Mal começou a cumprir a pena em uma unidade prisional de Guarapuava, no interior do Paraná, G.A.* já sentiu o quanto o ambiente penitenciário pode ser hostil a transexuais como ela. Sentia preconceito e truculência dos dois lados: tanto de policiais penais, quanto de colegas de carceragem. Quando não a chamavam pelo nome de registro – masculino –, a insultavam, com expressões como “demônio” e “bichinha”. Ao mesmo tempo, ela temia ser uma das vítimas de agressões ou de violações no cárcere, histórias que ouvia desde o primeiro dia no lugar. Ainda na primeira semana, aceitou a sugestão de uma assistente social e pediu transferência à unidade que lhe foi apresentada como modelo: o Centro de Referência de Custódia Provisória de Mulheres e Pessoas Transgênero de Rio Branco do Sul, instalado na Cadeia Pública do município, na região metropolitana de Curitiba. Chegou apreensiva, mas logo se sentiu acolhida.
“Tem muita diferença. Lá [em Guarapuava], era na base do xingamento, não me chamavam pelo nome social. Mesmo ficando longe da família, decidi vir. Aqui é diferente. A gente é tratada pelo nome de mulher, com respeito. Tem diferença dentro da cela também, porque somos todas iguais. Trans é trans, né?”, observou G., de 22 anos. “A gente escutava o relato das meninas, que sofriam coisas erradas nas outras unidades. Aqui não acontece nada disso, porque estamos distantes dos [presos] masculinos”, disse.
Inaugurada em novembro de 2018, a cadeia funciona em um prédio circundado por casas, em uma área residencial de Rio Branco do Sul, cidade de 32,6 mil habitantes a cerca de 30 km de Curitiba. Se não fosse a placa que identifica a unidade, o imóvel térreo – ornamentado por um jardim frontal arborizado e protegido por uma cerca de pilastras pré-moldadas – poderia passar por uma escola ou um prédio público qualquer. Desde o início, a cadeia recebe presos e presas classificados pelas forças de segurança como GTT (Gays, Travestis e Transexuais). É uma forma de manter o grupo separado dos detentos masculinos cis e héteros.
Não parou por aí. Ao longo de 2019, a unidade passou a ser a principal aposta do estado para humanizar o tratamento dado à população LGBTQIA+ no ambiente penitenciário. A política ganhou mais força em setembro daquele ano, com a Portaria 87/19 do então Departamento Penitenciário do Paraná (Depen), que tornou a cadeia um centro de referência carcerário voltado a gays, travestis e transexuais – a primeira unidade deste tipo no país. O documento estabelece regras de funcionamento da unidade e se consolida como uma política de Estado – ou seja, a ser cumprida independentemente de mudanças de governo. Só em 2021 é que outras unidades da federação, como Espírito Santo e Minas Gerais, inauguraram presídios destinados ao público LGBTQIA+.
As meninas – como são chamadas no jargão da cadeia – ficam na terceira galeria, um anexo composto por um corredor largo, com três celas de cada lado, com capacidade total para 72 pessoas. Por trás da grossa grade de aço de cada xadrez, há seis beliches de concreto e um “boi” – sanitário rente ao piso. Os presos autodeclarados gays ficam em uma das celas; as trans se dividem entre as demais. Quando a piauí visitou a cadeia, havia 41 pessoas identificadas como GTT (gays, trans e travestis) na unidade. Nas outras três galerias bem separadas dali, havia mais dezessete presos homens e mulheres, presos provisoriamente até serem transferidos a um presídio, além de quatro detentos – dois homens e duas mulheres – que trabalham na manutenção e limpeza da cadeia.
Diante do uniforme obrigatório no Centro de Referência – calça de moletom cinza ou laranja e camiseta branca –, as custodiadas expressam sua identidade de gênero de forma sutil. Algumas das mulheres trans adotam cortes de cabelo tidos como femininos e um ou outro adereço, como pulseiras de elástico – valendo-se de uma das definições estabelecidas pela Portaria 87/10, que permite que as presas trans mantenham cabelos compridos e maquiagem, “garantindo seus caracteres secundários, de acordo com sua identidade de gênero”. Pode parecer pouco, mas para a afirmação delas é um aspecto importante e nem sempre respeitado. Em abril, uma mulher trans teve os cabelos raspados ao dar entrada em uma penitenciária masculina em Arapongas, interior do Paraná.
