O discurso golpista e de contestação contínua das instituições democráticas de Jair Bolsonaro em seus quase quatro anos na Presidência da República evidenciou o quão frágil e movediço é o terreno que assenta as regras que administram a segurança pública brasileira e como as forças de segurança pública e/ou seus integrantes sempre fizeram parte do cálculo do bolsonarismo para a tomada do Estado de assalto. Os bloqueios de rodovias federais por manifestantes defensores de atos antidemocráticos e a leniência com que foram tratados pela Polícia Rodoviária Federal e por vários policiais militares estaduais devem, portanto, ser vistos como o ápice de um processo mais amplo de realinhamento da relação Estado e sociedade ao eixo conservador e que aceita a violência real ou simbólica como regra.
Ao longo da gestão Bolsonaro, a piauí trouxe diversas análises e reportagens sobre como as polícias brasileiras são, ao mesmo tempo, fiadoras da ordem pública democrática e reguladas por normas e leis anteriores à Constituição Federal, muitas das quais criadas no período de maior repressão autoritária da ditadura militar iniciada em 1964. Nessa contradição, temos alertado sobre um longo e perverso movimento de autonomização e insulamento de tais instituições e o quanto isso as torna opacas ao controle democrático e, simultaneamente, o quanto isso é nocivo para os seus próprios integrantes.
Paradoxalmente, a cultura organizacional de algumas das maiores polícias militares do Brasil, como a de São Paulo, têm incentivado a adoção de novas tecnologias para o reforço da profissionalização das corporações militares e contido o descontrole derivado da adesão de parcela significativa de suas tropas ao bolsonarismo radical. Elas sabem que o bolsonarismo que hoje contesta os tribunais amanhã pode contestar a própria noção de hierarquia e romper com a ordem interna. Por isso, a lógica militar na versão dessas corporações investe na instituição e não no indivíduo. Isso aumenta a responsabilidade das corporações e funciona como freio e contrapeso à radicalização política e ideológica.
Em sentido inverso, há polícias civis e militares, aqui incluídas as polícias do Rio de Janeiro e/ou a Polícia Rodoviária Federal, que prezam pela autonomia de seus integrantes e investem no reforço da discricionariedade individual dos policiais. Essas são presas fáceis do bolsonarismo radical até mesmo como instituições, que aderem entusiasmadas ainda mais quando seduzidas pelo discurso de poder, da liberdade para matar ou pelo falso, parcial e interessado moralismo representado por Sergio Moro e pelos paladinos armados dos bons costumes como Carla Zambelli e Roberto Jefferson.
Elas se alimentam da promessa de investimentos e valorização, não obstante ela nunca ser cumprida pois, se efetivada, enfraqueceria a figura do messias de plantão. Não à toa, o discurso anticorrupção só serve para perseguir opositores, já que aliados podem ter seus crimes perdoados, como Onyx Lorenzoni e seu caixa dois de campanha. Aliás, nunca antes na história recente deste país uma eleição foi alvo de tamanho uso e abuso da máquina pública, como revelaram o jornalista Caco Barcellos, em seu último Profissão Repórter, e uma reportagem recente da BBC Brasil, sem que a indignação tomasse conta da sociedade ou que as instituições de controle atuassem.
Enquanto isso, nas narrativas terraplanistas da franja do bolsonarismo radical, o ilegítimo ou o criminoso seria outro; seria Lula. Pouco importa que as regras do jogo digam outra coisa, o que vale é a imposição da versão em detrimento aos fatos; o que vale é fazer de conta que é democrático para impor sua própria vontade e afrontar as instituições. Deus, pátria e família são meras bengalas sociais para justificar o autoritarismo que alimenta a alma daqueles que acreditam que as batinas vermelhas de cardeais católicos são evidência do comunismo que nos espreita e/ou que templos religiosos possam ser vilipendiados no governo Lula.
No eco distorcido das antigas aulas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, disciplinas obrigatórias nas escolas e faculdades criadas em 1968 (extintas apenas em 1993) para naturalizar a ditadura militar e tornar sua ideologia sinônimo do interesse nacional, aparentes lunáticos se apropriam dos símbolos nacionais para bater no peito e dizer que só eles sabem o que é certo ou errado.
