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Green Book: O Guia – conto de fadas infantil para adultos

Filme vencedor do Oscar é engodo baseado em estereótipos

Eduardo Escorel | 13 mar 2019_12h25
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Antes de ter assistido a Green Book: O Guia, li o artigo de Dorrit Harazim, publicado no domingo de Carnaval no Globo, e tomei conhecimento da “importância histórica do livrinho que dá título ao filme”, de cuja existência sequer tinha notícia.

Não sabia que um guia de viagem fora publicado em Nova York, por Victor H. Green & Co., de 1936 a 1967, para “dar informação ao viajante negro que evitará dificuldades, constrangimentos e tornará suas viagens mais agradáveis”, conforme esclarece a introdução à edição de 1949.

O texto de Harazim sobre The Negro Motorist Green-Book despertou a lembrança de uma impressão estranha que tive durante as férias de verão em 1951 ou 1952. Estávamos – meus pais, minha irmã, meu irmão menor, ainda bebê, e eu – em Rehoboth, pequena cidade de veraneio no estado de Delaware, com cerca de 1 800 habitantes na época, a duas horas e meia de Washington DC, onde morávamos desde meados de 1948.

Naquelas férias, com 6 a 7 anos, fiz grandes descobertas. Entre as inesquecíveis estão a barca na qual se entrava de carro para atravessar a baía de Delaware e os caranguejos, pescados na lagoa próxima da nossa casa alugada para a temporada. Outra novidade foi o calçadão de tábuas (boardwalk), décadas depois considerado o melhor da América. Com cerca de 1 quilômetro e meio de extensão, o mini-golf, o pequeno parque de diversões, a profusão de vendedores de sorvete, pizza e burguers, eram uma grande atração para crianças como nós, filhos de diplomata, no início da década de 50.

Mas, o principal programa diário era mesmo ir à “melhor praia familiar na costa leste”, como a de Rehoboth veio a ser conhecida. Foi lá, numa tarde, quando estávamos voltando para casa, que vi de longe uma massa compacta escura, indistinta, em uma área delimitada na areia por telas de arame estendidas da calçada até o mar. Sem entender o que estava vendo, perguntei a meus pais “o que era aquilo”. Não lembro da resposta, mas guardo a impressão de que eles hesitaram antes de me dizer que pessoas “de cor” só podiam frequentar a praia naquela área restrita.

Salvo lapso de memória, parece-me que só havia mesmo homens, mulheres e crianças brancas não só no resto da praia como também no calçadão de tábuas.

Depois das férias, quando voltamos queimados de sol à escola primária, em Washington, minha irmã foi recebida por uma coleguinha com uma expressão de horror: “Ugh! You’re black!” (“Credo! Você é preta!”). Ao que ela, com 7 a 8 anos, respondeu: “I’m not black. I’m Brazilian.” (“Eu não sou preta. Sou brasileira.”)

Para tentar conferir a situação hoje, observei algumas vezes a praia e o calçadão de Rehoboth durante o fim de semana passado. A webcam instalada no alto de um hotel transmite imagem e som ao vivo de lá, sem interrupção. Havia apenas pessoas esparsas passeando na areia e no boardwalk, todas bem agasalhadas. Faz frio, chove e venta muito por lá no inverno. E a temperatura varia entre a mínima de 1 grau negativo e a máxima de 28ºC. Reconheço que a amostragem é precária, mas mesmo por volta de meio-dia, no domingo, quando a frequência aumentou um pouco, não consegui distinguir nenhum afro-americano por lá.

Instigado pelo artigo de Harazim e por minhas lembranças, consultei no site da Biblioteca Pública de Nova York (NYPL) a edição de 1952 do The Negro Travelers Green Book (o título original, dirigido ao “motorista” negro, variou durante os 31 anos em que o guia foi publicado, sendo alterado, algumas vezes, para se dirigir aos “viajantes” negros).

Edição de 1952 do guia para motoristas negros. CRÉDITO: THE NEW YORK PUBLIC LIBRARY

 

Na capa, além da fotografia de um trem cruzando uma ponte, impressa em retícula meio-tom verde, há uma pequena ilustração embaixo do título. No desenho, um casal caminha na calçada, vendo-se a ponta da lateral traseira de um automóvel, além de quatro casas do outro lado da rua. No céu, duas pequenas nuvens. O homem, de sobretudo e chapéu, carrega duas malas, uma em cada mão. A mulher, também de chapéu, parece estar segurando o braço dele. É difícil distinguir com certeza a etnia do homem. A mulher, sem dúvida, é branca.

Procurei, mas não encontrei no The Negro Travelers Green Book nenhuma indicação de lugar onde viajantes negros pudessem evitar “dificuldades e constrangimentos” em Rehoboth – nenhum hotel, restaurante, barbeiro, salão de beleza, garagem, boate, ou posto de gasolina. Nem mesmo uma praia. As duas únicas recomendadas em Delaware são as de Rosedale e Briarwood Farm. Em apenas quatro cidades do estado (Dover, Laurel, Townsend e Wilmington) há uns poucos lugares indicados como acolhedores para “viajantes” negros.