“Quando eu cheguei aqui, em março de 2019, eram onze presas. Agora, quadruplicou. É uma política que vem ganhando força e que tem como base o respeito”, resumiu o diretor do Centro de Referência, Ubirajara Cordeiro Mattos – um homem de modos formais, que já foi policial penal na Penitenciária Central do Estado (PCE), um dos maiores estabelecimentos prisionais do Paraná, voltado a condenados do sexo masculino. “Existe, realmente, um preconceito muito grande contra gays, travestis e transexuais por parte da população em geral, de funcionários do sistema penitenciário e de próprios colegas de cárcere. E é um preconceito doloso que, quando se manifesta, sempre vem com violência. Aqui, é diferente. Se tratadas com cumplicidade e respeito, elas têm muito mais compreensão e colaboração que os homens. É o melhor público para se trabalhar”, afirmou Mattos.
O respeito começa pelo tratamento. Conforme estabelece a Portaria 87/19, o sistema de cadastramento penitenciário já prevê um campo para que os custodiados e custodiadas sejam identificados pelo nome social e pelo gênero com o qual se identificam. Os funcionários do Centro de Referência, por sua vez, também só chamam as GTTs pelo nome social. Também há diferenças em relação a procedimentos de movimentação dos presos e presas. Diferentemente de outras unidades, não há revista íntima – em que a pessoa privada de liberdade tem que se despir e agachar diante de funcionários da cadeia. A vistoria é feita com raquetes equipadas com detectores de metais, semelhantes às usadas em aeroportos, por exemplo.
“Aqui, os funcionários são mais capacitados para trabalhar com a gente. A questão do nome social parece pouco, mas é muito importante. E a revista não é tão vexatória. Na penitenciária de Foz do Iguaçu, onde eu estava presa antes de vir para cá, tinha nudismo, agachamento, toque pessoal. Causava um constrangimento muito grande”, contou G.P., condenada por roubo e que está no Centro de Referência há um ano.
Por outro lado, os presos e as presas de Rio Branco do Sul não podem formar casais ou trazer os “maridos” de outras penitenciárias. Às vezes, no entanto, há quem tente burlar a norma. Mattos conta que houve episódios em que presos que se declararam gays e estavam detidos na unidade começaram a namorar transexuais de uma das celas vizinhas. Para ficar na mesma cela do parceiro, as mulheres trans tentaram mudar sua autodeclaração, se dizendo gays. A Portaria 87/19 assegura ao público GTT o direito à visita íntima. Mas, segundo a direção do Centro de Referência, são raríssimas as ocasiões em que algum gay, travesti ou transexual recebe visita de alguém “do mundo lá fora”, seja marido, namorado ou familiar – diferentemente dos presos homens heterossexuais, que costumam receber visitas com certa regularidade.
Também houve três ocasiões em que homens heterossexuais se declararam como do grupo GTT em outras unidades e chegaram a ser transferidos para o Centro de Referência. “Mas se eles conseguirem enganar a triagem, bastam 15 minutos na cela para as meninas me chamarem e contar. Elas sacam na hora”, disse Mattos. Em todos esses casos, os presos tentaram driblar o sistema porque estavam sob ameaça de morte nos presídios masculinos por facções criminosas. A partir do momento em que a direção do Centro de Referência identificou as fraudes, os detentos foram transferidos novamente, mas com a recomendação de que ficassem mantidos em outros presídios e em galerias em que não há faccionados, ou no “seguro” – espaço separado, destinado a condenados por delitos que não são aceitos pelos demais, como crimes sexuais ou contra crianças.
O debate sobre a necessidade de criar locais adequados para o cumprimento de pena da população LGBTQIA+ ganhou evidência em âmbito nacional em março de 2019, depois que o ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), determinou que uma travesti presa em regime semiaberto tivesse direito de pernoitar em um presídio feminino, em Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Depois disso, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que mulheres trans e travestis podem cumprir pena em unidades penitenciárias femininas. Em caso de falta de vagas, podem ficar em presídios masculinos, mas em alas separadas dos demais presos.
“O Paraná saiu na frente. Mesmo antes das decisões do STF, o estado já tinha preocupação em garantir o direito da população LGBTQIA+ no cárcere”, disse a ouvidora externa da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Karollyne Nascimento, considerada a primeira ouvidora trans do país. “Recentemente, tivemos um encontro de ouvidores aqui no Paraná. Trouxemos ouvidores de defensorias de vários estados. Eles ficaram maravilhados com o que viram aqui [no Centro de Referência]”, contou.
