A jovem loira está abraçada a Benjamin Button, mas não olha para ele. Seus olhos verdes estão voltados para a câmera.
A loira é Taylor Swift. Benjamin Button é um de seus três gatos. E ele não parece feliz. Com as patas dianteiras apoiadas no ombro e no antebraço de sua dona (ou tutora, se preferirem), Button também encara a câmera de frente. Tem olhos azuis e uma cara de tédio.
Taylor Swift publicou a foto no Instagram, na noite de 10 de setembro, logo depois de encerrado o debate entre Kamala Harris e Donald Trump, para manifestar seu apoio à candidata democrata à Presidência dos Estados Unidos. Como é de praxe nesses endossos eleitorais, o texto que acompanha a imagem elogia Harris em termos muito genéricos e um tanto hiperbólicos: ela seria a “guerreira” que está pronta a defender causas caras à apoiadora famosa. O tom do endosso, no entanto, é sereno: Swift não anuncia o apocalipse caso o candidato republicano vença a eleição. Sua mensagem não é “ele não”, mas “ela sim”. “Acredito que nós podemos conquistar muito mais neste país se formos liderados pela calma e não pelo caos”, diz a pop star. Está bem claro quem é a calma e quem é o caos. A cantora de Bad Blood ainda lembrou seus seguidores que é preciso se registrar para exercer o direito ao voto. Houve um pico de novos registros nos dias seguintes.
No finalzinho, Swift deixou um toque de malícia: assinou a mensagem apresentando-se não como “cantora, compositora e bilionária”, mas como “mulher dos gatos sem filhos”.
Benjamin Button decerto parece contrariado porque não gosta de ser agarrado e imobilizado para participar de sessões de fotografia. Ou talvez suas feições sejam naturalmente assim: muitos gatos aparentam estar sempre de mau humor. Na minha fantasia, porém, ele está irritado porque sua humana o arrastou para disputas políticas que não lhe dizem respeito.
Ao se apresentar como uma dona de gatos sem filhos, Taylor Swift ironizou uma declaração infame do candidato a vice-presidente na chapa de Donald Trump. Em uma entrevista a Tucker Carlson na Fox News, em 2021, J.D. Vance disse que as mulheres que mandam no Partido Democrata são todas gateiras que, não tendo filhos, sentem-se infelizes com as escolhas que fizeram na vida – e ainda querem que todo o país seja infeliz também.
Fiquei tentado a traduzir a expressão original, “childless cat lady”, por “solteirona dos gatos”. Estaria de acordo com o escancarado machismo de Vance. Mas nem toda “cat lady” é solteira. Entre os exemplos de mulher dos gatos sem filho que Vance apresentou, estava a própria Kamala Harris, que é casada e tem duas enteadas, mas nenhum filho biológico.
Vance obviamente não inventou a figura caricata da doida dos gatos, que vem atravessando diferentes culturas e incontáveis gerações. O folclore em torno do personagem, porém, costumava ser apolítico. Não ocorria a ninguém perguntar se a senhora de idade – viúva ou solteira – que abre sua casa a todos os felinos desgarrados da vizinhança era de esquerda ou direita.
Minha avó foi uma mulher dos gatos. Teve cinco filhos e incontáveis felinos. Quando eu a visitava, ela me dava cinquenta centavos de cruzeiro para comprar minha bondade: “É para tu não judiar dos meus gatos”, dizia (sim, o verbo tem uma raiz antissemita, mas minha avó não sabia disso). O suborno moral nem sempre funcionou: tenho de confessar, envergonhado, que certa vez puxei o rabo de um bichano.
Viúva, minha avó já estava em franco declínio de suas faculdades mentais quando a conheci. Morreu quando eu devia ter 10 ou 11 anos. Tudo que sei sobre ela é que era católica e amava gatos. Guardo a memória de uma velhinha sentada na poltrona da sala, com um de seus gatos no colo e o terço entre as mãos. É quase a fotografia do estereótipo.
Suspeito que você, leitor, também já tenha cruzado com alguma senhora muito devotada a seus bichanos. Estereótipos com frequência são retratos simplificados de figuras reais do cotidiano. A simplificação reduz seu objeto a um aspecto único, o que permite que o estereótipo sirva de veículo para preconceitos torpes – eis aí Vance recorrendo à senhora supostamente solitária com gatos para afirmar que uma mulher só pode ser feliz se for parideira.
