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    Ilustração de Paula Cardoso

questões ambientais

Garimpeiros caçam policiais em parque de SP

Extração ilegal de ouro causa tiroteio e morte em reserva ambiental no Vale do Ribeira

Allan de Abreu | 06 maio 2020_13h50
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É madrugada de sábado, dia 2, e cinco homens, três deles policiais ambientais, estão exaustos, tensos, famintos, perdidos na mata fechada do Parque Estadual Intervales, no Vale do Ribeira, Sul do estado de São Paulo. Apesar do cansaço, não conseguem dormir. Comunicam-se por sussurros e estão proibidos de acender as lanternas ou fazer fogueira para afugentar o frio da floresta. Qualquer descuido poderia trazer de volta os garimpeiros, que horas antes haviam baleado um vigilante do parque e assassinado outro com um tiro fatal na cabeça.

Em vinte anos na profissão, o sargento Marcel Shimoi, 41 anos, nunca havia passado por momentos tão tensos. “É um milagre eu estar vivo”, diz. Shimoi foi escolhido pelo batalhão da Polícia Militar Ambiental de Registro para comandar uma operação de caça aos homens que frequentemente invadem o parque de 41 mil hectares para extrair palmito, o que é ilegal. O sargento, dois cabos e os vigilantes do parque Damião Cristino de Carvalho Júnior, 28 anos, e Luiz Soares de Lima, se reuniram às 9 horas em uma das entradas do parque, no local conhecido como Saibadela, e mergulharam em uma das trilhas. Os três policiais portavam, cada um, pistolas calibre 40, padrão da PM paulista. Carvalho Junior levava no coldre um revólver calibre 38; já Lima não estava armado. Pela trilha, venceram uma pequena serra e se depararam com um caminho novo, recém-aberto na mata. Foram por ele.

Por volta de meio-dia, um dos soldados tropeçou em uma linha fina de nylon, quase transparente, esticada na trilha, a poucos centímetros do chão. Retesada pela bota do policial, a linha acionou o gatilho de uma arma improvisada, voltada para o alto, apelidada de “canhãozinho” – por sorte, o cartucho picotou e não houve o disparo, que serviria de alerta para algum grupo de criminosos na floresta – os garimpeiros costumam utilizar esse estratagema na região. Os três policiais e os dois vigilantes caminharam mais alguns metros na trilha até avistarem o garimpo, na subida de uma serra: havia motor de automóvel, gerador, bomba d’água, motosserras, galões com mercúrio, um martelete para perfurar as rochas em busca de ouro e tendas de lona. “Como aquela área é de difícil acesso, suspeitamos que esses materiais tenham sido levados até lá de helicóptero, o que mostra o poder econômico do dono do garimpo”, diz Rodrigo Levkovicz, diretor executivo da Fundação Florestal, que administra o parque.

Segundo Levkovicz, desde o ano passado o parque Intervales tem sido invadido por garimpeiros em busca de ouro – há três meses a Polícia Ambiental descobriu outro garimpo na reserva, com olheiros espalhados pelas imediações, prontos para denunciarem qualquer aproximação policial.

O Vale do Ribeira abriga garimpos há séculos – não à toa uma das cidades vizinhas a Sete Barras é Eldorado, povoado que surgiu da mineração do ouro no século XVI e leva esse nome em alusão à lenda de que haveria na América do Sul um local repleto de ouro. Foi nessa última cidade que o presidente Jair Bolsonaro passou a infância e a adolescência. Mas a atividade garimpeira estava em profunda decadência na região até a posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019. 

Desde então, tanto a Polícia Ambiental quanto a Fundação Florestal têm notado o avanço dos garimpeiros pelas reservas florestais do Vale do Ribeira e a agressividade diante da polícia. Bolsonaro é um entusiasta do garimpo – ele e o pai chegaram a atuar na lavra do ouro em Serra Pelada, Pará, no início da década de 1980. “O garimpo é um vício, está no sangue”, disse Bolsonaro, antes de assumir a presidência. “É preciso parar de tratar o garimpeiro como bandido no Brasil.” Em fevereiro, ele enviou projeto de lei ao Congresso que permite a atividade garimpeira em terras indígenas. “As ações e os discursos do Bolsonaro sinalizam que o garimpo está liberado no Brasil, e que os órgãos de repressão não mandam em mais nada. Isso é trágico para o meio ambiente”, afirma Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.

