No início de O Outono do Patriarca, Gabriel García Márquez conta a entrada de um personagem no palácio presidencial de um país que o autor não nomeia, mas poderia ser a Colômbia, sua terra natal. Ele descreve os despojos que a ditadura deixou no grande casarão, com urubus sobrevoando a podridão e vacas ruminando pelos salões. O ditador, cujo rosto foi multiplicado até o esgotamento em moedas e selos, parece estar dormindo – ou morto. É a descrição de uma ruína, de uma corrupção mortiça que se arrastou no país por dois séculos de governo das mesmas oligarquias. As palavras de García Márquez poderiam ter sido incluídas no discurso de posse do novo presidente da Colômbia: Gustavo Petro, ex-guerrilheiro, ex-preso político, ex-vereador, ex-prefeito e ex-senador.
Aos 62 anos, Petro venceu o segundo turno eleitoral, em 19 de junho passado, com 11,3 milhões de votos (ou 50,4%). É o primeiro governante de esquerda do país e o mais votado numa eleição presidencial na história da Colômbia. Seu governo começa em 7 de agosto próximo, e ao lado dele estará a vice-presidente Francia Márquez, de 40 anos, a primeira mulher e a primeira pessoa negra/afrodescendente a ocupar um cargo tão alto da República. Os dois fazem parte de um movimento que agrega partidos de esquerda, o Pacto Histórico, criado no ano passado, e sua eleição fortalece o avanço atual dessa corrente política na América Latina – que já conta com Alberto Fernández na Argentina, Gabriel Boric no Chile, Luiz Arse na Bolívia, Pedro Castillo no Peru, Nicolás Maduro, na Venezuela, Irfaan Ali na Guiana e Chan Santokhi no Suriname.
Vale precisar: Petro e Márquez são os primeiros políticos de esquerda que os militares, os paramilitares e os radicais de direita da Colômbia não mataram antes que pudessem chegar ao poder pelas urnas. O país foi governado durante duzentos anos por dois partidos, o Liberal e o Conservador, e os líderes que no passado surgiram com ímpeto revolucionário foram todos assassinados, como Jorge Eliécer Gaitán (1903-48), Luis Carlos Galán (1943-89), Carlos Pizarro (1951-90). Também foram mortos centenas de aspirantes a prefeituras de cidades distantes de Bogotá ligados à esquerda democrática.
O significado disso é muito simples: o governo de Petro é uma tremenda mudança no cenário político colombiano, mas navegará perigosamente na contracorrente, porque nesse país a corrente costuma seguir pela margem direita.
Em abril do ano passado, em uma reunião privada com representantes de uma multinacional dedicada à análise de dados digitais, à qual compareci, foi apresentado um relatório que identificava os dois maiores movimentos políticos da Colômbia. De um lado, a direita representada pelo ex-presidente Álvaro Uribe Vélez (que governou de 2002 a 2010), líder do Centro Democrático – o uribismo. De outro, a esquerda, liderada por Petro – o petrismo. Era evidente que as contas ligadas a Petro formavam uma bolha maior que a da direita, mas o mais relevante – como explicou o expositor na reunião – era que essas duas realidades não se tocavam. “A realidade mostrada pelos petristas chega aos jovens, e aí estão os votos dele. Eles não conhecem a outra realidade do país”, afirmou. Era uma leitura de mão dupla: a direita também não conhecia esse país que então tomava as ruas. E, como não conhecia, tinha medo.
No ano passado, houve na Colômbia uma série de protestos violentos contra o governo do presidente Iván Duque (Centro Democrático), que governa desde 2018. Os manifestantes exigiam, entre muitas outras coisas, redução nos impostos, melhores oportunidades econômicas, empregos (o desemprego atingia cerca de 20% da população, por causa da pandemia) e proteção aos líderes sociais rurais que estavam sendo assassinados por grupos paramilitares e do narcotráfico. Duque reagiu com forte repressão policial aos protestos, nos quais morreram mais de sessenta pessoas. A vitória de Petro, de alguma forma, é uma reação do eleitorado aos políticos que governaram pensando mais em seus próprios interesses do que nos anseios da população colombiana.