Em certa medida, porém, estereótipos são inelutáveis. Eles perpassam a maneira (negativa ou positiva) como vemos nacionalidades e culturas diferentes da nossa e sustentam os piores temores (fundamentados ou paranóicos) que temos em relação a adversários políticos. Mas há meios de reconfigurar velhos estereótipos. É o que o escritor sul-africano J.M. Coetzee faz em A velha e os gatos, umas das sete narrativas de Contos Morais.
A velha dos gatos desse conto é uma personagem recorrente da obra de Coetzee: a escritora e ativista dos direitos animais Elizabeth Costello (que, aliás, também é recorrente em minhas colaborações para piauí: já apareceu em O dilema do espaguete suicida, na revista de janeiro, e em O tédio e a esperança de um cavalo ilhado, que saiu neste site em maio). A história relata a visita que John, filho de Costello, faz à mãe na inóspita aldeia da Espanha em que ela decidiu viver. Sua casa rústica é habitada por “gatos semisselvagens” que “se espalham para todo lado cada vez que alguém entra na sala”. Para alimentar essa gataria, a feroz opositora dos matadouros suspende seus princípios mais caros: usa ração feita com carne animal. “Quer que eu alimente os gatos com tofu?”, pergunta ela, irritada, quando John a questiona sobre isso.
Tal como aparece no conto, Elizabeth Costello cabe inteira no figurino da doida dos gatos. Mas não é uma senhora senil imobilizada na poltrona diante da tevê: em suas discordâncias e confrontos com o filho, ela mantém a inteligência aguda e original que sempre a distinguiu. Escritora ciosa da precisão vocabular, ela corrige John quando ele fala que certo filhote da gata tem uma mancha branca na cara: “Animais não têm cara propriamente, porque não têm a musculatura fina em torno dos olhos e da boca com que os seres humanos são abençoados para que nossa alma possa se manifestar. Por isso a alma deles fica invisível.” A palavra que ela propõe em vez de cara é “fisionomia” (eu mesmo não sou tão preciosista – ou teria de mudar a passagem em que falo da “cara de tédio” do gato de Taylor Swift).
Professor de física e astronomia, John admite não entender o que a mãe quer dizer quando fala em “alma”. Entre aqueles que, ao contrário de John, depositam fé na existência de uma alma imortal, haverá quem dispute a noção de que animais sejam abençoados com esse atributo. E há ainda uma antiga tradição segundo a qual o gato tem uma alma, ou, se não tanto, uma essência – e que ela é perversa.
Dito de forma mais direta: o gato tem fama de mau.
É provável que o estereótipo da “doida dos gatos” seja herdeiro da associação medieval entre gatos e feitiçaria. Os gatos pretos, em particular, ainda hoje são vistos com temor supersticioso. A ideia de que esse animal tem parte com o diabo é renitente. O bichano que dá título a O gato preto, por exemplo, tem toda a aparência de um demônio, ainda que no conto de Edgar Allan Poe ele leve um assassino à justiça.
Bicho doméstico mas não exatamente domesticado, o gato é um predador. Na perseguição a suas presas, ele parece “brincar” com elas. Deve vir daí sua fama de cruel, atestada até por Charles Darwin. Em uma carta de 1860 ao botânico norte-americano Asa Gray, o autor de A origem das espécies citava uma vespa que deposita seus ovos no interior de lagartas vivas e o gato que caça ratos como exemplos de crueldade que colocam em dúvida a noção de que a natureza é o projeto de um “Deus onipotente e benevolente”.
Não vejo os gatos como animais perversos, mas sei que eles não são bichinhos fofos. Na minha experiência com felinos, já fui arranhado e mordido mais vezes do que gostaria de contar. Aceito a ambivalência dessa criatura que produz o som mais relaxante que eu conheço – o ronronar – e ao mesmo tempo “esconde um canivete suíço em cada pata”, como diz um poema de Nelson Ascher. Hoje temos a sorte, minha família e eu, de conviver com duas gatas pretas e uma “sialata” (é como se chamam as siamesas sem pedigree) que são relativamente dóceis. Os elurófilos – informalmente conhecidos como gateiros – curtem a aura de perigo que cerca seus tigres em miniatura. É parte essencial do charme do gato.
A alma do gato, porém, não é cruel: é indiferente. Mesmo quando acomoda-se ronronando em nosso colo, o gato conserva sua tranquila autossuficiência. Quando usou Benjamin Button como garoto-propaganda do Partido Democrata, Taylor Swift contrariou essa alma felina.
