Em 22 de setembro, mesmo antes de a sessão da Câmara dos Deputados começar, Christiane Yared (PL-PR) já sabia que o Novo Código de Trânsito receberia o aval da maioria de seus colegas. Proposta pelo governo federal, a legislação recém-aprovada no Congresso estendeu de vinte para quarenta o número de pontos que leva um condutor a perder temporariamente a carteira de habilitação. Especialistas no assunto, além da própria Yared, consideram o afrouxamento muito drástico. Não à toa, o projeto de lei ganhou o apelido de “PL da Morte”.
A parlamentar foi eleita em 2014 e reeleita em 2018 justamente por defender o endurecimento da legislação de trânsito, pauta que abraçou a partir de uma tragédia pessoal: ela perdeu um de seus três filhos há onze anos, num acidente de carro em Curitiba. Agora, porém, a deputada integra a base do presidente Jair Bolsonaro, que desde a campanha eleitoral defende menos rigor contra motoristas infratores em nome do combate à “indústria da multa”, como ele costuma dizer. Para não se opor a seu partido, Yared acabou votando favoravelmente ao projeto de lei. Foi atropelada pelo bolsonarismo.
A articulação política em torno do Novo Código de Trânsito começou a avançar ainda no primeiro semestre. Em maio, quando Bolsonaro se reuniu com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e com o relator do projeto, o deputado Juscelino Filho (DEM-MA), Yared se deu conta de que a aprovação na Casa era favas contadas. O encontro coincidia com a aproximação entre o Planalto e o Centrão, bloco do qual o partido da parlamentar faz parte. “Assim que percebi que a maioria dos meus colegas queria essa mudança, vi que estava dando murro em ponta de faca”, disse a deputada à piauí. Em 23 de junho, quando o Novo Código foi votado pela primeira vez na Câmara, em sessão virtual, Yared fez um discurso um tanto paradoxal, cobrou punições severas para motoristas infratores e disse “sim” ao “PL da Morte”.
“Senhor presidente, nós vivemos uma guerra no trânsito. Eu perdi um filho para essa guerra. Nós já temos uma Justiça permissiva, e é frouxa a decisão da lei. A minha maior preocupação é com leis permissivas que afrouxarão as penalidades para os infratores”, afirmou naquela sessão. Logo em seguida, no entanto, se contradisse: “Hoje, o nosso partido, o PL, está tranquilo por votar ‘sim’. Sabemos que, em relação ao trânsito no país, que ainda mata tanto, que ainda sequela tanto, teremos um grande caminho a percorrer. Nós estaremos com os parlamentares que acreditam que é possível fazer a diferença na vida das pessoas e que lutam por vidas.” Da Câmara, o projeto seguiu para o Senado, onde recebeu emendas. Depois, retornou à Câmara e foi aprovado definitivamente.
Yared diz que era voto vencido entre os governistas e que precisou “ceder para não perder tudo”. De fato, na Câmara, alguns pontos do projeto que Bolsonaro enviou foram endurecidos. Os parlamentares conseguiram, por exemplo, ampliar a obrigatoriedade da cadeirinha para crianças com até dez anos e menos de 1,45 metro de altura, sob pena de multa gravíssima (a proposta inicial era tirar totalmente a cadeirinha; depois, limitar a obrigatoriedade a crianças de até sete anos e meio). Apesar das “melhoras” no projeto original, a deputada reconhece que o Novo Código não ficou de seu agrado. “Falavam que o código anterior, de 1997, estava ultrapassado, que tínhamos de modernizá-lo. Não sei… O mundo inteiro arrocha, e a gente libera? É muito delicado.’’
O filho da parlamentar, Gilmar Rafael Yared, morreu na madrugada de 7 de maio de 2009, aos 26 anos, enquanto dirigia um Honda Fit na companhia de Carlos Murilo de Almeida, um amigo de 20 anos. Os dois foram atingidos num cruzamento de Curitiba pelo Passat Variant do então deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho, que na época também tinha 26 anos. Depois de passar por um semáforo com luz amarela intermitente, o carro – conduzido pelo próprio deputado – decolou num aclive e aterrissou sobre o Honda, matando na hora ambos os ocupantes. Gilmar Rafael teve a cabeça decepada na colisão. Seu corpo foi sepultado num caixão lacrado.
