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Frans Krajcberg – dignidade e revolta

Documentário faz reviver inconformismo do artista diante da destruição ambiental brasileira 

Eduardo Escorel | 09 out 2019_11h01
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No tempo das vilanias emanadas dos palácios da Alvorada e do Planalto, um bálsamo chegará amanhã, 10 de outubro, às telas do Rio de Janeiro, São Paulo e outras cinco capitais, incluindo Brasília – o documentário Frans Krajcberg: Manifesto, de Regina Jehá. Neste momento, não poderia haver nada melhor do que evocar Krajcberg (1921-2017), artista de primeira grandeza e homem de dignidade irretocável.

Brasileiro naturalizado, nascido na Polônia, Krajcberg foi um exemplo do que este seu país de adoção tem de melhor a oferecer – integridade pessoal e obra de grande beleza feita com vestígios da destruição ambiental. Obra de impacto que contém em si mesma a prova material dos crimes que fizeram de seu autor um homem revoltado.

Em Frans Krajcberg: Manifesto, Jehá retoma na íntegra o depoimento de Krajcberg já incluído parcialmente no documentário de curta-metragem Socorro Nobre (1995), de Walter Salles:

“Eu sou homem muito revoltado. Aliás, sempre fui. Porque eu fui revoltado contra homens, agora eu estou revoltado contra os crimes que estão fazendo com a [sic] planeta. A destruição da [sic] planeta. Homem não respeita quase nada mais. E a minha revolta é para dar pouquinho mais consciência ao homem. Eu estou fazendo tudo com meu trabalho para mostrar a minha revolta, se possível para sensibilizar um pouco mais gente para compreender que a vida é um conjunto. Tudo que tem neste planeta tem direito de sobreviver e existir. Porque a gente não pode destruir a terra quando a gente precisa dessa terra para sobreviver. A gente não pode, digamos, se fechar cada vez na cidade e viver em um bunker fechado. A única consciência a ter sobre a natureza e a vida é pela televisão e os jornais. Mas é lá, quando você sai desse bunker, [que] você descobre a vida. A gente está perdendo até a sensibilidade de nós mesmos. Isso é muito grave para nossa existência. Precisamos parar com isso. Precisamos fazer uma análise de nós mesmos. Como continuar vivendo em harmonia com esse planeta.”

Krajcberg em cena do documentário de Regina Jehá – Divulgação

 

Krajcberg passou a viver no Brasil a partir de 1948, quando morou no Paraná e no Rio de Janeiro. Ficou sete anos em Paris, de 1958 a 1964. De volta ao Brasil, teve uma epifania ao chegar a Itabirito, Minas Gerais, em 1965. Em outro documentário, também de Walter Salles, Krajcberg, O Poeta dos Vestígios (1987), o artista nos diz: “A primeira vez que eu cheguei aqui, quando eu vi essa paisagem linda, toda essa riqueza, eu fiquei impressionado. Fiquei tão feliz que eu acho que a primeira vez na minha vida que eu me senti tão feliz, tão alegre, dava vontade de dançar de tanta alegria, de tanta riqueza que tinha aqui. Eu senti que eu vou começar tudo de novo.”

O que Krajcberg definitivamente não esperava era encontrar no Brasil paisagem semelhante à da Segunda Guerra Mundial, da qual participou no Exército Soviético como engenheiro construtor de pontes, e durante a qual toda sua família foi morta em um campo de concentração.

Também em Krajcberg, O Poeta dos Vestígios, após as imagens de abertura da queimada em Vilhena, no Sul de Rondônia, Krajcberg comenta em tom irônico, com um sorriso nos lábios, sua surpresa diante da semelhança entre as florestas calcinadas por ação deliberada do homem e as áreas depois dos combates e bombardeios na Europa. Em meio a troncos caídos e queimados, com o chão coberto de cinzas, ele esclarece: “A única coisa é que não tem centenas de mortos no campo, mas, é igual. [Parece que] a batalha foi ontem ou hoje de manhã. É tudo igual. Me lembra tanto a paisagem da guerra. Isso foi no começo, me deu um choque danado. Hoje, não. Até na guerra eu me acostumei.”

Krajcberg pode ter se habituado à mortandade humana e à destruição da natureza, mas nunca se conformou. Fez da preservação do nosso meio ambiente o tema da sua obra e a causa da sua vida.

Regina Jehá agrega Frans Krajcberg: Manifesto à ilustre filmografia dedicada a Krajcberg. Colheu, em 2016, a palavra final do artista falecido no ano seguinte e, mesmo sem ter sido essa sua intenção, fez uma espécie de filme-testamento ou arremate. Frans Krajcberg: Manifesto forma uma trilogia com os documentários de Walter Salles, aos quais teve amplo acesso e dos quais fez uso farto. Recorreu também a filmes e imagens de arquivo de outras procedências, mas foi no exuberante acervo de imagens inéditas de Walter Carvalho, feitas para Krajcberg, O Poeta dos Vestígios e Socorro Nobre, mas não aproveitadas na edição final, que Jehá encontrou manancial rico de filmagens, gravações e depoimentos para enriquecer seu documentário.