Na chamada guerra cultural, com sua divisão estanque de trincheiras à esquerda e à direita, tudo serve como arma. Roupas, alimentos, carros, músicas – virtualmente qualquer objeto, tangível ou abstrato, pode ser convertido em emblema de um programa ideológico. Bicicletas são de esquerda; carros, de direita (o carro elétrico ocupa um lugar incerto: pode até ser de esquerda – se não for da Tesla). Sertanejo é de direita; MPB, de esquerda. E assim vai.
Há peculiaridades nacionais. No Brasil, o futebol ainda é uma paixão ecumênica (embora a outrora universal camiseta canarinha tenha sido apropriada pelo bolsonarismo). Para o contingente mais tacanho da direita norte-americana, porém, é antipatriótico chutar uma bola redonda. Antes da “childless cat lady”, a “soccer mom” – a moradora de subúrbios confortáveis que leva o filho de carro para os treinos de futebol – era o epítome da elite democrata que vive isolada dos problemas da nação. Muitos reaças dos Estados Unidos também veem o futebol como coisa de marica, se comparado ao futebol americano. E não estou pesando a mão na caricatura: Ann Coulter, figura proeminente da guerrilha midiática conservadora, publicou um artigo nessa linha em 2014, durante a Copa do Mundo do Brasil.
A esquerda brasileira abraçou um emblema que considero especialmente irritante, pois se trata de um objeto que me é tão caro quanto os gatos: o livro. A moda de publicar fotos de livro em rede social para apoiar o candidato do PT e de levar volumes para a cabine de votação me parece uma constrangedora afetação de superioridade moral e intelectual. Pregar no adversário a pecha de bruto e tosco – pois esta é a verdadeira mensagem da ostentação livresca – não contribui para o diálogo democrático.
Temo que o gato também seja reduzido a emblema da esquerda – neste caso, norte-americana. Antes mesmo de aparecer a foto de Taylor Swift acompanhada do bichano com nome de personagem de Scott Fitzgerald, promoviam-se reuniões de mulheres democratas carregando seus felinos. Eram, claro, eventos online: alguns felinos até aceitam coleira e guia, mas uma passeata de gatos seria inviável.
O gato não quer ser arrastado para a esquerda ou para a direita. Ele está bem contente na sua almofada, na sua caixa de papelão, no seu telhado. Onde quer que um gato repouse, ali estará instituído um estado apolítico total, o zero absoluto da ideologia.
“Os gatos não precisam de filosofia. Obedientes à sua natureza, eles se contentam com a vida que esta lhes oferece”, diz o filósofo John Gray, professor aposentado de Pensamento Europeu na London School of Economics, em Filosofia felina: os gatos e o sentido da vida. A objeção óbvia ao argumento é que os gatos não têm como saber se precisam de filosofia, pois carecem do instrumento básico para compreendê-la: pensamento abstrato. Mas Gray vai ainda mais fundo na sabotagem de sua própria área de estudo: sugere que nós, humanos, supervalorizamos o pensamento.
O filósofo antifilosófico propõe então um esquisito exercício especulativo: ““Mas é possível imaginar uma espécie de felinos que teria essa habilidade, ao mesmo tempo que mantém a tranquilidade com a qual eles vivem neste mundo. Se esses gatos se interessassem por filosofia, seria como um ramo divertido de ficção fantástica. Mais do que considerá-la um alívio para a ansiedade, esses filósofos felinos se envolveriam com ela como se fosse um jogo”.”
Filosofia felina passeia, como um gato distraído, pelas obras de Montaigne, Espinosa e Schopenhauer, para no capítulo final trazer “dez sugestões felinas para viver bem”. Gosto da quarta sugestão: “é melhor sentir indiferença pelos outros do que achar que você tem de amá-los.” É uma filosofia da leveza (que não é sinônimo de trivialidade) e da indiferença (que não é o mesmo que insensibilidade).
Embora não haja muito em comum entre John Gray e Elizabeth Costello, creio que o pensador inglês concordaria com uma observação da escritora australiana inventada por Coetzee: “Se você for filosófico, como a maioria dos animais, você dá de ombros e diz a si próprio que o mundo é assim mesmo e continua com sua vida.”
Ouso propor uma pequena adaptação na frase de Costello. Ela ficará mais precisa se trocarmos “animais” por “gatos”.