A perícia do Instituto de Criminalística do Paraná apontou que Carli Filho dirigia a uma velocidade entre 161 e 173 km/h, numa via cujo limite era de 60 km/h. Ele nem sequer poderia estar ao volante: sua carteira de habilitação havia sido suspensa porque o parlamentar acumulara 130 pontos em infrações, entre 2003 e 2009, o que resultou em trinta multas, das quais 23 foram aplicadas por excesso de velocidade.
Pouco antes da colisão, Carli Filho se encontrava num restaurante em que dividiu quatro garrafas de vinho com amigos. O exame de dosagem alcoólica feito pelo Instituto Médico Legal indicou haver 7,8 dg de álcool em cada litro de sangue do deputado, quase quatro vezes o nível considerado tolerável pela legislação da época.
Até o desastre, Christiane Yared não se dedicava a nenhuma causa política. Era pastora da Igreja do Evangelho Eterno e dona de um café colonial. Depois da morte de Gilmar Rafael, ela se engajou tanto no acolhimento de vítimas do trânsito e seus familiares quanto em atividades de reeducação para infratores. Também começou a lutar por mudanças nas leis que tratam do assunto. Foi assim que, nas eleições de 2014, se tornou a deputada federal mais votada no Paraná até então, com 200.144 mil votos. Houve quem a questionasse. “Me acusavam de estar usando a morte do meu filho”, relembra. “Se for para salvar vidas e evitar que outras mães chorem, uso a morte do Rafael, sim.”
Após 34 recursos, Carli Filho foi levado a júri popular em fevereiro de 2018 e condenado a nove anos e quatro meses de prisão em regime fechado, por duplo homicídio com dolo eventual – quando o agente assume o risco de cometer o crime. A defesa apelou à 1ª Câmara do Tribunal de Justiça do Paraná, que reduziu a sentença para sete anos e quatro meses. Como a pena era inferior a oito anos, o condenado ganhou o direito de cumpri-la no regime semiaberto. Ele ficou preso durante três dias até voltar para casa, onde passou a ser monitorado por tornozeleira eletrônica. Em agosto deste ano, obteve a progressão para o regime aberto, que dispensa o monitoramento eletrônico.
Desde junho de 2019, quando o projeto do Novo Código de Trânsito começou a tramitar na Câmara, Christiane Yared tentava se aproximar de Bolsonaro para lhe mostrar as fragilidades da proposta. Embora diga ser amiga do presidente, a parlamentar não conseguiu uma única audiência com ele. “Eu tentei várias vezes, mas os assessores blindam o homem. Bolsonaro me conhece pelo nome. Sentava atrás de mim na Câmara quando era deputado e sabe da minha luta. Mesmo assim, não teve conversa. Ele não me atendeu.”
A parlamentar conta que, ainda durante a tramitação do projeto, buscou se articular com vários colegas, inclusive com o relator do Novo Código, Juscelino Filho. “A gente conversou muito sobre a questão dos pontos. Eu disse: ‘Olha, Juscelino, esse tiro pode sair pela culatra, porque nós não temos um povo que está acostumado com leis de trânsito menos rígidas. Nós mal temos punição, porque a Justiça enxerga as tragédias do trânsito como uma fatalidade.’ Não adiantou.”
A mudança no sistema de pontuação é um dos aspectos do projeto mais criticados por especialistas. Hoje, os condutores perdem o direito de dirigir ao cometerem infrações que somem vinte pontos ou mais, independentemente da gravidade. Para recuperá-lo, precisam se submeter a um curso de reciclagem e ficar longe do volante por um período que varia de seis meses a um ano. Já o Novo Código de Trânsito, que foi sancionado na última quarta-feira e começa a vigorar em abril de 2021, estabelece uma gradação. Só perderá a carteira o motorista que acumular quarenta pontos, desde que não tenha cometido infração gravíssima nos doze meses anteriores; trinta pontos, se tiver uma infração gravíssima; ou vinte pontos, caso haja duas ou mais infrações gravíssimas.
