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    Beco do Batman, na Vila Madalena, em São Paulo - Foto: Lia Hama

depoimento

“A gente não aguenta mais”

Artista relata como organizou protestos contra assassinato do grafiteiro e skatista NegoVila por policial

Ninguem Dormi | 11 dez 2020_17h23
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OBeco do Batman, um dos principais pontos turísticos da Vila Madalena, Zona Oeste de São Paulo, teve os muros coloridos cobertos de preto no dia 29/11. Foi um protesto de grafiteiros contra o assassinato, na madrugada do dia anterior, de Wellington Copido Benfati, o NegoVila, por um policial militar. “Polícia, pare de nos matar”, “Vidas pretas importam”, “O beco está de luto” foram algumas das frases pichadas por cima dos muros escurecidos em homenagem a NegoVila, artista cuja trajetória está ligada ao bairro onde viveu e que incorporou ao seu nome.

Criado na Favela do Mangue, NegoVila era da escola de samba local, Pérola Negra. Cresceu andando de skate e grafitando na Vila Madalena. Trabalhava como assistente em produções de cinema. Morreu aos 40 anos, ao levar um tiro disparado por um policial em frente a uma distribuidora de bebidas do bairro. Segundo testemunhas, tentava apartar uma briga entre um amigo e o PM. O caso está sob investigação no 14º D.P. (Pinheiros). Amigo e parceiro de NegoVila, o artista Frederico Jorge, conhecido como Ninguem Dormi, relata como organizou os protestos por justiça e contra a violência. Um novo ato está marcado para este sábado (12), às 11h, no Beco do Batman.   

(Em depoimento a Lia Hama)

 

“Eu me considero um ‘ruólogo’, igual ao NegoVila. É como a gente chama quem tem intimidade com o universo da rua. Sou presidente da Associação Local Studio, de artistas locais que ofertaram o Beco do Batman. Somos os responsáveis pelos grafites de lá. Nego era meu ‘irmão gêmeo de rua’, a gente se conheceu com 10 anos de idade andando de skate na Vila Madalena. Ele cresceu na favela do Mangue e eu sou do Parque Peruche, bairro com escola de samba e alta concentração de população negra na Zona Norte de São Paulo. Quando cheguei na Vila, me considerava negro, apesar de ter cara de índio. A família do Nego era de feirantes que trabalhavam no Largo da Batata, em Pinheiros. A gente morou juntos em mais de dez endereços ao longo de 15 anos.

Artista Frederico Jorge, conhecido como Ninguem Dormi – Foto: Lia Hama

 

No começo dos anos 90, o que nos unia era o skate. A gente andava na Praça do Pôr do Sol e na ‘ladeira da morte’, atrás do prédio da antiga MTV, no Sumaré. Nego era profissional do skate. Tinha um estilo único. Ninguém com a idade dele andava com o mesmo vigor. Naquela época ainda não tinha arte de rua para tudo quanto é lado como hoje. Teve que rolar um movimento de preparar a cabeça da sociedade para ter esse monte de grafites nas ruas. Além de skatista, Nego trabalhava como assistente em produções de cinema; era músico e fazia parte do grupo de rap Família Madá; integrava a escola de samba Pérola Negra; participava do Circo no Beco. Tudo isso na Vila Madalena, que era o lugar dele.

A gente andava sempre juntos. Uma hora e meia antes de ele morrer, na madrugada do sábado (28/11), a gente conversava ao lado de uma barraquinha de comida chinesa na Rua Inácio Pereira da Rocha. Uns amigos estavam escutando rock. Ele estava cheio de planos. Contou que tinha feito exame para Covid porque ia fazer um trabalho de cinema em Florianópolis. Estava felizão porque ia levar a filha dele na viagem. Aí, por volta das três da madrugada, a gente se separou. Ele morreu cerca de uma hora e meia depois. No dia seguinte, às 9 horas da manhã, toca o telefone. O Prozak [artista plástico] me liga pra avisar: “Cara, o Nego morreu.” Eu perguntei: “Qual Nego?” Porque a gente conhece um monte de Negos. Ele falou: “O nosso Nego.” Fiquei praticamente uma semana sem dormir, insano, ligando para todos os amigos para fazer uma mobilização. As pessoas me ligavam querendo fazer algo. E as coisas foram acontecendo.