Numa pesquisa de opinião realizada pela empresa Invamer, em junho de 2022, apenas 28% aprovavam o governo do presidente Iván Duque. Para 64,2%, a Colômbia estava no rumo errado, e 22,8% classificaram a corrupção como o principal problema do país. Segundo a enquete, a instituição mais desprestigiada é o Congresso Nacional. “A Colômbia estava clamando por uma mudança de governo, uma mudança de modelo”, afirma o cientista político Miguel Silva.
Foi assim que as eleições presidenciais avançaram, de surpresa em surpresa. Antes do primeiro turno, em 29 de maio, um candidato da esquerda assumiu a dianteira. Havia previsões de que Petro venceria com folga, sem necessidade de uma segunda rodada, desbancando o candidato do governo, Federico Gutiérrez (Centro Democrático). Mas apenas metade dos 40 milhões de colombianos aptos a votar compareceu às urnas – e Petro obteve 40,3% dos votos. Em segundo lugar, com 28,1% dos votos, ficou não Gutiérrez, mas Rodolfo Hernández, um empresário da construção civil de 77 anos, com uma fortuna de 100 milhões de dólares e ex-prefeito da cidade de Bucaramanga (a décima do país em população, com cerca de 520 mil habitantes, em 2020).
Para espanto geral, pela primeira vez na história a disputa do segundo turno se daria entre dois homens à margem dos tradicionais grupos políticos conservadores. “A Colômbia queria mudança. Petro prometeu uma transformação total e nunca fez parte das elites do poder, muito pelo contrário, foi fustigado por elas”, diz a cientista política Carolina Horta. “Hernández, por sua vez, é um empresário que se vangloriou de não ter trabalhado para os políticos do país, apresentando-se como um trabalhador, o que levou as pessoas a também se identificarem com ele. Faz muito sentido incluí-lo na corrente de Donald Trump e Jair Bolsonaro. De um jeito ou de outro, com Petro e com Hernández, estávamos diante de dois caminhos populistas.”
Às vésperas do segundo turno, a direita logo se concentrou em torno de Hernández, o que levou à suspeita de que, ao contrário do que se passara antes, Petro não teria muitas chances na continuação do pleito. Mas o apoio dado ao empresário não foi suficiente para ele obter a vitória, apesar dos mais de 10,5 milhões de votos que recebeu no segundo turno (ou 47,3%).
A culpa da derrota foi, em parte, do próprio Hernandéz, que se revelou um completo desastre político: não deu entrevistas durante a campanha, não compareceu a nenhum debate e ainda fugiu para Miami antes das eleições do segundo turno, alegando ter informações sobre um plano para matá-lo “com uma facada”, como disse ao jornalista peruano Jaime Bayly. Quando aparecia na mídia, Hernandez era puro improviso e se mostrava incapaz de elaborar as ideias com clareza. Às vésperas da votação, um áudio seu vazou nas redes sociais. Era uma síntese de sua visão de mundo autoritária. Ele dizia: “Eu limpo meu cu com a lei.”
Os primeiros derrotados dessas eleições são os políticos que manejaram os cordéis do poder nos últimos trinta anos, quase todos ex-presidentes, como Álvaro Uribe Vélez, que acabou apoiando Rodolfo Hernández, em silêncio.
O que muita gente se perguntou foi como Petro e Hernández conseguiram chegar tão longe. Uma das razões, talvez a principal, foi a atividade deles nas redes sociais, onde parece renascer o que no passado era conhecido como “guerra de guerrilhas”. E, nesse reino, Petro se tornou o senhor absoluto das narrativas, superando todos, inclusive Hernández, que é mais hábil no WhatsApp.
A estratégia de Petro chegou mesmo a escandalizar a opinião pública. Foram reveladas horas e horas de gravações que mostravam como ele planejava, com sua equipe de campanha, desacreditar a imagem dos seus adversários eleitorais, muitas vezes com mentiras, memes e falsas acusações. As revelações ficaram conhecidas como “o escândalo dos Petrovídeos” (alguns até chamaram o caso de “Watergate colombiano”). Na estratégia do candidato de esquerda, o ataque a Hernández veio com a divulgação de dezenas de vídeos e áudios em que afirmava, por exemplo, que as mulheres devem ficar em casa, dando apoio ao marido, e comparava os políticos que saqueiam o erário público a prostitutas. Em um vídeo, o empresário apareceu de shorts, cercado de garotas de biquíni.
