Se nos tempos de glória dissessem a Maritza Pineda Montoya que sua vida na velhice se resumiria a uma busca interminável por um remédio pelas ruas de Caracas, a ex-Miss Venezuela teria gargalhado. Mariángel Ruiz, outra vencedora do concurso nacional e segunda colocada no Miss Universo, duvidaria que seu salário daria para apenas quinze dias de supermercado. Helena Merlin, Miss Barinas, terceira colocada no Miss Venezuela e, a seu tempo, uma das mulheres mais populares do país, chegou a estudar na Suíça antes de viver como hoje, tendo que comer apenas uma refeição por dia.
As rainhas dos concursos de beleza são o produto de exportação mais midiático da Venezuela. Quando pequenas, milhares de crianças sonham com uma vida de miss – algo como se tornar atacante da Seleção para uma criança brasileira. A crise política e econômica sofrida pelo país não poupou sequer os símbolos nacionais. Os dólares, as viagens, as campanhas publicitárias, os programa de tevê e os editoriais de beleza em tempos de reinado não foram suficientes para apartá-las da vida da maioria do povo venezuelano, que vive um dia após o outro em um país de inflação descontrolada (720% ao ano), salários achatados, alimentos e remédios escassos – o desabastecimento atinge 80% dos produtos da cesta básica. Há doentes morrendo nos hospitais por falta de medicamentos básicos.
Durante o mês de setembro, a piauí acompanhou a rotina na vida de três ex-misses que ainda vivem no país – a maioria migrou por conta da crise – para mostrar como suas vidas retratam parte do cotidiano do próprio país.
Maritza Pineda Montoya, 61 anos, Miss Venezuela 1975
Maritza Pineda Montoya saiu de casa às seis da manhã e deixou o café pela metade. Era questão de vida ou morte, dissera o médico na noite anterior. Ela mal dormira. Tinha duas horas para encontrar um antibiótico que estancasse uma infecção que acometia sua irmã – em tratamento contra um câncer. “Foram horas desesperadoras”, me contou quando nos conhecemos em sua casa no bairro Urbanización Macaracuay. Ela olhou para cima e ergueu a sobrancelha fina, ao mesmo tempo que arregalou os olhos castanhos contornados com lápis preto.
A inquietude começou ainda no dia anterior, quando ela percorreu Caracas atrás do medicamento. Com a crise, o Meropenem praticamente sumiu das prateleiras. Cada dose custa 75 mil bolívares (cerca de 61 reais). Encontrara apenas três doses, suficientes para um dia de tratamento. Na manhã seguinte, já na rua, sentiu fisgadas no estômago quando olhou para o relógio e viu que já eram sete horas. Sua irmã precisava tomar a próxima dose às oito.
Desesperada, parou na calçada e pediu ajuda pelas redes sociais. Funcionou, por fim: depois de incontáveis contatos, suspirou aliviada ao ler que uma enfermeira possuía o medicamento em casa. Cobraria 20 mil bolívares mais caro e, assim, cada pílula lhe custou 95 mil bolívares (o salário mínimo é de aproximadamente 250 mil). É comum por lá que funcionários de farmácias e outros órgãos ligados a produtos escassos cobrem uma ágio para vendê-los. “Como ela consegue esse medicamento? Deixo a conclusão para você”, disse Montoya.
Há pelo menos um ano, sua rotina resume-se na peregrinação pelas farmácias de Caracas em busca do medicamento para a irmã – tarefa que lhe toma quatro horas diárias, muitas vezes, sem êxito. “Quando não encontro, ligo para familiares e amigos perguntando se podem ajudar”, conta, enquanto se prepara para ser fotografada por mim.
A delicadeza ao ajeitar o cabelo armado de laquê e a maneira como se posiciona para fotos não deixam dúvidas de que ali está a Miss Venezuela 1975. A etiqueta é um dos resquícios de uma época em que sua realidade era bem diferente de agora, quando a maior preocupação era não tropeçar na passarela. Tinha 17 anos quando conquistou a coroa, ganhou 3 mil dólares, um carro e viajou pelo mundo. Morou na França e no Canadá, mas sempre quis voltar para a Venezuela. E assim o fez, há quinze anos, quando abriu com o marido uma empresa de alimentos congelados. Os anos consecutivos de guerras políticas e economia em declínio lhe atingiram em cheio.