O primeiro ato foi de um amigo nosso, o Pagú, que estava pintando umas frases no viaduto da Amaral Gurgel, no Centro. Na hora em que ele ficou sabendo, escreveu a mensagem que está sendo espalhada por todo lugar: “Todo nego é Nego Vila.” O segundo ato foi uma projeção do [diretor de arte] Arthur Carratu, do Studio Curva [produtora de vídeo e cenografia]. Ele projetou umas imagens do Nego do galpão dele na Barra Funda e fez uma edição com drone lindíssima. Atrás do estúdio tem uma cruz da Legião da Boa Vontade. O vídeo tem uma cruz no fundo e a projeção de imagens que mostram como era o Nego.

O terceiro ato foi uma atitude minha: pintar o Beco do Batman de preto. Zerar o beco, colocar em luto um dos principais pontos turísticos da cidade. Porque o Nego foi o maior anfitrião de todas as paredes do beco. Você não pintava parede nenhuma ali sem falar com o Nego. Então falei: “Vamos acabar com o beco inteiro, não existe mais beco.” Porque quem supre ali é a gente: eu, o Prozak, o Boleta, o Milo, o Ciro, o Highraff, o Pato. São diversos artistas. A gente reuniu todo o conselho, a família, e tomou a decisão. Pintamos no domingo à noite, depois das cerimônias do enterro no Cemitério da Lapa. O enterro foi uma festa com samba e grito de torcida de futebol, porque o Nego era muito alegre. Todo mundo gritava: “Neeeegoooo, neeeegooo.” Ele era o maior anfitrião da Vila Madalena. Foi uma comoção porque todo mundo amava o cara. Gente do skate, do grafite, do circo, do cinema, da música, da poesia.

Estou dando um monte de entrevistas porque tem muita fake news rolando. Tem gente com preconceito com a cor do Nego, querendo colocá-lo num lugar que ele nunca percorreu. O Nego nunca foi preso, nunca fez nada. Eu e ele percorremos um caminho muito sério. A gente morou em vários lugares de ocupação, um monte de lugar invadido, um monte de lugar emprestado. Mas sempre fomos operários da arte. A gente sempre foi honesto.

Estamos de luto, com o beco todo pintado de preto. Só pode deixar frase ali quem é amigo do Nego, não tem espaço para pegar carona em tragédia. Porque, com o tempo, o beco acabou virando um lugar de selfies, um ‘selfódromo’. Muitas pessoas que vão ali não têm afeto nenhum pela arte, elas só querem um cenário para ficar dando uma de Narciso. Agora essa galera que explora o turismo viu a força que o grafite tem. Colocamos em primeiro plano a questão do racismo e do elitismo neste país, nesse lugar que recebe a maior parte dos artistas estrangeiros que passam por sua maior cidade: São Paulo. E isso só está começando.

Neste sábado (dia 12/12) vai ter a Lavagem do Beco do Batman. Vai ser em luto e em homenagem ao Nego. Vamos nos concentrar às 11h no centro do beco com mães de santo, pais de santo e vamos fazer um cortejo com a comunidade da escola de samba Pérola Negra. É a quarta edição da lavagem, que nasceu como um movimento para combater a intolerância religiosa. A iniciativa da lavagem é da Patricia Penna, mulher do José Luiz Penna, do Partido Verde, moradora do bairro. 

Até agora, não consigo acreditar que o Nego não está mais aqui entre a gente. A mensagem que queremos passar com esses atos é de exigir respeito para todos os povos, inclusive para os nossos irmãos que vêm sendo perseguidos há muito tempo pela intolerância de cor. A gente não aguenta mais.”

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