Mas de lunáticos eles não têm quase nada. Na verdade, são herdeiros do projeto de nação que deu muito certo e que tem origem na reprodução violenta da ideia de país pacífico e sem diferenças. Sob Bolsonaro, tal projeto refloresceu e redobrou suas forças. E ele existe na forma como as polícias atuam nas periferias contra jovens negros; na forma como os crimes ambientais são tratados na Amazônia; ou na forma como a violência sexual ou intrafamiliar é minimizada por setores mais conservadores. E como herdeiros que gastam a riqueza acumulada e tornam-se meros estandartes de um passado que não volta mais, a liderança desses apenas aparentemente lunáticos possuem capital político para causar confusão, mas deixam a conta para as instituições e indivíduos que topam ser massa de manobra ou topam ficar reclamando.
Afinal, vale lembrar que nada há de espontâneo nas manifestações golpistas e bloqueios de vias que tomam parcialmente conta do país desde domingo, dia 30/10. A escolha das rodovias federais foi cirúrgica e pensada para prolongar o máximo possível a situação na tentativa de fazê-la crescer e parecer maior do que é. O Brasil conta com cerca de 166 rodovias federais que, juntas, totalizam 75 mil km de extensão. Para policiar tais rodovias, a Polícia Rodoviária Federal conta com um total de cerca de 12,2 mil policiais, o que significa que, diariamente, dispõe de algo como 3,5 mil profissionais em serviço. Esse número é explicitamente insuficiente para impedir os mais de trezentos bloqueios mapeados, ainda mais quando esses últimos tinham crianças e idosos sendo utilizados como escudos humanos.
O que poucos lembram é que o agora sumido senador eleito Sergio Moro, que faz de conta que não tem nada a ver com o que está acontecendo, foi quem, em 2019, primeiro editou portaria autorizando o uso da PRF em operações integradas com as forças estaduais de segurança pública. Como efeito, as equipes táticas da PRF gostaram da fama e foram notabilizadas, por exemplo, quando 41 dos seus integrantes fizeram a operação integrada com a PM do Rio de Janeiro da Vila Cruzeiro, que resultou em 23 mortes e paralisou a vida de mais de 70 mil moradores da comunidade, em maio. Mas essa mesma portaria também autoriza as Polícias Militares estaduais a dar suporte a operações integradas coordenadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Bastava o ministro Anderson Torres, sabedor dos limites da PRF, ter solicitado apoio, por intermédio da Seopi (Secretaria de Operações Integradas), das PM, que nada disso que estamos vendo estaria ocorrendo. Se não o fez, foi por opção política e não por limitação normativa. Afinal, o envolvimento das Polícias Militares era desde sempre previsto nos planos de contingência para as eleições gerais. Seu cálculo parece que foi esperar para convocá-las, ganhando tempo para que os movimentos golpistas crescessem. O que saiu do planejado foi o Judiciário ter ordenado que as Polícias Militares atuassem diretamente, sem a coordenação federal.
Por tudo isso, ao contrário do que afirmam muitos cientistas políticos que ganharam renome e espaços em jornais e nas redes sociais quando defendem a tese de que “as instituições estão funcionando”, a história recente das democracias tem demonstrado que a tomada autocrática de poder tem sido mais capilar e, mesmo respeitando o ciclo eleitoral, faz uso das fissuras e dissonâncias inerentes à própria democracia para inverter o jogo e se perpetuar no poder. Assim, para regozijo dos adeptos do formalismo democrático, a resistência cívica é vista como vitalidade, quando deveria ser percebida como alerta de que o funcionamento regular das instituições vai mal e precisa ser revisitado.
No simulacro de democracia que acreditam e os fazem famosos, polícias e Ministério Público continuam funcionando e seguindo a Constituição e a lei, mas não sem antes a radicalização bolsonarista ter mudado completamente o sentido e o significado da ordem por elas asseguradas. Em suma, este é o desafio do novo governo Lula. Não é adotar necessárias políticas públicas de segurança apenas; é retomar/refundar o sentido democrático das instituições de segurança pública e justiça criminal no Brasil.
E para isso precisa sinalizar prioridade e comprometimento político com o tema. Não adianta repetir receitas que só ajudaram na cooptação de uma parcela muito significativa dos quase 700 mil policiais brasileiros pelo bolsonarismo.