`

revista piauí

vultos da cultura brasileira

Francamente, Di Cavalcanti

Publicada nos anos 1950, a seção Gosta/Detesta da revista O Cruzeiro permite conhecer preferências e opiniões ordinárias de nomes por vezes extraordinários

19jul2024_09h52

Colagem feita com as respostas de Di Cavalcanti à coluna de João Condé, publicadas na revista "O Cruzeiro" em 06 de abril de 1957: "vinho francês" e "mulher calada" no topo das preferências

Muitas décadas antes de Caetano Veloso estacionar no Leblon e de a apresentadora Xuxa revelar à nação que costuma dormir com o ar-condicionado a 12ºC (“sou muito quente”), uma seção da revista O Cruzeiro revelava curiosidades (e, por tabela, algumas atrocidades) sobre pessoas célebres nos anos 1950.

 

A coluna Arquivos Implacáveis, elaborada pelo escritor e jornalista João Condé, trazia a seção Gosta/Detesta, com as predileções e aversões de notáveis. Era possível saber, por exemplo, que Guimarães Rosa detestava dormir em colchões e travesseiros macios, que Nelson Rodrigues adorava criança desdentada, cigarro ordinário e visitas a cemitérios, que Rachel de Queiroz admitia inveja de gente magra e que entre as dez coisas de que Newton Freitas mais gostava estavam “comer pato”, “pato ensopado”, “pato assado”, “pato ao molho pardo” e “pato vivo” – isso para ficar só nos escritores, os mais frequentes na lista.

 

Alguns anos atrás, uma reprodução de página da revista com essas respostas de Guimarães Rosa para as dez coisas que mais gostava e das dez que mais detestava surgiu no X, então chamado Twitter, e divertiu o público. Em maio deste ano, na mesma rede social, o perfil Machado de Assis Online (@mdassisonline), mantido pelo escritor Cláudio Soares (biógrafo do autor de Dom Casmurro) revelou mais quatro prints da seção, incluindo o crítico Agrippino Grieco, que detestava telefone, mas gostava de “recolher mexericos” (fofocar). A piauí procurou o acervo de edições da revista O Cruzeiro (catalogado pela Biblioteca Nacional e disponível digitalmente no site da hemeroteca digital) para conhecer outros exemplos. A Arquivos Implacáveis existiu de 1952 até 1958. A seção do “Gosta/Detesta” no formato estruturado como um quadro com tópicos foi encontrada 38 vezes entre 1955 e 1958, (em outras edições, apareceu como um texto corrido). Parte delas está reproduzida mais à frente, ao fim deste texto.

 

 

Periódico semanal editado no Rio de Janeiro pelo grupo Diários Associados, a revista O Cruzeiro nasceu em 10 de novembro de 1928, durante o governo do último presidente da primeira República, Washington Luís. A revista foi batizada com uma chuva de 4 milhões de folhetos lançados das janelas de edifícios da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, cinco dias antes de chegar às bancas. “Os volantes anunciam o aparecimento de uma revista ‘contemporânea dos arranha-céus’, uma revista semanal colorida que ‘tudo sabe, tudo vê’”, registra a professora titular de jornalismo da UFRJ Marialva Barbosa no artigo O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa brasileira.

 

O auge da tiragem aconteceu nos anos 1940 e 1950. Chegou a 700 mil exemplares e liderou o mercado editorial no país.

 

O poeta Vinícius de Moraes era um notório mulherengo (só de casamentos, foram nove), adorava uísque e, claro, era um entusiasta do samba. Ao lado dessas obviedades de suas respostas na seção, aparecem curiosidades como não gostar de cortar o cabelo ou de fazer compras, e ser fã do doce “cabelinho de anjo” (uma iguaria portuguesa feita com fios de macarrão). O poetinha apareceu na edição de 24 de dezembro de 1955. Seu nome estava escrito erroneamente com I, Morais, e as respostas seriam bem recebidas nas redes sociais de hoje – na lista do que detestava, estavam “homem grosseiro com mulher”, “fascista” e “racista”.

 

 

Na mesma edição dos Arquivos Implacáveis foi publicado um poema natalino de Carlos Drummond de Andrade. Drummond, aliás, disse uma frase que se tornaria fixa na coluna, logo abaixo do título, valendo como uma abertura triunfal: “Se um dia eu rasgasse os meus versos, por desencanto ou nojo da poesia, (…) restariam os ARQUIVOS IMPLACÁVEIS de João Condé.”

 

Antes de estrear em O Cruzeiro, onde ficou por dezenove anos, Condé já havia publicado a coluna, com o mesmo nome, no Letras e Artes, um suplemento criado por Jorge Lacerda em 1946 para o jornal A Manhã. Em O Cruzeiro, onde escreveu os Arquivos até 1958, a coluna trazia também depoimentos de escritores e as biografias satíricas. O escritor e jornalista morreu em 1996.

 

Dos 38 convidados da seção Gosta/Detesta encontrados na pesquisa, apenas quatro são do sexo feminino: além de Rachel de Queiroz, estão as também escritoras Lúcia Machado de Almeida, Helena Silveira e Lídia Besouchet. A palavra “mulher”, porém, não sai da boca dos senhores respondedores.

 

 

Alguns fazem isso de forma carinhosa, referindo-se à esposa ou à filha na lista do que gosta. Outros se reafirmam: “rosto de mulher”, “boca de mulher”, “mulher mulher mulher”. E há os casos de machismo grosseiro: gostar de “mulher calada” e detestar “mulher faladeira” (do pintor modernista Di Cavalcanti), detestar “solteironas depois dos 40” (do escritor Silvio Rabelo) e “velha pintada” (de Raimundo Magalhães Júnior). Há um caso de racismo explícito, do deputado Rui Santos, que diz detestar “mulato metido a branco”. 

 

Abaixo, uma seleção das respostas, muitas gostáveis, outras detestáveis. Para comentar a onipresença das citações sobre mulheres, convidamos a colega Mari Faria, coordenadora de estratégias da piauí e diretora do Foro de Teresina.