Os primeiros dias de fevereiro de 2017 foram agitados na sede da Americanas S.A., na rua Sacadura Cabral, Centro do Rio de Janeiro. O balanço fechado pela empresa no ano anterior estava sendo esquadrinhado pela KPMG, uma das mais respeitadas firmas de auditoria do mundo. Preocupados, os diretores da gigante varejista criaram um grupo de WhatsApp chamado “auditoria 2016”. Ali, trocavam informações entre si e, principalmente, discutiam métodos para esconder dos auditores as inúmeras fraudes contábeis que a Americanas vinha cometendo havia pelo menos quinze anos e que, num efeito bola de neve, formaram um rombo de 48 bilhões de reais que quebrou a empresa. O escândalo, tornado público em janeiro de 2023, foi a maior fraude da história das corporações brasileiras.
“Pilotem aí a melhor forma de fazer”, escreveu Fábio Abrate, então diretor financeiro da Americanas, numa mensagem enviada aos colegas no dia 1º. “Não pode dar ruído agora no final.”
O desafio era maquiar as fraudes do chamado “risco sacado”, um tipo de transação comum entre bancos e varejistas. Funciona da seguinte maneira: a empresa de varejo compra um produto do seu fornecedor, mas, para não se descapitalizar, transfere a dívida para um banco. O banco, então, paga o fornecedor à vista, mas com um pequeno desconto. A varejista passa a dever para o banco. A dívida vai acumulando juros, mas ainda assim a operação vale a pena para as empresas, já que os bancos permitem estender os prazos de pagamento – algo que não seria possível com o fornecedor. Feita essa transação, a varejista tem o dever de informar, em seu balanço financeiro, a dívida bancária. Era isso que os gestores da Americanas não faziam. Na prática, fingiam que não havia dívida.
Esconder o esquema, contudo, não era fácil, porque a KPMG também recebia informações dos bancos. A Americanas, com isso, precisava garantir com cada um dos seus credores que a fraude não viesse à tona. “Será que Itaú[1] vem hoje? KPMG está levantando diversos pequenos pontos. E não param de alterar folha de ajustes, pedir explicações e documentos”, escreveu no grupo Rodrigo Martins, outro diretor. “Realmente tá desesperador. Precisamos encerrar”, respondeu Flávia Carneiro, então superintendente de controladoria da rede varejista.
“Estou aqui na blindada”, disse, a certa altura, Murilo Correa, executivo que ocupava o cargo de Chief Financial Officer (CFO) e que, portanto, era o principal responsável por supervisionar as finanças da Americanas. Ele se referia à “sala blindada”, como os diretores apelidaram um espaço reservado na sede da empresa onde eram discutidos “assuntos sensíveis”. Minutos depois, todos os diretores foram até a sala encontrá-lo.
No dia seguinte, 2 de fevereiro, os diálogos no grupo de WhatsApp ficaram mais agitados. “Bom dia. Falei com Itaú agora novamente. Dois caras precisam aprovar. Um já aprovou e outro não. Nosso gerente vai colocar os dois agora para se falarem. O que aprovou vai precisar convencer o que não aprovou. Quando eu tiver novidades, sinalizo”, escreveu Abrate, o diretor financeiro, complementando em seguida: “Temos que estar muito bem preparados. […] Agora é a hora! Vamos com tudo. Itaú não é Santander. Assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais.” Ao ver essa mensagem, um dos diretores chamou Abrate para uma conversa na “sala blindada”. “Miguel está aqui”, afirmou, em uma possível referência a Miguel Sarmiento Gutierrez, presidente da Americanas na época.
Passaram-se seis dias angustiantes. Em 8 de fevereiro, finalmente, Flávia Carneiro brindou os colegas com boas novas: “Parecer [da KPMG] aprovado!”, e enviou no grupo de WhatsApp o documento. “Show! Ufa”, respondeu José Timotheo de Barros, que ocupava o cargo de diretor operacional da empresa.
