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questões policiais

Gangue de farda

Corregedoria da PM em São Paulo descobre grupo de policiais que extorquiam, torturavam e matavam

Allan de Abreu | 06 dez 2021_16h06
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O empresário Rinaldo Magalhães, 55 anos, estranhou quando uma voz chamando por Ninão, seu apelido, interrompeu o silêncio da ampla casa da chácara onde morava, a Bando de Loucos, na zona rural de Mairinque, região de Sorocaba, interior paulista. Era raro alguém aparecer à noite por lá, e já passavam das 20h30 daquela sexta-feira chuvosa, 26 de fevereiro de 2021. Como Magalhães tinha um leve problema de locomoção e a entrada da propriedade ficava a uma certa distância da casa, decidiu ir em sua caminhonete. Do outro lado do portão, o interlocutor dizia ser Paulo. Só poderia ser o jardineiro, que tinha esse nome, concluiu o empresário. Quando abriu o portão, porém, Magalhães viu um grupo de homens armados, um deles apontando a arma para o empresário. Assustado, ele correu para a caminhonete, que era blindada, arrancou com o carro e começou a buzinar – pensando ser um assalto, queria avisar a mulher e a filha, que estavam na casa.

Ao ouvir o barulho da buzina, a filha, o namorado e uma amiga dela correram para a mata, e Sandra, mulher de Magalhães, trancou o imóvel e se refugiou em um dos quartos. De nada adiantou: após arrombarem a porta de entrada, os invasores chegaram até Sandra. “Cadê a droga?”, berrou um deles. Quando a mulher disse não saber de nenhuma droga, começou a ser agredida com tapas e chutes. Minutos depois, começou a ser torturada com um saco plástico na cabeça, que lhe tirava o ar até quase desmaiar – ela chegaria a urinar na roupa.

Enquanto a mulher era agredida, Magalhães chegava de caminhonete à casa de um vizinho. Depois de contar a ele o que estava acontecendo e pedir que o amigo acionasse a Polícia Militar, o empresário seguiu com sua caminhonete em busca de ajuda. Quando encontrou um veículo da PM, porém, o resultado foi o pior possível. Magalhães foi morto com tiros de fuzis calibres 556 e 762. Os policiais que atiraram, do 14° Baep (Batalhão de Ações Especiais de Polícia) de Sorocaba disseram mais tarde, na delegacia, que Magalhães teria apontado na direção deles com uma pistola.

Somente no meio da sessão de tortura é que os invasores disseram a Sandra que eram policiais militares e estavam à paisana porque eram do serviço de inteligência do 14° Baep. Só um não era PM: o jovem Artur Donizetti Devechi Júnior, 24 anos, que fornecia à polícia informações sobre pontos de venda de drogas na região em troca de parte do entorpecente – os policiais costumam se referir a esses informantes como “gansos”. Não havia drogas na chácara.

Devechi Júnior havia sido apresentado ao tenente do 14º Baep Adinan da Rocha Lima, um dos que estavam na chácara, pelo cabo Jackson Moisés Bastos de Jesus, do 1° Baep, de Campinas, para quem o rapaz também trabalhava como “ganso”. Lima acabaria condenado pela Justiça Militar a um ano de prisão por invasão de domicílio (a defesa dele disse que vai recorrer, e somente irá se manifestar dentro da ação penal); cinco PMs, subordinados ao tenente, receberam penas de cinco anos de prisão cada um pelo crime de tortura. Outros quatro policiais militares respondem a ação penal na 2ª Vara Criminal de Mairinque por homicídio. 

Devechi Júnior, o informante, não foi denunciado pelo Ministério Público. Quando os policiais da Corregedoria da PM de São Paulo começaram a investigar as relações de Devechi Júnior na Polícia Militar, descobriram um enredo macabro de extorsões e assassinatos nos quais policiais militares de Campinas são os principais acusados. Era o início da Operação Grey Goose, ou Ganso Cinza, em referência à cor da farda da PM paulista.

