Se fosse possível apagar da memória a participação de Marianne (Johanna Korthals Altes) e Napoleão (Vincent Nemeth) em Francofonia, a estima pelo filme de Aleksandr Sokurov poderia ser bem maior. As caracterizações da figura alegórica que encarna a República Francesa e do primeiro imperador da França comprometem, no entanto, o ambicioso propósito de Sokurov. Em aparições intermitentes, vagando pelo museu do Louvre, Marianne declama “Liberdade, igualdade, fraternidade” e, sentada ao lado de Napoleão Bonaparte, aprecia junto com ele a Mona Lisa. Além de beirar o ridículo, a participação de ambos revela tamanha falta de critério que ameaça pôr Francofonia a perder, podendo levar o espectador mais precipitado a rejeitar o projeto em bloco.
Feito com múltiplos e variados registros, em forma de ensaio, Francofonia inclui desde encenações de época e contemporâneas; imagens de arquivo; fotografias poderosas como, logo no princípio, a de Tolstói olhando para a lente da câmera; gravações no museu do Louvre e, como não poderia faltar em filme de Sokurov, trucagens digitais e longos planos, neste caso de Paris, gravados com movimentos de câmera virtuosísticos.
Para ancorar tal conjunto variado de imagens, gêneros e estilos, da aparente tranquilidade de um amplo escritório repleto de livros, o próprio Sokurov se comunica por Skype, ou software equivalente, com o comandante de um cargueiro em apuros que estaria transportando em containers o acervo de um museu não identificado. O navio enfrenta violenta tempestade em alto mar e parece ameaçado de naufrágio.
Ao pontilhar o decorrer de Francofonia com as cenas do seu contato com o navio, Sokurov retoma, deliberadamente ou não, a metáfora da vida como viagem marítima sobre a qual Hans Blumenberg escreveu o ensaio Naufrágio com espectador – Paradigma de uma metáfora da existência, publicado originalmente na Alemanha, em 1979, mas sem edição em português.
Blumenberg ensina que a metáfora da vida como viagem marítima e o espectador que observa o naufrágio de terra firme remontam a Lucrécio, o poeta romano que viveu de 99 a.C a 55 a.C.. Na versão de Francofonia, a metáfora é atualizada. Sokurov também observa o desastre iminente de terra firme, mas interage, ainda que precariamente, com o comandante que está indo a pique. Sem deixar de ser um observador, procura entrar em contato com o drama. Ao mesmo tempo, preserva da antiguidade a noção de que afundar é o castigo pelo ato transgressivo de singrar os mares.
Seria forçado, além disso, também considerar a realização de um filme como uma viagem? Se o paralelo for admissível, Sokurov, diretor de Francofonia, seria ele mesmo um comandante sob ameaça constante de soçobrar – a realização de todo filme não está sempre à beira do desastre?
A formação dos acervos de grandes museus europeus, como o do Louvre e do British Museum, resultou, em parte ponderável, de pilhagens feitas em guerras imperiais. Dedicado ao Louvre durante o período da ocupação alemã, Francofonia destaca a relação que tende a ser esquecida entre guerra e apreciação da arte, lembrando que uma transgressão de origem sujeita acervos a novas pilhagens ou bombardeios. Esse é o conflito central de Francofonia, resolvido no filme pela relação de amizade estabelecida entre o oficial alemão, Conde Franz Wolff-Metternich (Benjamin Utzerath), encarregado de avaliar os tesouros removidos do Louvre pelos franceses, e o diretor do museu, Jacques Jaujard (Louis-Do De Lencquesaing). Metternich é um homem culto, fascinado pelos tesouros que lhe cabe recuperar, enquanto Jaujard dedica-se a preservá-los com a esperança de evitar a pilhagem.