O Krajcberg que Jehá grava é um homem alquebrado, de 95 anos, convalescendo de uma cirurgia no coração, com voz tênue, mas ainda ativo e capaz de protestar. Na semana seguinte, ele iria a São Paulo definir a disposição das suas obras a serem expostas na entrada da 32ª Bienal, a Bienal ecológica. Incerteza viva, tema do evento, vinha ao encontro da fonte de inspiração da obra de Krajcberg, formada de esculturas que evocam a degradação do meio ambiente. Lúcido, ele resistiu em ser gravado por Jehá, alegando, com razão, que “já tem muita coisa, não precisa”.

Frans Krajcberg: Manifesto inclui preciosa filmagem feita por André Palluch, fotógrafo húngaro radicado no Brasil. As lindas e, por vezes, solenes imagens da vegetação densa que mostram a expedição de 32 dias ao alto Rio Negro, em 1978, organizada pelo artista plástico Sepp Baendereck, que convidou Krajcberg e o crítico Pierre Restany para irem com ele conhecer a Amazônia. “Foi espetacular”, diz Krajcberg em off: “Conheci a vida que não conhecia antes. Como a gente conversava e descobria tanta riqueza que este país tem. É impressionante essa passagem da minha vida. Eu mesmo fico impressionado.”

As conversas durante a viagem levaram Restany a publicar o Manifesto do Rio Negro ou Manifesto do Naturalismo Integral que levanta, de início, a seguinte questão, reproduzida em off na narração de Jehá: “Que tipo de arte, que tipo de linguagem pode suscitar tal ambiência [amazônica] – excepcional sobre todos os pontos de vista, exorbitante em relação ao senso comum?” A resposta, dada na frase seguinte, é que deve ser “um naturalismo do tipo essencialista, que se oponha ao realismo e à própria continuidade da tradição realista, bem como ao espírito realista e a toda sua sucessão de formas e estilos.”

O Manifesto do Rio Negro termina com essas palavras, também incluídas na narração: “[…] Trata-se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva – a poluição dos sentidos e do cérebro contra aquela do ar e da água.

Um contexto tão excepcional quanto o do Amazonas suscita a ideia do retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene de percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir.”

Itabirito, alto Rio Negro, incêndios florestais em Mato Grosso, raízes do manguezal no Sul da Bahia são marcos da formação artística de Krajcberg, na qual as colagens de Matisse e as esculturas de Picasso exerceram também influência decisiva. Nesse percurso ele disse – em uma entrevista publicada – ter sido confrontado, no Brasil, “a um mundo de formas e de vibrações, ao mistério de uma transformação contínua. Devemos saber como tirar o melhor partido”. E definiu sua obra como “um manifesto. Não escrevo, não sou político. Devo encontrar a imagem certa. O fogo é a morte, o abismo. O fogo me acompanha desde sempre”. (Revolta. Rio de Janeiro: GB Arte, 2000).

No final do seu depoimento a Jehá, após a sequência em que a fumaça da queimada encobre a floresta, Krajcberg diz: “Não adianta eu falar. Eu já recebi até telefonemas: ‘Cala a boca. Não fala tanto’ [ele abre os braços como se perguntasse: ‘O que posso fazer?’] Tudo acontece. Se eu conto tudo, ninguém vai acreditar. Mas é isso. Falei muito. Ninguém conhece como eu este país. Como é grande. Como tem coisas lindas e como a miséria é negra. O Norte do Brasil, dá para chorar… ver essa miséria que existe lá. Brasil, tão rico, tão lindo.”

Na inauguração da 32ª Bienal, feliz com a exposição das suas obras, as palavras finais de Krajcberg, antes de percorrer a exposição de cadeira de rodas, foram: “Salve a Amazônia!”

*

Do alto de uma cadeira improvisada, em frente ao Palácio do Planalto, o presidente da República disse na semana passada aos garimpeiros de Serra Pelada, segundo O Globo (2/10), entre outros despautérios, que “a categoria era ‘feliz’ no tempo do presidente da ditadura [sic] João Batista Figueiredo, quando, […] ‘a legislação era outra’, mas que agora se vê na obrigação de ‘cumprir a lei’ atual”.

Ao contrário do que o presidente também afirmou, além do minério, existe sim interesse autêntico no índio e “na porra da árvore” [sic]. Interesse econômico legítimo de brasileiros e estrangeiros, desde que respeitado o meio ambiente e os direitos dos povos indígenas.

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Nota: Walter Salles, diretor de Krajcberg, O Poeta dos Vestígios e Socorro Nobre, é irmão de João Moreira Salles, editor fundador da piauí, que é o autor do texto e roteiro de Krajcberg, O Poeta dos Vestígios.

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