 

Na ação flagrada pela Polícia Militar Ambiental, pelo menos quatro homens estavam atuando no garimpo instalado dentro do parque. Quando chegaram a cerca de 15 metros do local, os policiais e vigilantes decidiram dar o bote. Um dos garimpeiros foi rapidamente detido e algemado, mas os demais conseguiram fugir pela mata. Cinco minutos depois, enquanto os policiais caminhavam pelo garimpo, ouviram o primeiro tiro, que atingiu de raspão a perna esquerda do vigilante Lima. Os policiais e os dois vigilantes buscaram abrigo em uma das tendas quando veio o segundo tiro, na têmpora de Carvalho Júnior. Morte instantânea.

Os três policiais revidaram os tiros, mas não conseguiam enxergar os garimpeiros escondidos na mata. “Só víamos os vultos deles quando se movimentavam. Estávamos muito expostos”, afirma o sargento Shimoi. Em busca de abrigo, os três policiais e o vigilante ferido rastejaram até um barranco, onde o tiroteio continuou. “Já atiramos em dois, agora vamos acertar os outros”, gritou um dos garimpeiros – a polícia suspeita que eles estivessem armados com carabinas. Por sorte, surgiu um sinal fraco no celular de Lima. Shimoi então ligou para o Centro de Operações Policiais Militares (Copom) em Santos e, no meio da troca de tiros, pediu ajuda.

O tiroteio durou cerca de 10 minutos. De repente, os garimpeiros pararam de atirar. No meio da tarde, do barranco em que estavam escondidos, os policiais viram um dos três helicópteros da PM sobrevoar a mata – eram três aeronaves, que partiram de helipontos de São Paulo, Sorocaba e Praia Grande. Nem assim os garimpeiros recuaram – em meio ao barulho das hélices, retomaram os tiros. Shimoi ateou fogo na lona de uma das tendas para sinalizar aos helicópteros, pela fumaça, o ponto onde estavam. Mas a mata fechada impedia um pouso seguro. “Vamos cercar eles no barranco”, gritou um dos garimpeiros. Os policiais perceberam o risco de ficarem naquele local. Optaram por fugir de lá com o garimpeiro preso, deixando para trás o corpo de Carvalho Júnior. Com facões, abriram picadas na mata – se seguissem pela trilha dos garimpeiros, fatalmente seriam emboscados novamente.

Começou a escurecer e os helicópteros foram embora. Perdidos na mata, a única estratégia era ficarem na mata noite adentro, à espera do dia clarear e os helicópteros da PM retomarem as buscas. Às seis da manhã de sábado, nos primeiros raios de sol, o grupo, cansado, faminto e com sede, retomou a caminhada pela mata até chegar às margens do Rio Forquilha. Havia uma forte neblina sobre o parque, o que impossibilitava a aproximação dos helicópteros. Somente no fim da manhã é que os três policiais e o vigilante ferido ouviram novamente o barulho das aeronaves. Foram então para o alto de um morro onde havia uma pequena clareira na mata. Como não havia mais sinal de celular, a saída era contarem com a sorte e serem visto pelas aeronaves. A sorte veio por volta de meio-dia, 24 horas após o flagrante no garimpo. O helicóptero pousou, resgatou os cinco e levou-os para Sete Barras, onde foram atendidos no pronto-socorro da cidade. Somente Lima, ferido na perna, ficou internado até domingo, quando também teve alta médica. Na madrugada, pela mata, policiais do Comando de Operações Especiais (COE), tropa de elite da PM paulista, haviam alcançado o garimpo e resgatado o corpo de Carvalho Júnior. Eles atearam fogo nos equipamentos utilizados para a lavra do ouro.

Quando ainda estavam na mata, o garimpeiro detido disse aos policiais que fora contratado por R$ 2 mil semanais para trabalhar no garimpo. Ele foi indiciado por garimpo ilegal e associação criminosa. A Polícia Civil de Registro investiga tanto o assassinato do vigilante quanto a extração de ouro numa lavra ilegal no meio da reserva.

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