Apesar de ter sido instituído para essa finalidade, o Centro de Referência de Rio Branco do Sul não é a única unidade do estado a receber pessoas LGBTQIA+. Segundo o Departamento de Polícia Penal do Paraná (Deppen), há 206 presos ou presas autodeclarados gays, transexuais ou travestis, encarcerados em 25 unidades, em todas as regiões do estado. O processo de triagem é feito assim que a pessoa dá entrada no sistema penitenciário, quando, entre outras questões, manifesta sua identidade de gênero, que passa a constar do sistema.
Há, é claro, inúmeros entraves para avanços no atendimento à população LGBTQIA+ no sistema penitenciário. Entre eles, o treinamento de funcionários. Mesmo no Centro de Referência, não foi fácil formar equipe. Segundo Mattos, no início de sua gestão, ele precisou substituir alguns servidores. Com o passar do tempo, foi identificando quem tinha afinidade para trabalhar com o público da cadeia. “Ainda é algo muito novo. Não só nós, mas todas as unidades, de todos os estados, ainda estamos aprendendo a fazer”, disse. “Estamos evoluindo muito não por causa da nossa gestão, mas graças ao trabalho de algumas instituições, que têm tido um protagonismo aqui dentro”, acrescentou.
Uma das ações realizadas por entidades mencionadas pelo diretor do Centro de Referência se realizou quando a piauí visitou a unidade. Na ocasião, a Defensoria Pública do Estado do Paraná entregou certidões de nascimento retificadas a quatro mulheres transexuais custodiadas na unidade, e que tinham solicitado a mudança de prenome e de gênero nos documentos. A iniciativa faz parte do mutirão “Meu nome, meu direito no cárcere”, da DPE-PR, realizado em 2022, ao longo do qual defensoras visitaram a unidade, identificaram presas que queriam fazer a alteração e viabilizaram a mudança.
“O Paraná é o primeiro a retificar documentos de pessoas trans privadas de liberdade. Mais uma vez, o estado saiu na frente”, definiu a ouvidora da DPE-PR, Karollyne Nascimento. “Pessoas trans são um público em situação de vulnerabilidade e, em especial, as que estão no cárcere. Além de toda dificuldade para conseguir a documentação e romper todos os obstáculos sociais, pela burocracia e pelo custo, a gente verificou que as dificuldades para quem está no cárcere são muito maiores”, disse a defensora pública Mariana Martins Nunes, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem).
Assim que pegou pela primeira vez sua certidão de nascimento retificada, já com seu nome social grafado, A.R. se lembrou do período em que não estava presa e em que morava em Matinhos, no litoral do Paraná. Ela trabalhava como garçonete e, invariavelmente, tinha que se indispor com clientes ou desconhecidos, que insistiam em fazer piadas em relação a sua orientação sexual ou a chamá-la pelo nome de registro ou por pronomes masculinos. A mulher trans de 37 anos também sentiu preconceito dentro de casa. Por isso, ter o nome social reconhecido em um documento é tão importante para ela.
“Lá fora, tive que levantar a voz, que rodar a baiana, para me respeitarem. Sempre teve muito preconceito e falta de respeito. Mesmo na minha família, meu pai e meus irmãos não me aceitavam. Minha mãe e minhas cunhadas é que me apoiavam, e só. Aqui na cadeia eu estou tendo um respeito muito maior do que tive lá fora”, disse ela, que cumpre pena por tráfico de drogas.
Enquanto voltavam para as respectivas celas, já com a certidão de nascimento retificada com o nome social, as duas presas faziam planos de novo emprego e nova vida – alinhada à identidade de gênero agora reconhecida em seus documentos. “Estou mais tranquila e feliz com o meu nome. Acho que vou ter mais respeito. Quando sair, só penso em me levantar. Arrumar um serviço e trabalhar e ter reconhecimento como mulher”, afirmou A.R. “Vai mudar muita coisa, porque eu vou poder procurar um emprego com meu nome de mulher. Sei que ainda vai ter muito preconceito, mas já vai ter esse reconhecimento. ‘Vida loka’, nunca mais”, disse G.A.
*As presas trans estão identificadas nesta reportagem apenas pelas iniciais, para proteger sua identidade e evitar qualquer tipo de retaliação.