As conversas de WhatsApp foram obtidas pela Polícia Federal em um inquérito que culminou, nesta quinta-feira (27), numa operação de busca e apreensão contra diretores e outras pessoas ligadas à Americanas. A investigação se baseia na quebra dos sigilos telemáticos dos ex-diretores da empresa e nos acordos de delação premiada assinados em agosto de 2023 com Flávia Carneiro e Marcelo da Silva Nunes, ex-diretor executivo financeiro da Americanas. Os dois esmiuçaram as fraudes e entregaram à PF as trocas de mensagens internas da empresa.
A Justiça determinou a prisão de Miguel Gutierrez e da ex-diretora da Americanas, Anna Christina Ramos Saicali. Nesta sexta-feira (28), Gutierrez, que desde o ano passado vivia na Espanha, foi preso em Madri pela Interpol. Saicali ainda é procurada. Ela deixou o Brasil rumo a Lisboa no último dia 15, com um bilhete comprado poucas horas antes do voo.
Os três controladores da empresa, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, não foram alvos da operação.
A cúpula da Americanas recorria à fraude porque, ao esconder as enormes dívidas com os bancos, conseguia apresentar um balanço com lucro, em vez de prejuízo. O relatório financeiro da empresa dava a entender que tudo ia bem: a Americanas era saudável e altamente rentável. A varejista, com isso, viu suas ações valorizarem de forma consistente ao longo da última década – e, com isso, mais acionistas investiam na empresa, o que mantinha o caixa cheio. De quebra, pelo bom desempenho, os diretores embolsavam bônus milionários a cada ano.
Um dos e-mails obtidos pela PF é ilustrativo. Em 26 de maio de 2022, o então diretor financeiro da Americanas – e mais tarde delator – Marcelo da Silva Nunes escreveu para o diretor operacional da empresa, Timotheo de Barros: “Segue a visão do resultado na visão ‘a vida como ela é’. Devo circular para todos?”, escreveu. “A vida como ela é”, nas palavras de Nunes, era o balanço real da empresa – aquele que continha as fraudes e que, por isso, só circulava internamente. O documento registrava um prejuízo de 209 milhões de reais no primeiro trimestre de 2021. Enquanto isso, os números divulgados para o mercado eram auspiciosos: apontavam lucro de 129,4 milhões de reais.
Para operacionalizar a fraude, segundo a investigação da Polícia Federal, os diretores criavam arquivos contábeis paralelos. Uns eram chamados de “verdes”, outros, de “vermelhos”. Os verdes continham os números fictícios, maquiados; os vermelhos continham os números reais, quase sempre deficitários.
A diretora Flávia Carneiro resumiu, em seu acordo de delação premiada, como a fraude se dava. Aos investigadores da PF, ela afirmou: “O orçamento [da Americanas] era uma meta a ser atingida, e não refletia a realidade. Essa meta era sempre baseada no ano anterior, que também não era real, e isso passou a virar uma bola de neve. A colaboradora [Carneiro] passou se desesperar porque nitidamente não era possível chegar nesses orçamentos, mas eles queriam sempre garantir esse crescimento constante”.
Além da fraude nas operações de “risco sacado”, os diretores se valiam de outros métodos para enganar o mercado, como o registro fictício de cartas de verba de propaganda cooperada (VPC). Trata-se de um acordo por meio do qual uma empresa promove ações de publicidade dos produtos de um fornecedor e, em troca, ganha um desconto na compra desses produtos. A diretoria da Americanas registrava a VPC de ações de marketing que nunca existiram, e assim reduzia substancialmente as despesas com fornecedores.
“Nas reuniões com a auditoria sempre se fez tudo para esconder essas fraudes dos auditores, e o processo de fechamento de resultado de final de ano era sempre muito traumático porque tinham que ser cometidas várias fraudes para esconder da auditoria”, confessou Marcelo Nunes à Polícia Federal. Segundo os investigadores, havia ainda outras estratégias para fraudar as contas da empresa, como a contabilização de despesas como investimentos e a omissão do registro de créditos tributários.
