A segunda-feira (19) amanheceu diferente em Londrina, no Norte do Paraná. Encoberto por uma névoa espessa, o céu se mostrava em tons alaranjados, que deixavam o sol diferente, vermelho. O sol vermelho chamou a atenção da professora Aldrean Eduardo, que propôs a seus alunos – com idades entre 8 a 10 anos – uma reflexão sobre a relação do homem com a natureza. Na saída da sala de aula, às 10h10, sacou o celular e fez uma foto. Àquela altura, a educadora não tinha ideia de que o fenômeno estava diretamente relacionado a queimadas que tiveram origem a milhares de quilômetros dali, na região Amazônica, no Paraguai e na Bolívia, e que evidenciam o avanço do desmatamento.
“Quando eu saí, o céu estava lindo, maravilhoso. Eu tirei a foto pra ficar como registro dessas reflexões que fiz com os alunos, da relação com o meio ambiente”, disse ela. “Que incrível e que triste que isso tenha relação com a Amazônia. Eu fiquei impressionada”, completou a professora, do Colégio Marista.
Além de não ter passado desapercebido pela população em geral, o episódio foi registrado por órgãos oficiais, como o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), que constataram elevação dos níveis de partículas e de óxido de nitrogênio – um dos reflexos de queimadas. Sem chuva há 45 dias, Londrina sentiu a qualidade do ar piorar. Entretanto, não foi possível dimensionar o impacto do fenômeno porque as estações do IAP estão fora de operação há uma semana, em razão de problemas técnicos.
“Principalmente durante a manhã, registramos a presença de bastante fumaça na atmosfera, em que as nuvens se confundiam, mesmo, com a névoa. Como efeito visual, tivemos uma vermelhidão no céu, um sol de fogo”, definiu a agrometeorologista Heverly Morais, do Iapar. O efeito também foi observado em outras cidades da região, como Maringá, a 100 quilômetros dali.
O MetSul Meteorologia confirmou que a fumaça que chegou ao Paraná é proveniente, essencialmente, de três focos principais: queimadas na região Amazônica, principalmente em Rondônia e no Mato Grosso; e dois grandes incêndios florestais, um registrado no Pantanal do Alto Paraguai, outro na Bolívia – ambos, quase na fronteira com o Brasil. O avanço da pluma de fumaça em direção à região Sul e ao estado de São Paulo foi captado por dois satélites – o NOAA-20, da Nasa, e o Sistema Copernicus, o programa de observação da Terra da União Europeia. Segundo o MetSul, o deslocamento foi favorecido por condições meteorológicas, como um forte vento norte.
Imagens do deslocamento da fumaça, produzidas pelo site Windy e compartilhadas nas redes sociais
Segundo a assessoria de comunicação do MetSul, a maior proporção da névoa que atingiu o Norte do Paraná e São Paulo provém da Bolívia e do Paraguai. O instituto atesta, contudo, que há dez dias tem registrado a ocorrência na região Sul de fumaça originada em focos concentrados de incêndio na Amazônia. O ponto mais crítico de queimadas em Rondônia, no Norte do estado, por exemplo, fica a cerca de 2,5 mil quilômetros de Londrina.
No Paraguai, o incêndio consumiu 21 mil hectares da reserva natural Três Gigantes, na região do Alto Paraguai. Segundo a MetSul, chegou a chover fuligem na região. “Dezenas de pessoas foram atendidas com problemas médicos e muitos animais morreram”, observou o instituto. Já na Bolívia, o fogo se concentra na região de Roboré, e os focos ainda não foram controlados.
Pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Carlos Nobre não chegou a analisar as imagens do fenômeno, mas explicou que há uma espécie de corredor natural entre a região Amazônica e o Sul do país, que contribui para que a fumaça de queimadas na floresta viaje a ponto de cruzar estados inteiros. As condições meteorológicas e geográficas favorecem a formação desse corredor. Não há, por exemplo, serras, para barrar o deslocamento da fumaça. Quando há uma junção de vento e tempo seco, a fumaça transita por esse corredor.
“Essa fumaça que se origina na Amazônia tem um direcionamento para o Sul, guiada por jatos de baixos níveis [ventos mais fortes e de baixa altitude], que vêm paralelamente ao Andes. Quando chega nas regiões subtropicais, essa fumaça se espalha. Esse escurecimento depende da densidade das partículas de carbono, da fuligem”, apontou. “Sábado [17], um colega pesquisador me mostrou imagens de satélite que já mostravam o deslocamento de fumaça em direção ao Sul”, afirmou Nobre.
Em São Paulo, o dia ficou escuro no meio da tarde da última segunda-feira (19), e o céu foi coberto por uma nuvem. Segundo o Inpe, o fenômeno se deve a causas meteorológicas, sem relação direta com as queimadas da Amazônia. Reportagem do portal G1 mostrou, porém, que vários moradores de São Paulo coletaram água da chuva que caiu na cidade, depois da nuvem, e a água era escura.
Ainda de acordo com o Inpe, o número de pontos de queimada é o maior dos últimos sete anos. Só este ano, aumentou 83% em comparação com 2018, somando 72,8 mil ocorrências. Mais de 38 mil focos de incêndio – 52% do total – se concentraram na Amazônia. O pesquisador Beto Veríssimo, do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), vê relação direta da fumaça no Sul com o avanço da devastação na região Amazônica.
Dados do Imazon mostram que, em julho de 2019, o desmatamento na Amazônia Legal aumentou 66% em relação ao mesmo mês do ano anterior, com mais 1 287 km2 suprimidos. “Com a confirmação de que essa fumaça tem chegado ao Sul, isso tende a ser um grande escândalo nacional. Mais que isso: acende um alerta. Vamos ter um verão amazônico bastante complicado”, disse Veríssimo.
De acordo com o especialista, os incêndios na região Amazônica tendem a ter duas origens principais: queimadas florestais, como última etapa de desmatamento, ou “limpeza” de áreas de pastagem. Para que a névoa chegue a “viajar”, Veríssimo aponta que é necessário o acúmulo de um volume muito grande de resíduos. Por isso, ele acredita que a fumaça que chegou ao Sul do Brasil seja proveniente de incêndios de florestas.
“É difícil saber com exatidão a proporção do que é fumaça de desmatamento e do que é fumaça de limpeza de pasto. O mais provável é que o grosso seja de florestas”, disse. “Enquanto a queima de um hectare de floresta gera 100 toneladas de matéria, um hectare de pasto gera dez toneladas”, exemplificou.