Antes de os dois se enfrentarem, Petro tentou uma aproximação. Em dezembro de 2021, apareceu de chapéu e mochila num palanque em Bucaramanga, cidade de Hernández, e o convidou publicamente a unirem forças. “Não tenho nada contra ele. Faço aqui meu convite para discutirmos propostas e ele me ajudar a levar os corruptos para a cadeia”, disse, na ocasião. Comentou-se, até mesmo, que Petro queria tê-lo como vice.
Mas, em 22 de maio, no encerramento da campanha do primeiro turno, as coisas mudaram. Petro chamou Hernández de “milionário, corrupto e uribista”. E o empresário respondeu no Twitter, no dia seguinte: “Depois de me procurar para uma aliança, Petro me ataca quando as pesquisas mostram que sou o único que pode ganhar no segundo turno. É a máscara caindo. Acha que não sirvo mais, doutor Petro?”
Quando Hernández viajou para Miami a fim de escapar dos debates, o candidato da esquerda se aproveitou disso para aparecer em todos os programas de rádio e tevê possíveis e fazer eloquentes pronunciamentos tranquilizando os empresários e os investidores estrangeiros (que acreditam que ele vai adotar um modelo de governo parecido com o de Hugo Chávez na Venezuela).
Em 15 de junho, o Tribunal Superior de Bogotá editou uma ação cautelar obrigando os dois candidatos a debaterem publicamente. Petro disse no Twitter: “A Justiça ordenou realizar o debate entre os candidatos à Presidência. É o direito do povo. Eu estou preparado para isso.” Hernández, porém, guardou silêncio e pediu esclarecimentos ao tribunal sobre a decisão. Depois, afirmou que estava pronto a comparecer. Mas apresentou uma longa lista de condições, e disse: “Que se realize esse debate, em cumprimento da decisão dos magistrados, que, respondendo a um abuso descarado, inconstitucional e ilegal de um mecanismo tão importante, como a medida cautelar armada por seus chicaneiros, decidiram majoritariamente que um direito se tornasse uma obrigação de viés stalinista.”
Petro, sem ler a lista de Hernández, disse que aceitava todas as condições. Mas o debate nunca foi realizado. Vários analistas frisaram que, por não ter propostas contundentes sobre a realidade colombiana e ser muito fraco em entrevistas ao vivo, Hernandez se viu obrigado a transformar sua imagem em meme para alcançar alguma penetração pública.
Segundo o CrowdTangle – ferramenta de monitoramento do Meta – na semana seguinte ao primeiro turno, quando os dois candidatos saíram à cata do voto dos indecisos, o desempenho das postagens de Petro no Facebook se mostrava bem superior ao de Hernández: tinha 852 mil seguidores acima do rival, seus vídeos foram reproduzidos o dobro de vezes, e suas publicações receberam 2,29 milhões de interações a mais.
No Twitter, a situação era idêntica: Hernández tinha na época pouco mais de 300 mil seguidores e Petro contava com 5 milhões – ele é uma das personalidades políticas com maior número de seguidores nessa rede social, só comparável ao ex-presidente Álvaro Uribe. Além disso, as interações semanais de Petro no Twitter chegavam a 21 mil, em média, enquanto as de Hernandez não passavam de 10 mil. O empresário teve melhor performance no WhatsApp, graças a uma equipe de comunicação integrada por jovens.
Apesar dos vídeos escandalosos revelando como a campanha de Petro planejava destruir a imagem dos oponentes, o candidato da esquerda demonstrou capacidade para navegar na tempestade: deu entrevistas, respondeu aos críticos e provou que naquelas reuniões não se cometeu nenhum delito, passando, evidentemente, ao largo das questões éticas.
A estratégia nas redes sociais exerceu uma função central na trajetória de Gustavo Petro rumo à Presidência. Mas outros fatores impulsionaram a sua candidatura, e um deles tem a força gravitacional de Júpiter: Francia Márquez. De sorriso aberto, temperamento aguerrido e oratória vigorosa, essa mulher trouxe uma nova esperança ao país: uma pessoa pobre podia chegar ao poder. Nos últimos vinte dias de campanha, ela fez seus discursos protegida por uma barreira de escudos policiais, depois que, numa de suas aparições em praça pública, um ponto de laser mostrou que estava sob a mira de um franco-atirador. Mais tarde, um homem se entregou à Justiça, dizendo que aquilo tinha sido apenas uma brincadeira.
