Nossa Senhora da Purificação que me perdoe, mas fevereiro começou mal, muito mal. Depois do circo de horrores no Senado Federal, houve, dia 6, a tempestade no Rio, causando sete mortes, além de desabamentos e falta de energia elétrica em alguns bairros da cidade. Para completar, no dia 8, treze pessoas foram assassinadas numa operação da Polícia Militar nos morros do Fallet e dos Prazeres, em Santa Teresa, e dez jovens jogadores do Flamengo morreram em um incêndio.
Enquanto isso, nos cinemas, estreou um filme em que o estado totalitário soviético liquida o idealismo de um músico e pianista polonês de talento – sinopse que, sem ser falsa, tampouco está à altura do que Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, tem a oferecer de melhor.
Aproximação mais profícua requer que se deixe de lado o contexto político do pano de fundo, e examine em detalhes as pistas visíveis em primeiro plano, que situam Guerra Fria na categoria dramática das paixões impossíveis que têm desfecho trágico.
“Minha mãe me proibiu, ai, ai, ai!/de amar esse rapaz, ai, ai, ai!”, verso da canção polonesa Dois corações, quatro olhos, entoada em Guerra Fria, é um bom indício para resumir o filme – um melodrama, à primeira vista, de sucesso, que recebeu o prêmio de Melhor Diretor em Cannes e foi selecionado para concorrer ao Oscar, a ser entregue no próximo dia 24, em três categorias: Melhor Diretor, Melhor Fotografia e Melhor Filme em Língua Estrangeira.
Para ser ainda mais preciso, o enredo de Guerra Fria poderia ser descrito como a transgressão obsessiva à censura materna contida no verso citado acima, cantado algumas vezes, em versões um pouco diferentes ao longo do filme, por Zula (Joanna Kulig), personagem forte e petulante, apaixonada por Wiktor (Tomasz Kot), músico íntegro mas de caráter fraco, perdidamente enamorado pela jovem cantora – “a mulher da minha vida”, ele declara.
A letra completa da canção é de tal maneira explícita que poderia ser considerada um spoiler. Isso, se o principal valor de Guerra Fria estivesse na sua trama, o que está longe de ser o caso – “Dois corações, quatro olhos/que choram noite e dia/Moça dos olhos escuros/você chora por que/vocês não podem ficar juntos/Minha mãe me proibiu de amar esse rapaz/teria que ter um coração de pedra/para não amar esse rapaz/para não amar esse rapaz […]”.
Em outra versão, cantada pouco depois da metade do filme, mais dois versos incluídos não deixam dúvida quanto ao desfecho que aguarda os amantes: “[…] Mas eu o envolverei em meus braços/E o amarei até a morte/E o amarei até a morte.” (A transcrição da letra é baseada nas legendas do filme em português, um pouco diferentes das traduções em inglês e francês disponíveis online.)
Não é o enredo, antes banal, o que distingue Guerra Fria. O que o torna mais interessante é sua forma narrativa própria, que ganha destaque dada sua dessemelhança com o modelo predominante imposto pela indústria do entretenimento e almejado por cineastas cuja maior ambição é imitar fórmulas bem-sucedidas.
Pawlikowski se situa em outro plano – busca com tenacidade narrar histórias simples de modo inovador, ainda mais em Guerra Fria do que em Ida (2013), seu filme anterior, comentado aqui há quatro anos.
Ele conta, para tanto, com contribuições decisivas de seus principais colaboradores – a co-roteirista Rebecca Lenkiewicz, em Ida, os co-roteiristas Janusz Glowacki e Piotr Borkowski, em Guerra Fria, além de Lukasz Zal, diretor de fotografia dos dois filmes mais recentes, filmados em preto e branco (e gradações de cinza), no formato 1.33 por 1 (ou 4:3), hoje inusual.
“Estávamos procurando soluções formais: como vamos filmar esta cena”, declarou Zal em entrevista ao Indiewire. “[…] e estávamos tentando encontrar, de alguma maneira, a ideia para cada cena. Cada cena é como um microfilme”, ele disse ainda. (A entrevista completa está disponível aqui.)
Os dois filmes mais recentes de Pawlikowski têm o mérito adicional de serem curtos (Ida dura 82 minutos). Brevidade particularmente notória no caso de Guerra Fria (89 minutos), por se tratar de filme cuja ação tem início no pós-guerra, durante a era Stalin, e se desdobra em várias etapas até a década de 60. A primeira, na Polônia em 1949, e as demais demarcadas com legendas indicando locais e datas.
Mais do que um percurso, ou uma jornada subdividida em períodos, situações e eventos com começo, meio e fim, o que melhor define o procedimento narrativo de Guerra Fria é a escolha de momentos inesquecíveis, fragmentos decisivos de uma trajetória amorosa, sem preocupação de estabelecer nexos causais entre uma sequência e a seguinte. Uma sucessão de flagrantes, ou quadros, reduzidos ao essencial, sem explicações do que ocorre entre um e outro.
Nas palavras de Pawlikowski, trata-se de “chegar à essência de cada componente condensado em um único momento da história” e, “se possível, em termos ideais de filmar cada situação em um único plano”.
Não sendo procedimento narrativo usual, o filme é levado a criar um repertório que o espectador possa absorver, durante seu próprio transcurso, de modo a acompanhar as etapas da trama, proeza considerável que Guerra Fria realiza com sucesso.
A paixão impossível de Zula e Wiktor, representada pela estrutura narrativa circular de Guerra Fria, define o tom melancólico do filme. No prólogo, um dueto popular toca de frente para a câmera, observado por um menino. Em seguida, a missão etnográfica de Wiktor, na qual ele grava canções populares, termina entre as ruínas do antigo esplendor de um templo medieval, no qual restam vestígios de um par de olhos pintados na parede.
É a esse mesmo templo e par de olhos que o casal volta, no final, para se declarar casado e prometer ficar junto “até que a morte os separe” – destino que parece uma fatalidade prevista desde sempre. Ao contrário da tragédia clássica, porém, em Guerra Fria o desfecho é determinado por meio de um pacto feito por iniciativa de Zula com aquiescência de Wiktor, não por uma força superior fora de controle. Trata-se, afinal, de uma tragédia moderna, envolvendo pessoas comuns.
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Se me coubesse atribuir o prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira, entre os três dos cinco concorrentes finais ao Oscar a que pude assistir, não hesitaria em escolher Guerra Fria, no lugar do sentimentaloide Cafarnaum, de Nadine Labaki, e do estetizante Roma, de Alfonso Cuarón, considerado o grande favorito, mesmo concorrendo também a Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Fotografia.