Quando a técnica de enfermagem Alessandra Borges foi contratada, o Hospital Estadual de Vila Velha, a poucos quilômetros de Vitória, estava no olho do furacão. Era janeiro de 2021, às vésperas da onda mais letal da Covid no Brasil, e o hospital vivia apinhado de gente. O centro cirúrgico e a enfermaria foram fechados e transformados em Unidades de Terapia Intensiva improvisadas. Borges foi chamada para trabalhar em caráter emergencial, inicialmente pelo prazo de três meses, para suprir a demanda ampliada do sistema de saúde. Quando ela chegou, três dos quatro andares do hospital haviam sido transformados em UTIs.
“Era desesperador. Às vezes tinha só um médico para atender uma UTI inteira, era um corre-corre danado”, lembra Borges. “A gente dava a medicação, tentava de tudo, recebia ordens de todos os lados – e mesmo assim não tinha sucesso.” Todos os catorze leitos da ala em que ela trabalhava viviam ocupados. Além de Borges, outros onze profissionais da mesma UTI também estavam ali de forma emergencial. O contrato de três meses foi continuamente renovado até se transformar em um ano inteiro de trabalho. “Eu relutei muito para pegar esse emergencial. Por medo, por ter uma mãe já idosa, uma família por trás”, conta a técnica. Mas com o aluguel atrasado e as contas por vencer, ela aceitou. Enquanto a vacinação avançava e o cenário epidemiológico dava sinais de melhora, ainda no fim de 2021, uma preocupação diferente começou a surgir entre os funcionários temporários do hospital: a possibilidade de demissão logo depois do ano mais desafiador de suas carreiras. “Havia muito medo de que eles não abrissem mais processos seletivos e aquela era uma oportunidade para as pessoas acertarem [financeiramente] suas vidas”, diz.
No fim de abril, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) não mudaria em praticamente nada o combate à doença. “O que muda é essa questão de restringir, de maneira desarrazoada, as liberdades individuais à mercê da opinião de um gestor municipal”, resumiu. Para ele, o fim da Espin é uma batalha ideológica, que afetaria de forma mais dura as decisões relacionadas ao uso de máscaras, à exigência de passaporte vacinal e a qualquer medida restritiva atacada pelo eleitorado bolsonarista. Mas Queiroga não mencionou as consequências práticas dessa canetada, que acabam por respingar na vida de milhares de pessoas, como a técnica de enfermagem capixaba, Alessandra Borges.
Com o fim da Espin, comemorado pelo governo, todas as medidas excepcionais associadas ao estado de emergência caem por terra – incluindo os postos de trabalho temporários criados na área da saúde durante a pandemia. Só no Espírito Santo, são quase mil servidores públicos na área de saúde em contratos temporários, a um custo acima do patamar orçamentário permitido por lei, diz o secretário de Saúde do estado, Nésio Fernandes. São mil médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que atuam nas equipes de saúde da família, na emergência de hospitais, nos postos de saúde e na área de vigilância epidemiológica. O contrato da técnica de enfermagem Alessandra Borges foi novamente renovado em 2022, desta vez para mais um ano de trabalho – um alívio para seu bolso. Apesar de também trabalhar em um hospital privado na cidade, foi só com o trabalho no setor público que ela conseguiu colocar o aluguel em dia e ainda ajudar o filho de 26 anos a se mudar. “Eu acertei a minha vida”, diz. Mas toda a fundamentação jurídica que permitiu a contratação emergencial desses funcionários para combater a Covid no estado estava vinculada à situação de emergência.
“Quando se retira a situação de emergência, você tira também o contexto que fundamenta a motivação administrativa [para essas contratações], e o estado passa a estar submetido ao mesmo regramento anterior”, explica Fernandes. Se dependesse apenas da decisão meteórica do governo federal, o governo capixaba seria obrigado a promover uma demissão em massa – caso contrário, correria o risco de responder por improbidade administrativa. Há, claro, as consequências políticas: nenhum governo quer demitir em ano eleitoral.
Mas cortar os funcionários temporários também traz consequências para o atendimento da população. Por mais que a pandemia tenha arrefecido, o sistema de saúde mudou radicalmente nos dois últimos anos. No Hospital Estadual de Vila Velha, aquele onde trabalha a técnica de enfermagem Alessandra Borges, hoje são raros os casos de pessoas internadas com Covid, mas a carga de trabalho continua intensa. Os técnicos ainda cuidam de pacientes com infecções graves – que não foram tratadas durante a pandemia – e submetidos a cirurgias atrasadas, que só agora, passado o furacão da Covid, puderam ser realizadas. O centro cirúrgico voltou a operar, mas o hospital ainda mantém duas UTIs. Uma delas funciona regularmente e a outra fica de sobreaviso, para o caso de uma nova onda de internações – tudo para evitar o drama de 2021.
Atualmente, existem 1.300 leitos em funcionamento no Espírito Santo, como legado da pandemia – mas só 700 estão habilitados pelo Ministério. Isso significa que todo o resto é bancado pelo governo estadual. Com o fim da emergência, o estado precisaria fechar parte desses leitos, interrompendo a operação extraordinária. “Por isso vamos manter a emergência local, reconhecendo o cenário que está colocado”, insiste o secretário Nésio Fernandes. “O serviço de saúde foi ampliado, eu não posso simplesmente fechar serviços e levar a população à desassistência.” A readequação dos serviços e regularização dos contratos acima do teto demandaria um extenso trabalho técnico das secretarias e um debate legislativo – o que é difícil de ser feito às pressas, ainda mais tão perto das eleições. O tempo de transição para o fim da Espin se tornou um impasse entre governo federal e gestores estaduais.