Quando, em agosto de 2022, o economista Sergio Rial foi anunciado como novo CEO da Americanas, sucedendo Gutierrez, os diretores sabiam que era questão de tempo até que as fraudes fossem descobertas pelo mercado e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão de regulação do governo federal. Por isso, naquele momento, começaram a vender suas ações na empresa: Miguel Gutierrez se desfez de 158,5 milhões de reais em papéis; Anna Saicali, 59,6 milhões; Barros, 20,7 milhões; e Abrate, 6,4 milhões.
“Justamente ao perceberem que a assunção de Sergio Rial levaria ao desbaratamento da fraude bilionária nas finanças das companhias, os investigados iniciaram um forte processo de venda de ações, a fim de vendê-las por preço acima do que seria avaliado pelo mercado após a divulgação da fraude”, escreveu o delegado da PF André Gustavo Veras de Oliveira nos pedidos de busca feitos à Justiça e que embasaram a operação desta quinta-feira (27).
No dia 11 de janeiro de 2023 a Americanas divulgou pela primeira vez as “inconsistências” de seu balanço financeiro. Eram da ordem de 20 bilhões de reais. Oito dias mais tarde, piorou: a empresa apresentou na Justiça um pedido de recuperação judicial estimando o rombo em 48 bilhões de reais. O valor correspondia a cinco vezes o patrimônio líquido da empresa, naquele momento.
Os catorze diretores que foram alvos da operação da PF serão indiciados por manipulação de mercado e uso de informação privilegiada, crimes previstos na lei 6.385, de 1976, e também por associação criminosa. Em nota, a assessoria da Americanas disse apoiar as investigações. “A Americanas reitera sua confiança nas autoridades que investigam o caso e reforça que foi vítima de uma fraude de resultados pela sua antiga diretoria, que manipulou dolosamente os controles internos existentes. A Americanas acredita na Justiça e aguarda a conclusão das investigações para responsabilizar judicialmente todos os envolvidos.”
Também por meio de nota, o Itaú, citado nas mensagens obtidas pela PF, negou qualquer participação, direta ou indireta, nas fraudes contábeis da Americanas. “O banco sempre prestou às auditorias e aos reguladores informações corretas e completas sobre as operações contratadas pela empresa, conforme legislação vigente e melhores práticas de mercado. Conforme já esclarecido, os informes enviados às auditorias sempre alertavam para a existência das operações de risco sacado. Os diretores da Americanas envolvidos na operação interagiram com representantes do Itaú no sentido de retirar os alertas. O banco nunca concordou com esse pedido e inclusive interrompeu, por mais de 6 meses, as operações de risco sacado. O Itaú reforça que a elaboração das demonstrações financeiras é de responsabilidade única e exclusiva da administração da empresa e repudia qualquer tentativa de responsabilização de terceiros por falhas ou fraudes nessas demonstrações.”
O Santander, por sua vez, afirmou que “repudia veementemente qualquer insinuação contrária à lisura de sua relação com a Americanas, eventualmente feita por pessoas responsáveis pelas irregularidades ocorridas em sua administração e das quais o banco também é vítima.” A nota diz que o Santander “sempre informou integralmente os saldos das operações da Americanas no Sistema Central de Risco do Banco Central, que constitui uma entre as possíveis fontes de auditagem, além das cartas de circularização”, e que “a responsabilidade pelas ‘inconsistências contábeis’ é exclusiva da empresa, por intermédio de sua antiga diretoria.”
A piauí enviou mensagens para Gutierrez e sua advogada, Ilcelene Bottari, e também para a defesa de Anna Saicali, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem. Os advogados dos demais investigados não foram localizados. O espaço segue aberto para eventual manifestação.
[1] A família do fundador da piauí é acionista integrante do bloco de controle do Itaú.
A reportagem foi atualizada às 13h40 do dia 28/06/2024 para informar a prisão de Miguel Gutierrez, ex-CEO da Americanas.