Márquez nasceu em Suárez, no departamento de Cauca, no sudoeste do país, filha de pais que trabalhavam na mineração de ouro, atividade que ela própria exerceu na adolescência. Mãe solteira aos 16 anos, mudou-se para Cali, onde foi empregada doméstica. Fez um curso técnico de agropecuária e dois anos atrás se formou em direito pela Universidade Santiago de Cáli. Seu ativismo ambiental remonta à adolescência, quando se envolveu em protestos contra a construção de uma represa próxima da comunidade onde vivia em Suárez. Depois, participou de manifestações em favor de afrodescendentes que o governo pretendia desalojar de suas comunidades em Suárez para favorecer empresas mineradoras, pelo que foi ameaçada de morte por grupos paramilitares. Conforme o Censo de 2006, 10% da população colombiana se identificou naquele ano como negra.
Em fevereiro de 2015, aos 33 anos, Márquez caminhou mais de 500 km para protestar contra a penetração de uma mineradora no departamento de Cauca, abraçando de vez a causa ambientalista – o que a levou a receber, no ano seguinte, o Prêmio Goldman de Meio Ambiente, chamado de “Nobel Verde”. Ela se manteve distante do meio político até se ligar ao Pacto Histórico, o partido de Petro, que não a queria em sua chapa, por achar que ela não tinha representatividade política. Mas, em uma consulta interna do partido para a escolha do candidato a vice-presidente, a ativista obteve 782 mil votos. Com a votação esmagadora, Petro não teve outra opção que compartilhar a campanha com Márquez.
Por fim, ele se agarrou a uma ideia de sua vice, dizendo que governaria para “os ninguém”. Prometeu também enfrentar as grandes mineradoras e não conceder mais licenças de exploração e uso de recursos minerais. Acrescentou que vai garantir educação gratuita para as camadas mais pobres e, abusando do populismo, que o Estado dará emprego a todos os desempregados. Márquez também foi uma figura essencial para reconciliar Petro e a esquerda colombiana com os movimentos feministas, depois de um episódio ocorrido quatro anos atrás, em que ele apoiou vários homens acusados de violência contra mulheres.
Gustavo Francisco Petro Urrego nasceu em Ciénaga de Oro, uma cidade que tem hoje 70 mil habitantes e está situada entre as montanhas, a cerca de duas horas do Mar do Caribe. Apesar disso, ele prefere se considerar um costeño, amante do vallenato e do porro – gêneros musicais da região caribenha da Colômbia. Em suas fotos mais difundidas, ele aparece de vueltiao, o chapéu de palha bicolor (tipo sombrero) peculiar da mesma região.
Sua família se mudou do interior do país quando ele ainda era um bebê. Passou primeiro em Bogotá e depois se estabeleceu no município de Zipaquirá (hoje com cerca de 130 mil habitantes), onde Petro cresceu e estudou as primeiras letras. Ele frequentou o mesmo colégio em que, anos antes, havia estudado García Márquez.
Como ele próprio diz em Una Vida, Muchas Vidas, a sua autobiografia, suas inquietações sociais nasceram ao ouvir as histórias que a mãe lhe contava sobre o líder liberal colombiano Jorge Eliécer Gaitán, cujo assassinato em 9 de abril de 1948 desencadeou La Violencia, o grande conflito armado colombiano entre os partidos Liberal e Conservador que durou dez anos. Enquanto lia a literatura latino-americana, Marx e outros pensadores socialistas, Petro começou a se interessar pela luta armada. “Dentro de mim tinha surgido uma solidariedade com a história do povo, com a luta pela justiça, com Gaitán assassinado”, escreve.
Em 1978, uniu-se ao Movimento 19 de Abril (M-19), organização de guerrilha urbana fundada oito anos antes, depois que os conservadores supostamente fraudaram as eleições presidenciais de 1970, impedindo o retorno ao poder do ex-ditador Gustavo Rojas Pinilla, cujas ideias encontravam ressonância entre muitos jovens progressistas. Petro foi convencido a entrar na guerrilha por um professor que lhe mostrou documentos da Conferência do M-19 – cúpula guerrilheira que decidia os rumos ideológicos e estratégicos do grupo. Mas o que desencadeou a sua simpatia pelo movimento foi, primeiramente, um sentimento estético, como conta em seu livro:
O que mais me chamou a atenção de saída foi a qualidade da edição, o cuidado formal do texto, indicando que no setor de comunicação do M-19 havia gente muito capaz. Eu gostei muito do documento: o M-19 articulava as propostas socialistas da esquerda tradicional da época, mas ia muito além, para propor algo que continua parecendo óbvio, mas não é tanto: uma democracia real para a Colômbia.