Administrar o negócio tem sido difícil sobretudo nos últimos cinco anos, segundo conta. Com a escassez de sacolas e outros produtos para o processo de embalagem, o preço final é reajustado a cada quinze dias. Ela estima que, desde 2015, a produtividade baixou 50% – e a mesma porcentagem de funcionários foi demitida nesse período.
Ainda assim, não se diz arrependida de escolher a Venezuela como lar. Quando perguntada sobre o que quer para seu país, ironiza: “O que dizer? O que todas as misses respondem? A paz mundial? Não. Eu quero estabilidade. E pessoas responsáveis para administrar o país. Que amem assim como eu o amo.”
O termômetro atingiu quase 40 graus na tarde de 8 de setembro, na comunidade de Barlovento, ao leste de Caracas. O clima sufocante não tirou o sorriso do rosto de Mariángel Ruiz, que acompanhava atenta o comício de Carlos Ocariz, candidato a governador pelo partido de oposição Primero Justicia. A ex-miss mantém um relacionamento com o político há sete anos. “Se levar ela sempre junto, já ganhou”, prognostica confiante um dos 300 moradores que acompanhavam o ato. O público, de fato, está mais interessado nela do que no candidato. Mariángel Ruiz se levanta, acena, sorri. Tira fotos com todos. Um pequeno déjà-vu do ano de 2002, quando era Miss Venezuela e conquistou a vice-posição do Miss Universo.
Acompanha os comícios sempre que pode, não somente por questões pessoais, mas também ideológicas. “Porque quero e acredito em uma mudança para libertar nosso país”, me disse, como se tivesse ensaiado a resposta.
Ela ganhou a coroa no mesmo ano da tentativa frustrada do golpe de Estado contra o então presidente Hugo Chávez. Tinha 22 anos. Lembra que viajou para vários países, trabalhou como modelo para diversas marcas e como atriz do canal Venevision, que detém os direitos do concurso. Foi escolhida pela ONU como embaixadora da paz em 2011 e escreveu um livro, Siempre Perfecta, com dicas de moda e beleza. Os anos de reinado derreteram rapidamente com o avançar da crise. Em 2007, ela já trabalhava como auxiliar administrativa em uma seguradora para terminar de pagar os dois apartamentos que comprara em anos de vacas gordas.
O salário que ganha hoje como apresentadora de rádio compra quinze dias de comida. Quando não está trabalhando ou acompanhando o marido em comícios, ela passa os dias buscando por alimentos de primeira necessidade em diferentes pontos da cidade. Cozinhar e lavar sua própria louça – antes programas impensáveis – se tornaram rotina para poupar gastos. Sem se importar se, para isso, já não segue mais algumas das dicas que recomenda em seu livro. Usa pouca maquiagem e repete roupas, pois há dois anos não renova o guarda-roupa.
Apesar da crise, ela ainda mantém alguns luxos inalcançáveis para a maioria dos venezuelanos. “Isso porque também trabalho em uma agência de seguros internacional”, disse. O cargo lhe reserva alguns luxos concedidos aos funcionários, como jantar em restaurantes esporadicamente, ser sócia do Clube Hípico e manter o colégio particular da filha – que custa o equivalente a um salário mínimo venezuelano.
No fim daquele dia 8, depois de voltar do comício e cozinhar um frango com arroz para o jantar, Ruiz descansava no sofá do seu apartamento quando recebeu uma mensagem. Era um de seus 889 mil seguidores no Instagram. Não mandava abraços ou exaltava suas qualidades, mas, sim, pedia ajuda para encontrar um medicamento que necessitava para a avó. “É assim que estamos agora, usando redes sociais para pedir remédios”, comentou ela, sacudindo a cabeça. Achou melhor desligar o aparelho.