O problema é que a maioria das infrações cometidas no Brasil recebe a classificação de média ou grave, embora tenha alto potencial de causar acidentes com mortos. Segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), das 310,6 mil multas aplicadas no país em agosto – dados mais recentes disponíveis –, 47% dizem respeito a uma infração média: transitar em velocidade 20% superior à permitida. Das cinco penalidades mais cometidas, duas são consideradas gravíssimas – avançar o sinal vermelho e falar ao celular. Juntas, elas representam 13,1% do total das multas.
Enquanto o projeto tramitava, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) enviou ao Senado um parecer argumentando que o abrandamento do sistema de pontos incentivaria a imprudência e elevaria as mortes. O alerta mencionava uma série de estudos realizados em países que tornaram a pontuação mais severa. Em 2006, por exemplo, o rigor maior fez diminuir em 14,5% os óbitos no trânsito da Espanha. Em 2007, na Itália, a pontuação mais rígida garantiu que o uso do cinto de segurança por motoristas aumentasse 50%, contribuindo para que as mortes e lesões em acidentes caíssem 20%. Na Austrália, em 1999, após as autoridades dobrarem o número de pontos para o excesso de velocidade, a redução de óbitos chegou a 30%. “O Novo Código de Trânsito vai na contramão do que tem sido feito na maioria dos países desenvolvidos. Baseia-se numa visão simplista do presidente e endossa a impunidade”, diz Rafael Calabria, pesquisador de mobilidade urbana do Idec.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil é o terceiro país em que os acidentes de trânsito mais matam. Fica atrás apenas da Índia e da China. Um estudo publicado em setembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que, entre 2007 e 2018, desastres do gênero acarretaram um gasto de 1,567 trilhão de reais com hospitais, trâmites judiciais, perdas materiais e outras despesas. Já o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS) constatou que o número de mortes em acidentes de trânsito recuou 30% de 2011 a 2019. Ainda assim, a queda é menor que a prevista por um compromisso firmado com a Organização das Nações Unidas (ONU).
“O Brasil fecha a década descumprindo de forma constrangedora um protocolo com a comunidade mundial de reduzir em 50% as mortes no trânsito. Na nova proposição, prorrogou-se o prazo para pelo menos mais dez anos. Isso significa que o país passou a tolerar mais mortes no trânsito do que o idealizado quando o compromisso foi assumido em 2010. Resta saber como justificar essa decisão às famílias dos mortos e inválidos que deveriam ter ficado fora da estatística”, assinalou o Ipea, na nota técnica Impactos Socioeconômicos dos Acidentes de Transporte no Brasil.
Christiane Yared diz que se reuniu com seus assessores tão logo o Novo Código de Trânsito foi aprovado a fim de estimar o impacto dele e encontrar maneiras de reverter seus pontos mais nocivos. Poucos dias depois, no entanto, interrompeu o trabalho porque se afastou do cargo de deputada para disputar a prefeitura de Curitiba. Quando (e se) ela voltar, terá outra questão com a qual se preocupar: também em setembro, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) alterou os requisitos técnicos para a fiscalização eletrônica e proibiu que os radares fiquem ocultos.
Questionada se está arrependida ou frustrada por ter seguido seu partido e votado a favor da nova legislação, a deputada respondeu enfaticamente: “Eu serei governo sempre. Se você tem um alinhamento com o presidente, você será um deputado produtivo. Não adianta ser apenas um deputado que segue uma ideologia e bate bumbo. Eu consegui levar 323 milhões de reais em emendas para o meu estado porque estava alinhada com o governo Dilma, com o governo Temer e, agora, com Bolsonaro. Tantos anos de luta foram por água abaixo? Não! A gente começa de novo. Uma hora o presidente me atende.”