Foto feita por André Arruda para a revista Imagine
Há algumas semanas atrás, Gilberto Gil fez, no Rio, o show de lançamento de seu novo CD. Uma coluna social noticiou o evento, trazendo um desabafo do compositor. Em meio a invasão de seu camarim por aparelhos de celular ávidos por selfies, disse o baiano que, além de não ser muito ligado em tecnologia, faz críticas a ela: “Não é a mesma coisa fazer show hoje. Há 20 anos, tínhamos muito mais qualidade, mesmo sem tanta tecnologia. Hoje todo mundo deixa tudo nas mãos dos equipamentos. Esquecem do detalhe manual, que faz diferença”. O desabafo de Gil descortina um dos grandes dilemas de nosso tempo: a saber, de que o avanço tecnológico não necessariamente tem implicado um aumento na qualidade da experiência vivida. É algo que está no ar. Recentemente, num ensaio publicado na revista piauí, Lorenzo Mammì tocou no mesmo ponto, ao justificar a retomada da cultura do vinil “pela força de um prestígio e de uma qualidade considerados insubstituíveis, e portanto impermeáveis a qualquer avanço técnico”. Será que podemos dizer que as recentes tecnologias da comunicação (email, celular, skype) tornaram nossa comunicação mais sutil e complexa? Ou que as “redes sociais” tornaram efetivamente mais rico e nuançado o nosso universo social, afetivo? Os dois exemplos apontam no sentido da eficiência, da utilidade, da rapidez, do estabelecimento prévio de metas e resultados. Tudo passa a ser avaliado em termos quantitativos – faz-se muito mais em muito menos tempo; atinge-se muito mais pessoas de uma só vez. Mas, nesse frenesi, algo fica de fora. “Esquecem do detalhe manual, que faz diferença”.
Não há dúvida que o tema da tecnologia é bem mais complexo. Mas é difícil ignorar o comentário de Gil. Há algo de profundamente inquietante nele. E Gil parece ser uma das vozes mais credenciadas para tocar esse ponto nevrálgico. Não apenas ele foi, quando ministro, uma figura central no debate político sobre os novos rumos da era digital e do mundo em rede, como teceu preciosas reflexões artísticas sobre o tema ao longo de sua obra. De fato, nenhum compositor popular pensou de modo tão livre sobre a relação entre homem e tecnologia. Da resistência desconfiada e romântica de Lunik 9, nos anos 1960 – quando viu na presença humana no espaço uma ameaça de dessacralização do símbolo maior dos poetas, a lua – à celebração das potencialidades inéditas de um mundo em rede, na virada para o século XXI, no qual seria possível “juntar via internet, um grupo de tietes de Connecticut” (que verso!), mundo que nunca perde seu elo fundamental com o passado, e que segue “transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando em todos os sentidos”. Gil criou uma linha de continuidade que leva de Pelo telefone (o famoso “primeiro samba”), de Donga, à sua Pela internet, da mesma forma que, em Parabolicamará, passamos da jangada para o saveiro, e finalmente para o avião. Tudo é tecnologia e tudo faz parte da longa jornada humana.
Só isso já seria maravilhoso, mas há mais. A relação de Gil com a tecnologia é positiva, aberta, assimilativa; mas ainda assim crítica. Suas canções não apenas exaltam a tecnologia como invenção e mudança, mas insistem constantemente em avaliá-la pela lente humana, em indagar a que causas ela tem servido e quais têm sido os seus efeitos. Gil jamais separa a tecnologia dos mais profundos anseios humanos. Jamais permite que ela saia da perspectiva de nossa fragilidade constitutiva. O cérebro eletrônico é o máximo, sim – mas só eu posso chorar quando estou triste. Botões de ferro e olhos de vidro não podem me dar qualquer “consolo em meu caminho inevitável para a morte”. É que, ainda que seja uma criação humana, a tecnologia pode trabalhar na direção da desumanização.
