Após participar de diversos festivais no Brasil e no exterior, entre 2019 e 2021, A Jangada de Welles (2019), de Firmino Holanda e Petrus Cariry, documentário que esquadrinha o projeto malogrado de Orson Welles filmado no Brasil, chega amanhã (23/6) a cinemas de São Paulo, Fortaleza, Salvador, Porto Alegre, Manaus e Rio de Janeiro, com uma sessão diária, devendo estrear nas próximas semanas em João Pessoa, Aracaju, Recife, Goiás e Vitória.
Após a estreia de Cidadão Kane nos Estados Unidos, em 1941 – primeiro filme dirigido por Orson Welles que veio a ser considerado o melhor de todos os tempos –, ele filmou Soberba (The Magnificent Ambersons) no ano seguinte e embarcou para o Brasil antes de a montagem ser feita, o que lhe rendeu grandes dissabores – cenas foram refilmadas pelo estúdio RKO sem sua participação e os 148 minutos originais e 132 minutos de duração das pré-estreias foram reduzidos para 88 minutos. Embora elogiado por parte dos críticos e tendo bom público em algumas cidades, ao estrear Soberba não recuperou seu custo de produção – cerca de 1,1 milhão de dólares –, alto para a época.
Welles filmou no Brasil “milhares e milhares de pés de filme, impressionado com o potencial do que encontrou ao seu redor”, segundo a biografia de Simon Callow. Mas “o filme que tentou fazer – É Tudo Verdade – saiu de controle e ele voltou para casa sob uma nuvem [escura] que nunca se dispersou totalmente” –, e filmes incompletos passariam a ser recorrentes na filmografia de Welles, comenta Callow.
O título do documentário de Holanda e Cariry – A Jangada de Welles – sugere que o tema central seja o malogro de Orson Welles no Brasil, já abordado em documentários anteriores, inclusive É Tudo Verdade (1993), de Myron Meisel, Bill Krohn, Richard Wilson, Orson Welles e Norman Foster, além de vários livros, entre os quais: um do próprio Holanda (Orson Welles no Ceará, 2001); outro de Catherine L. Benamou (It’s All True: Orson Welles’s Pan-American Odyssey, 2007); e o de Berenice Abreu (Jangadeiros: Uma Corajosa Jornada Em Busca De Direitos No Estado Novo, 2012).
A Jangada de Welles trata, sem dúvida, do projeto de filme fracassado, inclusive da morte do jangadeiro cearense Manuel Olímpio Meira, conhecido como Jacaré, durante a filmagem dirigida por Welles, feita no Rio de Janeiro. No acidente, depois de cair na água, Jacaré teria sido visto nadando em direção contrária à praia antes de desaparecer – tragado pelo mar, seu corpo nunca foi encontrado.
Quem assistir ao documentário verá, porém, que este não é o único foco, nem sequer o principal. A Jangada de Welles começa por um plano aéreo de pequenas ondas quebrando próximo à areia da praia, inicialmente em preto e branco, feito de drone. A câmera sobrevoa o mar, enquanto a cor da água vai se tornando verde-escura. Em off ouve-se a voz de Michael O’Hara (Orson Welles), o marinheiro de A Dama de Shanghai (1947), quarto filme de Welles, do qual escreveu o roteiro e, além de ter atuado, é o narrador: “Certa vez, na corcova do Brasil, eu vi o oceano tão escurecido de sangue que estava preto, e o sol desvanecendo na beirada do céu.” O mesmo plano é retomado no filme, uma hora adiante, a 15 minutos do final. O texto em off inicial é repetido e prossegue quase até o final do que se ouve em A Dama de Shanghai: “… Havíamos ancorado em Fortaleza e alguns de nós tinham linhas para pescar um pouco sem compromisso. Fui eu quem tive a primeira fisgada. Era um tubarão. Aí havia outro, e outro tubarão novamente… até que tudo em volta, o mar era feito de tubarões, e mais tubarões, ainda, e nenhuma água. Meu tubarão tinha se soltado do anzol e o cheiro, ou talvez era a mancha e sua vida se esvaindo, levou o resto deles à loucura. Então as feras começaram a comer umas às outras. Em seu frenesi, elas comeram a si mesmas. Você podia sentir a luxúria do assassinato como um vento ferindo seus olhos, e podia sentir o cheiro fedorento da morte exalando do mar.”
