São inúmeras as cartas antigas que chegam até nossas mãos com o aviso “por favor queime esta carta logo após tê-la lido”. Isso significa que o destinatário ignorou o pedido de seu correspondente e arriscou que seus segredos fossem mais tarde revelados.
Entre diplomatas, as comunicações oficiais sempre responderam a regras estritas e são exemplos de formalidade e prudência na redação. Mas quando existe amizade, ou mesmo intimidade entre representantes de potências amigas, o tom pode ser muito livre e, às vezes, francamente escrachado.
A correspondência entre Lord Strangford, embaixador inglês no Rio de Janeiro em 1810, e o conde de Funchal, então embaixador português na Inglaterra, tinha seu lado oficial e formal, mas era também composta por cartas confidenciais. Em muitas delas, Strangford pedia que a carta fosse destruída. Mas o diplomata português o desobedeceu e encadernou todos os originais dessa correspondência privada num volume.
Esta carta aqui reproduzida permanece inédita, 200 anos mais tarde, e nos permite hoje uma visão privilegiada sobre os extraordinários acontecimentos dos primeiros anos de D. João IV no Brasil, quando Strangford negociava aquele que muitos consideram o acordo mais desfavorável já assinado pelo Brasil: o Tratado de 1810 com a Inglaterra. Na longa negociação do Tratado, Strangford defendeu brilhantemente os interesses de seu país, contando com aliados poderosos: seu correspondente, o conde de Funchal e seu irmão, o conde de Linhares, influente ministro de D. João. Para ambos, o que era bom para a Inglaterra era bom para Portugal.
No Rio de Janeiro da época, os conselheiros de D. João, sempre muito hesitante, dividiam-se entre aqueles que defendiam um alinhamento completo com a Inglaterra e outros, furiosamente pró-franceses. Eram naturalmente esses últimos os maiores adversários do Tratado, que Strangford tanto se empenhava em impingir ao príncipe Regente D. João. Por isso, suas cartas são cheias de rumores, fofocas e julgamentos extremamente severos, ou mesmo grosseiros, quanto aos seus inimigos.
A carta de Strangford reproduzida nesta página é rara por comentar um assunto do qual se não tratava sequer em correspondências secretas: a sexualidade alheia.
No lugar da menção inicial “confidencial”, “secreta” ou “muito secreta” a carta abre com a linha: “secreta e suja”, deixando clara a intenção do diplomata inglês quanto a seu conteúdo. Nela, Strangford identifica em D. João de Almeida, conde de Galvêas, novo ministro de D. João VI e no núncio apostólico, representante do Papa, o bispo Caleppi, os lideres de uma facção homossexual pró-França, que o inglês considera claramente desprezível: “Seu irmão e eu enfrentamos toda esta canalha. Não se engane a respeito do núncio. Nunca um filho de Sodoma foi mais detestável e mais detestado. Conta-se a seu respeito uma historinha impagável de um jovem mensageiro do qual o núncio fez seu amante. Nunca a pederastia foi tão pujante. O núncio e Almeida são os seus apóstolos de maior zelo”.
São raríssimas as menções explícitas à homossexualidade na correspondência do período ou nos documentos disponíveis para os historiadores. Mesmo as cartas mais íntimas só aludem de maneira oblíqua a qualquer questão dessa natureza e mesmo assim muito ocasionalmente.
Esta carta é excepcional por mostrar não só a grande liberdade entre Strangford, Funchal e Linhares, que lhes permitia abordar qualquer assunto, como por evidenciar o intenso preconceito de Strangford, que não hesitava em manifestá-lo claramente a dois diplomatas estrangeiros, ainda que amigos e aliados.
O conjunto de cartas de Strangford a Funchal foi adquirido nos anos 1950 por um importante industrial carioca numa livraria-antiquária de Londres. Seus descendentes o venderam a seu atual detentor, que tem o projeto de publicar por inteiro essa fascinante correspondência, que permite acompanhar os bastidores de uma das negociações mais importantes da história do Brasil.