 

Ainda no primeiro semestre deste ano, Devechi Júnior assinou um acordo de delação com a corregedoria. Em um de seus depoimentos, disse que era comum abordar narcotraficantes da região de Campinas dizendo-se interessado em comprar droga, e que quando o produto era entregue a ele os policiais davam o flagrante – em troca, Devechi Júnior recebia entre 500 e 1.000 reais. Como os PMs não recebem nenhuma gratificação extra por ocorrência de tráfico apresentada na delegacia, a suspeita dos corregedores é de que o grupo revendia ao menos parte da droga a outros traficantes – em Campinas, apenas os policiais do 1º Baep possuem câmeras nas fardas, instaladas em junho último.

A investigação da Corregedoria da PM mostrou ainda que o grupo de policiais utilizava técnicas ilegais de monitoramento de assaltantes de Campinas – não para prendê-los, mas para assassiná-los, simulando confrontos inexistentes, segundo os corregedores. Na tarde de 18 de setembro último, um cabo da PM telefonou para o seu superior imediato, o sargento Osmar de Oliveira Novais, do 35° Batalhão, dizendo que “os moleques acabaram de fazer um roubo” em Valinhos, cidade vizinha a Campinas. “Tá online aqui o negócio”, completou o cabo. Para os corregedores, o PM se referia ao aplicativo Bruno Espião, que, segundo o site do aplicativo, pode ser instalado remotamente a partir do número do telefone ou do e-mail da pessoa que se quer monitorar. Uma vez acionado, o programa monitora a localização do aparelho e consegue acessar a câmera dele remotamente. “A gente tá vendo os caras aqui, eles tão […] dando rolê, tão falando”, completou o cabo.

Na mesma conversa com o sargento Novais, o cabo informou que outro veículo da PM estava a caminho da sede do batalhão para “buscar o equipamento” – uma arma com numeração raspada que seria colocada junto aos assaltantes logo após serem mortos, com o objetivo de simular um confronto com os policiais. Enquanto isso, outra equipe de policiais, chefiada pelo sargento Willians de Souza Bento, também do 35° Batalhão, monitorava o deslocamento do carro dos assaltantes por meio de um rastreador inserido por baixo do veículo. O objetivo, segundo a corregedoria, era abordar os ladrões no Jardim Campo Belo, Zona Sul de Campinas, onde a quadrilha morava, e assassiná-los. Mas, sem saberem que estavam sendo seguidos, os ladrões entraram em um imóvel onde havia outras pessoas, e as possíveis testemunhas frustraram a intenção dos PMs. “Resta evidente que os policiais da Força Tática não desejavam localizar e deter o criminoso que praticou um roubo recente, mas que o monitoramento é empregado para o localizarem com o veículo em movimento, para que a abordagem se proceda longe de testemunhas e em situação que os militares já estejam com a ‘ferramenta’ em condições”, conclui a corregedoria.

Quatro dias depois, em outra ocorrência policial, o desfecho seria trágico. Na tarde de 22 de setembro, Luciano Gomes Calonga, 26 anos, motorista de Uber, foi rendido por dois assaltantes e obrigado a acompanhar a dupla em um roubo a uma padaria na periferia da cidade. Na fuga, somente um dos ladrões seguiu no carro de Calonga, um Fiat Uno alugado. Minutos depois, a central de comunicações da PM de Campinas começou a divulgar para as equipes na rua que dois rapazes vinham praticando assaltos na cidade em um Fiat Uno. Uma dessas equipes de policiais, chefiada pelo sargento Novais, diria mais tarde, na delegacia, que trocou tiros com os criminosos e que os dois morreram no local – a perícia encontrou uma pistola sobre o corpo de Calonga.