Não é por nada que para a historiadora Berenice Abreu, entrevistada em A Jangada de Welles, “o tema da morte, não é? Pra mim é o mote que o Orson Welles coloca dentro de sua ficção. A ameaça da morte, a ameaça da orfandade, o Jerônimo [Mestre Jerônimo André de Souza foi um dos três outros pescadores que participaram com Jacaré do chamado “raid” de jangada, que levou 61 dias, em 1941, indo de Fortaleza ao Rio de Janeiro. O objetivo dos jangadeiros era reivindicar direitos trabalhistas ao ditador Getúlio Vargas, tendo conseguido um benefício, mas que ficou apenas no papel naquele momento] inclusive diz assim: que era melhor o pescador morrer no mar, porque se ele morre no mar a família não tem que pedir esmola pra enterrar.”
A descrição de um mar repleto de tubarões comendo uns aos outros e a si mesmos é acompanhada em A Jangada de Welles por imagens de Nelson Rockefeller, Getúlio Vargas quando ditador no período do Estado Novo, o presidente americano Franklin Roosevelt, o conde-vampiro de Nosferatu (1922) e uma jangada singrando o mar. A justaposição de tubarões com políticos, democratas e autoritários, o personagem de F.W. Murnau, e a precária embarcação dos jangadeiros seguindo mar adentro evoca, por sua vez, a metáfora que parece contida no título A Jangada de Welles – ela faria referência, por um lado, à fragilidade do projeto inacabado em 1942, assim como à do próprio Welles frente à RKO e dos demais estúdios de Hollywood; de outro, às precárias condições de vida dos jangadeiros, incluindo a transformação a partir da década de 1970 das praias de Fortaleza, antigo reduto de pescadores, em zona turística e a orla em muralha de prédios residenciais e hotéis de luxo, parte da chamada “área nobre” da cidade.
Indo muito além dos eventos relacionados à morte de Manuel Jacaré e ao malogro de Welles no Brasil, o documentário, além de dirigido, pesquisado, escrito e montado por Holanda e Cariry, procura abarcar, em última análise, a desigualdade social brasileira, indo desde questões geográficas, sociais e culturais relacionadas ao Ceará até a visão idealizada da vida do jangadeiro, patente inclusive na música de Dorival Caymmi, e cenas em que Arrigo Barnabé interpreta Welles no filme de Rogério Sganzerla Nem Tudo É Verdade.
Outros tópicos incluídos são a apreensão de borracha nazista, o bombardeio de submarinos alemães e navios mercantes brasileiros afundados. É feito também paralelo entre a malfadada experiência de Eisenstein, no México, e a de Welles, no Brasil (“Dois dos maiores cineastas do século XX não tiveram sorte no nosso continente”, diz o narrador, podendo-se arguir se, nos dois casos a questão foi falta de “sorte”).
Ao se aproximar do fim, A Jangada de Welles focaliza a mudança completa da “essência da pesca” que deixa de ser artesanal e torna o pescador “um assalariado”; mostra a cidade invadida por mais de mil mulheres com fome, vindas da zona rural onde não há mais “alimento nem água”; segue-se a capa do livro SERTÃO MAR – Glauber Rocha e a estética da fome [de Ismail Xavier] e, depois, a remoção dos moradores tradicionais da beira do mar com a derrubada pelo poder público, no início deste século, dos barracos de famílias pobres, forçando sua remoção para bairros distantes do litoral.
Na última sequência, filmada em Super 8 no dia 29 de junho de 1979, jangadeiros celebram São Pedro, seu padroeiro, com uma procissão marítima partindo da praia de Mucuripe. E para encerrar, depois da muralha de edifícios, Orson Welles (Arrigo Barnabé), para de filmar, tira o carretel de película da câmera e vela de modo deliberado o negativo exposto.
A questão que se coloca é até que ponto esse extenso amálgama de cenas díspares favorece o filme ou, pelo contrário, é dispersivo, impedindo a delimitação do assunto e prejudicando A Jangada de Welles.