG Casa Espírita Tesloo por 9,6 milhões de reais. Assim como Queiroz, o major Magalhães Júnior foi pego pelo Coaf por movimentações suspeitas de dinheiro.
Outro policial homenageado por Flávio Bolsonaro, e que se tornou alvo de denúncias de corrupção, é o major Edson Alexandre Pinto de Góes. Ele recebeu moção no mesmo dia que o major Ronald Paulo Alves Pereira, que está preso por envolvimento com milícias. Os dois militares davam expediente na mesma unidade – o 22º batalhão, em Bonsucesso –, e foram parabenizados por Flávio após uma operação que deixou três mortos na favela Conjunto Esperança, no Complexo da Maré.
Assim como Ronald Alves Pereira, o major da PM Edson de Góes tem uma longa trajetória de conflitos com a lei. Em 2014, foi preso sob a acusação de integrar um esquema de extorsões a comerciantes, cooperativas de vans e mototaxistas na Zona Oeste do Rio. Uma operação do Ministério Público encontrou na sua casa 287,6 mil reais em espécie, divididos em maços de 5 mil reais e embalados em sacos plásticos. Também foram encontradas joias e 400 euros. Na época, o policial era subcomandante do Comando de Operações Especiais da PM.
A investigação resultou numa denúncia por lavagem de dinheiro e ocultação de bens. O processo correu por quatro anos até chegar a uma sentença. Em setembro de 2018, o major Edson de Góes foi condenado a cinco anos de prisão em regime fechado. A pena maior, de seis anos, recaiu sobre o coronel Alexandre Fontenelle, ex-chefe do Comando de Operações Especiais, considerado o líder do esquema criminoso.
Ao todo, cinco policiais militares homenageados por Flávio Bolsonaro respondem a acusações por homicídio. Dois deles, que receberam elogios públicos em setembro de 2007, são réus em um mesmo processo que corre desde 2010 na 4ª Vara Criminal do Rio. O subtenente Rosemberg Ferreira de Miranda e o segundo-sargento Sérgio Fernandes de Moraes são acusados pela morte de um jovem de 21 anos e a tentativa de homicídio de outro, em 2009, no bairro de Brás de Pina, Zona Norte do Rio. Um terceiro PM, o segundo-sargento Marcelo Sales de Oliveira, também recebeu moção e era réu no processo, mas morreu em 2015 durante uma patrulha na região do morro do Juramento, no bairro de Vicente de Carvalho.
A ação ainda aguarda sentença, e uma nova audiência está marcada para abril. Na denúncia, o Ministério Público afirma que os policiais atacaram Maxwil de Souza dos Santos e Mauro Tibúrcio sem abordagem prévia. Maxwil Santos foi morto com dois tiros nas costas. O sobrevivente, Mauro Tibúrcio, disse à Justiça que pilotava uma moto com Santos quando passaram a ser perseguidos e alvejados pelos militares. Os agentes – eram oito, segundo ele – estariam no local para reprimir um baile funk. Não ficou comprovada a relação das vítimas com o evento. Segundo uma testemunha ouvida no processo, os policiais já eram conhecidos na região por “agirem com violência e truculência”.
Os PMs – definidos pelo Ministério Público como sendo de “intensa periculosidade” – foram presos preventivamente em 2010. Hoje respondem em liberdade. Esses agentes foram descritos por Flávio Bolsonaro, nas homenagens prestadas na Alerj, como “dignos representantes” da polícia militar, e enquadrados “nos melhores conceitos de preservação da ordem pública”.
Advogado dos PMs no processo, Luiz Felipe Alves e Silva reforçou os elogios. “É uma guarnição de excelente qualidade”, disse ele, que também defende o policial militar Sérgio Fernandes em outra ação por homicídio qualificado, aberta em 2016, e já advogou pelo policial Rosemberg Ferreira numa ação também por homicídio qualificado, arquivada em 2014. “Isso é ideologia dos promotores, que denunciam militares que combatem a criminalidade. Não tem consistência nenhuma, por isso eles sempre são absolvidos.”
Além dos PMs, o tenente-coronel da reserva do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel está na lista de homenageados por Flávio Bolsonaro. Aos 88 anos, o militar é réu pelas práticas de sequestro qualificado e cárcere privado. Lício Maciel é apontado pelo Ministério Público Federal como o primeiro militar – junto com o coronel da reserva Sebastião Curió Rodrigues, de 80 anos, também listado na ação – a ser processado pela Justiça brasileira por crimes cometidos durante a ditadura.
A denúncia, feita em 2012 pelo MPF, diz respeito a crimes cometidos na repressão à Guerrilha do Araguaia, que ocorreu no interior do Pará entre o final da década de 60 e o meio da década de 70. As ilegalidades teriam ocorrido principalmente na Operação Marajoara, uma das fases mais violentas do confronto entre militares e guerrilheiros.
O MPF alega que, embora vigore a Lei da Anistia, os crimes cometidos por Lício e Curió devem ser analisados sob a ótica da Corte Interamericana de Direitos Humanos e tratados como crimes contra a humanidade. Os dois militares foram acusados ainda de homicídio qualificado. A denúncia, de 2015, ainda não foi recebida pela Justiça Federal de Marabá.
No dia 22 de junho de 2005, a Alerj promulgou o projeto de resolução que concedeu a Medalha Tiradentes ao tenente-coronel Lício Maciel – a maior honraria da Casa. Nove anos depois, em 2014, quando ele já havia sido denunciado à Justiça, o militar recebeu ainda uma moção de louvor e congratulações concedida por Flávio Bolsonaro. O texto que justifica a homenagem trata de marxismo e “gramcismo”, além de elogios à “contrarrevolução de 1964”. Não menciona o processo judicial contra Lício, Curió e outros agentes por crimes cometidos durante a ditadura.