Helena Merlin, 61 anos, Miss Barinas 1975
Eram seis horas da tarde do dia 18 de setembro quando começou a anoitecer na cidade de Porlamar, em Margarita. A ilha parecia um pouco mais isolada do continente pela falta de gasolina havia quinze dias. Os poucos postos de abastecimento abertos tinham filas de centenas de metros – um cenário quase distópico no país que mais exporta petróleo nas Américas. Em uma parada de ônibus, Helena Merlin aguardava para percorrer o caminho de uma hora de volta para casa. Poucos ônibus circulam, e, quase sem combustível, os táxis sumiram. Já começava a escurecer quando nos encontramos na parada.
Na manhã daquele dia, Merlin acordara com vontade de tomar café. Comemorou quando encontrou o produto depois de pegar dois ônibus e rodar muitos quilômetros. “Estava caro, mas pelo menos tinha”, me disse, enquanto esperávamos pelo transporte público. Tentei puxar assunto, mas a única coisa que lhe vinha à mente era o desabastecimento. Pouco tempo antes, quando estávamos no supermercado, ela se aborreceu quando lhe informaram que não havia açúcar – já não lembra quando foi a última vez que adoçou o café. Sua lista básica tinha somente treze itens, o que custaria “100 mil bolívares no total”, como lhe avisara a atendente do caixa. “Isso vai dar para dez dias de refeições, creio”, calculou a ex-miss, espremendo os olhos azuis. “Meu salário é de 350 mil bolívares”, confessou à atendente, que não lhe deu atenção.
Aos 61 anos, não poderia imaginar que sua vida tomaria esse rumo. Helena é filha de imigrantes franceses e teve uma infância “de milionária”, como define. Estudou na Suíça e fazia diversas atividades extracurriculares, como natação e tênis. Com 19 anos, conquistou o título de Miss do Estado de Barinas e foi a terceira colocada no Miss Venezuela. Ficou popular. Viajou para o Japão e foi modelo de diversas marcas de roupas e perfumes. Conseguiu emprego como aeromoça aos 22 anos, com um ótimo salário, que lhe possibilitava pagar um aluguel numa área nobre de Caracas, e comprar produtos das suas marcas favoritas, Gucci, Victoria’s Secret e Guess.
Nessa época, disse, também foi amante do então presidente do país Carlos Andrés Pérez. “Fui a dona da Venezuela por meses”, graceja, sem disfarçar orgulho. Hoje, faz uma refeição por dia – geralmente peixe e batata –, e só consegue comprar comida porque suas três filhas lhe enviam dinheiro todo o mês.
Helena Merlin foi viciada em drogas e chegou a viver na rua. Depois da reabilitação (em Cuba), decidiu abrir um hotel para cachorros em sua casa. “A sorte é que muita gente está saindo da Venezuela e deixando seus cães comigo até se estabilizarem em outro país.” Mesmo assim, fatura o equivalente a um salário mínimo.
Sua cozinha espelha a de boa parte dos venezuelanos: geladeira vazia, mas uma prateleira inteira para guardar remédios. “Compramos quando encontramos, mesmo sem precisar, porque nunca se sabe quando vai chegar de novo. Coloco aqui para conservar mais tempo”, contou. O mercado paralelo de medicamentos formou uma nova economia no país. Quando parentes da França vieram lhe visitar, em janeiro, ela pediu antibióticos como “souvenirs”.
Na beira da estrada, ela checou o relógio mais uma vez. Eram 18h30. Entre um “puta madre” e outro, uma amiga passou de carro, por acaso, e lhe ofereceu carona. “Meu anjo da guarda, já pensei que dormiria no shopping”, agradeceu Helena. Chegou em casa cansada – vive na última residência de uma rua de chão, numa paisagem que não dá pistas de ser um dos destinos turísticos mais procurados da Venezuela. As ruas estavam vazias, e ela já não tinha mais comida na geladeira.
Sentou e abriu um pacote de cereal de milho. Tinha ainda um pouco de leite. Foi deitar por volta das 22h15, rodeada por quinze cachorros. Programou o relógio para 5h30 e esperou pelo sono, que deveria chegar logo “porque tem muita faxina para fazer amanhã”. E assim a ex-miss sobreviveu a mais um dia na Venezuela.