O ministro da Saúde anunciou o fim da emergência nacional no domingo de Páscoa, em pronunciamento na tevê. Mas a norma só foi assinada no dia 22 de abril e passará a valer trinta dias depois, a partir do fim de maio. O Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) pediu noventa dias para que todas as esferas do poder se organizassem e adequassem suas normas à realidade imposta. O Conass identificou mais de 5 mil normas estaduais e municipais vinculadas à emergência nacional (mais que o dobro do anunciado pelo Ministério anteriormente, 2 mil). Além disso, na avaliação do conselho, o prazo ampliado daria mais segurança para observar a consolidação da tendência de queda dos casos, internações e óbitos por Covid e serviria para definir indicadores de controle da doença. Também daria mais tempo para as cidades avançarem com a cobertura vacinal. Mas o Ministério ignorou os apelos e colocou o limite de um mês como condição inegociável.
“Nós queremos proteger a relação com o Ministério e construir saídas para que um plano de retomada maduro seja apresentado à sociedade. Um plano que dê segurança de que o Brasil poderá enfrentar a doença mais preparado do que esteve em momentos anteriores”, diz Fernandes, que também é presidente do Conass. “Esse plano até agora não foi apresentado aos gestores estaduais nem à população”. Ainda que o presidente Jair Bolsonaro repita que o país precisará conviver com o vírus – o que, em certa medida, é verdade –, o governo não detalhou como será essa convivência. O Conselho orientou que estados e municípios brasileiros mantenham suas declarações de emergência locais e vinculem essa decisão à vigência da pandemia, instituída pela Organização Mundial da Saúde, à revelia do governo federal.
Na última quarta-feira, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, lembrou que a pandemia de Covid (oficialmente chamada de Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional) não chegou ao fim. Em abril passado, o comitê de especialistas da organização decidiu pela continuidade do estado de emergência. “A tendência global de queda nos casos, apesar de bem-vinda, não conta a história completa”, disse Adhanom. “Devido à disseminação de novas subvariantes da Ômicron, estamos vendo um aumento de casos nas Américas e na África.” Como alguns países – a exemplo do Brasil – baixaram a guarda, a quantidade de testes e sequenciamentos genéticos diminuíram. Por isso, segundo o diretor da OMS, estamos “cegos” para o comportamento do vírus. “Nós não sabemos o que virá a seguir. Estamos brincando com um fogo que continua a nos queimar”, alertou ele. Nesta semana, a taxa de mortes por Covid aumentou (ainda que de forma tímida) em pelo menos cinco estados brasileiros, e a vacinação da dose de reforço caminha a passos lentos.
O governo do Espírito Santo decidiu manter a emergência estadual, vinculando essa decisão à vigência da pandemia. Isso significa que, na prática, o estado de emergência – com todas as suas consequências legais e sanitárias – permanece na esfera internacional, foi extinto no nível nacional e volta a existir no âmbito estadual. Essa salada normativa foi a forma que outros gestores estaduais encontraram para evitar prejuízos com o fim precoce da Espin. Além de outras implicações, a ação do governo capixaba de recorrer a uma decisão internacional permite assegurar o emprego dos mil servidores da saúde que sustentam a estrutura ampliada do SUS.
Essa estratégia serve para abafar o incêndio, mas o temor dos gestores é de que, sem a emergência nacional, as normas se tornem legalmente mais frágeis e passíveis de contestação, especialmente num cenário de politização e a poucos meses das eleições. Isso vale para uma série de ações de controle, como testagem obrigatória, uso de máscaras, exigência do passaporte de vacinação (usado para incentivar a imunização) etc. “Quando você não tem mais os dispositivos da lei federal, você precisa começar a adotar essas medidas com base em portarias, normas técnicas. Elas podem até ser válidas, mas carecem de robustez jurídica”, explica Fernandes, presidente do Conass. Ou seja, sem o respaldo legal da Espin, as decisões locais podem ser contestadas por grupos que fazem disso uma bandeira política.
Para evitar a instabilidade, a alternativa mais segura seria transformar as normas em leis – mas o prazo dado pelo governo não é suficiente para pautar o Legislativo, especialmente no período eleitoral. “Isso acaba virando competição porque o fim do estado de emergência nacional faz com que nossas decisões fiquem submetidas a um debate político regional”, avalia Fernandes. Alguns governadores, antes de se lançarem candidatos, já suspenderam as medidas restritivas e inclusive os estados de emergência locais.
O Brasil conseguiu uma boa cobertura vacinal, mas, segundo o Conass, ainda é preciso observar o que vai acontecer no futuro e definir gatilhos para voltar com essas restrições, caso surja uma nova onda da doença. A piauí questionou o Ministério da Saúde sobre a falta de um plano de retomada costurado com os gestores locais, como apontado pelo Conass. Em nota, a pasta disse que nenhum política pública será interrompida com o fim da emergência e que o Ministério considerou a capacidade de resposta do SUS para tomar essa decisão. “O Ministério da Saúde continuará alerta com o cenário epidemiológico e orienta estados e municípios sobre a continuidade das ações de assistência com a constante avaliação técnica dos possíveis riscos à saúde pública e das necessárias ações para seu enfrentamento”, diz a nota, que não menciona o plano de transição solicitado pelo Conass.
Especialistas ouvidos pela piauí são contra o fim da Espin. “Para variar, o governo está levando isso de forma irresponsável”, avaliou Gonzalo Vecina Neto, ex-secretário de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da USP. “Vamos perder uma série de instrumentos que podem ajudar no combate à doença enquanto ainda estamos, claramente, em um cenário de emergência.” Assim como fez desde o começo da pandemia, o Ministério da Saúde, mais uma vez, deixa os estados – e milhares de pessoas – à deriva.