No entanto, gravações de telefonemas captados pela Corregedoria com autorização da Justiça revelaram que, instante após a suposta troca de tiros, Novais, com voz ofegante, ligou para um cabo que estava em outro veículo, em equipe comandada pelo sargento Bento: “Traz o bagulho pra mim rápido, traz aceso. […] Traz o QRU pra mim”, pedia. “Tamo indo”, respondeu o interlocutor. Imagens de câmeras na rua captaram o encontro do sargento com o cabo, para que esse último entregasse a ele o “QRU”: para a corregedoria, era a arma com numeração raspada que Novais colocou no colo de Calonga “acesa”, ou seja, com disparos já deflagrados, para simular uma troca de tiros. Enquanto isso, outra equipe de PMs, ao saber da ocorrência, comemorou: “Tá redondinho tudo, testemunha o caramba a quatro!”, disse um deles. “Também, só tinha assassino na barca [veículo da PM]”, rebateu o outro.

Na tarde de 10 de outubro, seria a vez de o sargento Bento protagonizar um suposto confronto que, por muito pouco, também não terminou em morte. Na versão oficial da PM, a equipe do sargento tentou abordar dois rapazes em uma moto na Avenida Washington Luís, mas a dupla desobedeceu a ordem, o que motivou uma perseguição por parte dos policiais. Próximo ao estádio do Guarani Futebol Clube, ainda segundo os PMs, a dupla começou a atirar contra o carro da corporação. Em reação, Bento acertou um tiro no abdômen de um dos jovens e dois no peito do outro – apesar da gravidade dos ferimentos, os dois sobreviveram. Segundo a Corregedoria, nenhuma das vítimas tinha antecedentes criminais, e a moto estava em situação regular. O delegado que registrou a ocorrência estranhou o fato de a suposta arma que estaria com um dos rapazes ter sido apresentada na delegacia, em vez de ter sido deixada na cena do possível confronto, o que prejudicou a perícia. “É necessário observar que a postura desempenhada pelo policial militar sargento Bento, quando se apoderou do armamento em via pública e o apresentou no plantão policial antes mesmo da realização da perícia, denota obscuridade na formalização de eventual auto flagrancial”, escreveu.

Quando souberam que o “ganso” Artur Devechi Júnior tornara-se um colaborador da corregedoria, os PMs de Campinas passaram a ameaçá-lo. Um mês após o assassinato em Mairinque, o jovem foi abordado por um veículo com dois policiais, que pediram para ele “sumir” da cidade. Em agosto, o “ganso” voltou a ser ameaçado, dessa vez pelo sargento Bento e pela equipe dele – um dos PMs disse que iria entregá-lo aos “irmãos do partido” para que fosse morto por eles, em uma referência à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Em seguida, segundo Devechi Júnior, os policiais teriam instalado o aplicativo de monitoramento Bruno Espião no celular dele.

Por conta dos fortes indícios contra os policiais e das ameaças ao delator Devechi Júnior, o juiz Ronaldo João Roth, da 1ª Auditoria da Justiça Militar paulista, determinou a prisão preventiva de onze PMs de Campinas, incluindo os sargentos Bento e Novais, após pedido da Corregedoria da Polícia Militar. “Os fatos são gravíssimos, vez que os policiais militares investigados se envolvem intencionalmente em ocorrências com evento morte, por sentimento pessoal, coagindo testemunhas, fraudando locais de crime, exigindo vantagens ilícitas, quebrando sigilos de forma ilegal, coagindo e ameaçando civis”, justificou Roth. Todos foram presos na quinta-feira, dia 25.

Paulo Francisco Teixeira Bertazine, advogado do sargento Novais, disse que as acusações contra o PM não procedem, e que irá provar isso durante a instrução processual. Ele também afirmou ter ingressado com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça Militar de São Paulo para tirar o sargento da cadeia (o pedido não havia sido julgado até o fim da quarta-feira, dia 1. A reportagem não conseguiu contato com a defesa do sargento Bento. Em setembro deste ano, Bento recebeu na Câmara de Vereadores de Campinas a medalha “General Nelson Santini Júnior” “por sua contribuição ao campo da segurança pública”.

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