Do mesmo modo que “é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”, é fundamental enquadrar as inovações tecnológicas sob um prisma duplo. Lembrar que a mesma tecnologia que nos permite falar com um parente querido no exterior é também responsável por uma invasão cada vez maior da vida privada pela esfera do trabalho. Lembrar que o tempo que ela nos permite poupar, ela própria nos toma de volta – a tecnologia nos liberta… para que possamos trabalhar 24 horas por dia. Que a maior eficiência na comunicação tornou possível dividir o tempo em microfrações de segundo, para que depois se especulasse sobre esse pedaços, num vertiginoso frenesi financeiro que a muito poucos beneficia. Que ao mesmo tempo que a tecnologia gera conectividade ela também possibilita formas cada vez mais sofisticadas de controle dos mais fortes sobre os mais fracos. Lembrar que um de seus principais impulsos de desenvolvimento veio da vontade de cortar custos de produção, de substituir a mão de obra humana, não para distribuir socialmente a riqueza que disso resulta, mas para concentrá-la ainda mais na mão de poucos. Que a tecnologia nos tornou mais eficientes para que pudéssemos trabalhar por duas, três pessoas – e para que essas tivessem que fazer algum curso de pós-graduação online, na esperança de conseguirem novamente entrar na roda-vida do mercado de trabalho. Que, a julgar pelos livros do tecnólogo Jaron Lanier, a internet destruiu muito mais empregos do que criou. Lembrar, como sugeriu T. J. Clark numa palestra, do contraste brutal entre a ilusão de ter “o mundo na palma da mão” (com seu smartphone) e a manutenção de estruturas arcaicas de poder, num mundo onde a mobilidade social é cada vez menor. Lembrar que o mesmo celular que alivia as horas de tédio e stress em engarrafamentos, também acaba por mitigar a indignação necessária para uma mobilização coletiva que pudesse forçar uma resolução do problema. Que apesar de todas as facilidades da nova comunicação, a sensação de solidão é cada vez maior. E que tudo isso se passa no contexto de um mundo que parece caminhar calamitosamente na direção da destruição do meio ambiente, do que no passado chamávamos apenas pelo nome de “vida”.
Nosso tempo parece marcado por uma série de conversões de meios em fins. Vou dar um exemplo clássico: a economia, que deveria ser um instrumento do bem-estar social, uma ferramenta para tornar nossa vida em sociedade mais plena, foi se autonomizando, autonomizando, até se transformar ela própria num fim; agora é a sociedade que se tornou um instrumento (um meio) para garantir o “bem-estar” da economia (tendo, muitas vezes, que ser sacrificada para isso). Tenho semelhante impressão quando vejo a sofreguidão automática com que certas pessoas mergulham nas telas de seus gadgets: quem usa e quem está sendo usado? Teria o desenvolvimento tecnológico se tornado um fim em si, que seremos obrigados a acompanhar como algo inevitável e maior do que nós mesmos? Um fim em si, qual um sistema fechado que se desenvolve de forma autônoma, sem qualquer consideração quanto aos seus efeitos sobre a vida real dos homens?
Como toda ferramenta, a tecnologia pode ser usada em diversos sentidos. O que não quer dizer que ela seja um meio neutro. Uma plataforma como o youtube, por exemplo, não é apenas o reservatório democratizante de conteúdos audio-visuais (como frequentemente se coloca), mas um meio que altera profundamente o modo como percebemos tais conteúdos. Ainda assim, as potencialidades estão em aberto, para o bem e para o mal. Conforme colocou Jacques Attali, os novos modos de produção e escuta musicais apontam tanto para a utopia de uma criatividade coletivizada, liberada do trabalho, onde todos pudessem expressar o que há de mais singular e insubstituível em cada um, quanto para a distopia de uma sobreposição de indivíduos autistas, atomizados, cada um com seu fone de ouvido, encerrado na pobreza de seu mundinho particular, de seu aparelho a um só tempo personalizado (roxo, azul, violeta) e genérico (Ipod).
Tudo isso está, de algum modo, nas reflexões musicais de Gil sobre a tecnologia. Nem rejeição romântica, nem adesão deslumbrada. O baiano quer saber de que modo o avanço tecnológico tem contribuído para a “emancipação do homem, das grandes populações”; quer saber quando teremos “raio laser mais barato” e se nos é permitido “viver confiantes no futuro” -– como está dito na linda canção que ele compôs nos anos 1970, Queremos saber. “Pois se foi permitido ao homem, tantas coisas conhecer, é melhor que todos saibam o que pode acontecer”. É preciso manter o olho vivo e desvendar “as ilusões do poder”; fazer prevalecer os “botões de carne e osso”. Jamais perder de vista os fins aos quais o desenvolvimento tecnológico deveria servir. Sobretudo, não deixar de questionar, de fazer as perguntas certas, e de exigir da tecnologia o que ela nos prometeu, e ainda não cumpriu.
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