Harazim cita e comenta o otimismo do prefácio à edição de 1949, no qual é previsto que “haverá um dia no futuro próximo em que este guia não precisará ser publicado. Isso será quando nós, enquanto raça, teremos oportunidades e privilégios iguais nos Estados Unidos. Suspender esta publicação será um grande dia para nós, pois então poderemos ir aonde quisermos sem constrangimento. Mas enquanto esse tempo não vier, nós continuaremos a publicar essa informação a cada ano para sua comodidade”.

Foi preciso esperar mais de quinze anos, porém, até a Lei de Direitos Civis, proposta por John Kennedy, ser promulgada por Lyndon Johnson, em 1964. Implementada aos poucos nos anos seguintes, a lei proibiu discriminação baseada na raça, cor, religião, sexo e nacionalidade e segregação racial em escolas e locais públicos.

Passado o Carnaval, fui finalmente assistir a Green Book: O Guia, dirigido por Peter Farrelly, a partir do roteiro que ele escreveu com Nick Vallelonga e Brian Hayes Currie. Todos três com carreiras pouco expressivas, Farrelly sendo conhecido como diretor de comédias.

Nessa altura, além de ter recebido os Oscars de melhor filme, roteiro original e ator coadjuvante (Mahershala Ali), Green Book: O Guia havia rendido cerca de 206 milhões de dólares de bilheteria no mercado mundial, tendo sido produzido com orçamento de 23 milhões de dólares. Apenas no Brasil, além de bem recebido por parte da crítica, foi visto por 497 mil pessoas. Diante de um sucesso comercial dessa magnitude, o que mais haveria a dizer?

Saí da sessão inteiramente de acordo com a “dica” de Harazim: o mais recomendável era “jogar fora o enredo da obra de ficção, desconsiderar os personagens da vida real que a inspiraram, e mergulhar na importância histórica do livro que dá título ao filme. […]” Título, aliás, que no Brasil recebeu um adendo – “o guia” –, inexistente no original. Insinua-se, dessa forma, que o livro tem destaque no filme, o que, na verdade, não acontece.

Como é frequente, em especial no cinema americano, Green Book: O Guia está aquém de sua fonte de inspiração: o guia dirigido ao motorista e aos viajantes é um documento único e irrefutável da discriminação racial nos Estados Unidos. Nesse aspecto, o filme é um engodo baseado em estereótipos que procura camuflar preconceitos reais. Encenação açucarada, de importância secundária, não passa de um conto de fadas bem-feito para crianças e adultos infantilizados.

Entre outros comentários sobre Green Book: O Guia feitos nos Estados Unidos, destaca-se a perspectiva do crítico de cinema Wesley Morris, enunciada no podcast The Daily, do jornal The New York Times, dois dias após a entrega dos Oscars.

Para Morris, o filme não passa de “outra versão de um filme ao qual temos assistido há 100 anos. É uma fantasia de reconciliação racial.

[…] o que aconteceu domingo [na entrega do Oscar] reflete de fato o que está acontecendo neste país, onde um segmento da população está se sentindo realmente paranoica, e um pouquinho ameaçada, e está preocupada com a possibilidade de ser desalojada ou destituída por mudanças. E, na medida em que as pessoas que fazem nossos filmes são um microcosmo da nação como um todo, a Academia está passando por algumas mudanças, e está se tornando menos branca, e menos masculina. E eu acredito que eles [os membros] vão se agarrar cada vez com mais força a coisas que sintam serem seguras e familiares. E este é um filme que parece seguro, e de alguma maneira parece reconfortante, porque deixa que digam, de um lado, estarem dando sua honraria máxima a um filme sobre uma amizade interracial, […] Ótimo! Mas para mim, o que isso diz sobre os membros da Academia é também outra coisa, certo? É também uma fantasia que diz que esse símbolo de excelência, e esse símbolo do nosso gosto e nossa crença como corporação, ou pelo menos das pessoas que votaram no filme, realmente reflete o que nós deveríamos ser como nação e isso não é o que somos. Então, é absurda a pretensão de que podemos fazer esse racismo desaparecer simplesmente encontrando a pessoa negra mais próxima que nos pague para sermos uma pessoa melhor. E eu creio ter sido isso que aconteceu domingo [na entrega do Oscar]”.

Harazim se refere em seu artigo ao documentário Driving While Black, sobre o The Negro Motorist Green-Book, que tem lançamento no Public Broadcasting Service (PBS), nos Estados Unidos, previsto para 2020. Dirigido por Ric Burns e baseado em pesquisa da historiadora Dra. Gretchen Sorin, o clip de 5’37” do filme disponível on-line não é nada animador. Aguardemos, porém, com esperança que seja melhor do que a versão ficcional vencedora do Oscar.

 

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Correção: em versão anterior deste texto, Gretchen Sorin foi erroneamente identificada como homem.

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