Enquanto atuava na guerrilha, Petro estudou economia na Universidad Externado de Colombia, uma instituição da elite na qual conseguiu ingressar graças às excelentes notas que tirara no colégio e no exame estatal que avalia o desempenho escolar dos egressos do ensino médio (como o Enem). Em 1981, quando tinha apenas 21 anos, tornou-se personero – procurador público municipal que vela pelos direitos dos cidadãos – da cidade de Zipaquirá.
Petro nunca participou das ações armadas do M-19, como a invasão da Embaixada da República Dominicana, em fevereiro de 1980, e do Palácio da Justiça, em novembro de 1985. Muito menos do sequestro de empresários ou chefes do narcotráfico. Era um homem urbano, e fazia parte de uma rede de apoio. Entre 1984 e 1986, quando foi vereador de Zipaquirá, o M-19 começou a dobrar sua aposta na luta armada contra o governo, e muitos guerrilheiros que estavam na vida civil foram capturados de maneira irregular. Petro sofreu ameaças e se entrincheirou num bairro chamado Bolívar 83 – uma ocupação popular em Zipaquirá onde as guerrilhas faziam trabalho ideológico e ele ajudara a construir casas. Mas foi capturado lá mesmo, junto com várias mulheres já idosas e rapazinhos que colaboravam com o M-19. Na sua autobiografia, Petro diz:
Nosso encarceramento foi apenas mais um episódio da luta pela justiça social, pela moradia para todos […]. Comigo, a primeira coisa que o Exército fez foi roubar uma pulseira banhada a ouro que eu tinha ganhado da minha namorada, a mesma que me dissera estar grávida […]. A tortura não é um momento de abstração intelectual. É um momento de resistência física e de pura sobrevivência.
Petro ficou com cicatrizes no rosto e marcas pelo corpo. Sofreu a famosa tortura que se diz “chinesa” – passou a noite inteira com uma goteira pingando em sua testa. Foi obrigado a dormir no estábulo, com os cavalos, sem coberta nem comida, e recebeu choques elétricos no peito.
Ele foi um dos muitos quadros políticos das guerrilhas colombianas torturados em prisões irregulares e, embora não tenha sido uma figura proeminente no M-19, o mero pertencimento a esse grupo lhe pesa até hoje, politicamente. As guerrilhas colombianas deixaram traumas profundos na população, por causa de sua longevidade e violência. As Forças Armadas Revolucionárias – Exército do Povo (FARC-EP) atuaram de 1964 a 2017. O Exército de Libertação Nacional (ELN), criado também em 1964, tenta até hoje estabelecer um regime socialista na Colômbia. Esses dois grupos cometeram milhares de sequestros, tomaram povoados de assalto, extorquiram empresários, fazendeiros e camponeses, recrutaram rapazes à força para engrossar suas fileiras, entre outras brutalidades.
O M-19 depôs as armas em 1990 e foi vital para a assinatura da Constituição promulgada em 1991 e que muitos qualificam de “garantista” para os direitos da cidadania. No mesmo ano da promulgação da Carta Magna, Petro foi eleito para a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil). Sua atuação, entretanto, passou em brancas nuvens. Quando tentou uma vaga no Senado, três anos depois, a campanha fracassou.
Em meados dos anos 1990, começaram a se espalhar pelo país grupos paramilitares que assassinavam políticos de esquerda e líderes sociais e sindicais. Visado pelos facínoras, Petro teve de se exilar. Foi para a Bélgica, onde trabalhou como diplomata, mas abandonou o cargo depois de denúncias contra o embaixador. Lá, fez uma especialização em meio ambiente e desenvolvimento populacional, na Universidade Católica de Louvain. Em 1997, voltou à Colômbia e, no ano seguinte, conseguiu se eleger mais uma vez para a Câmara de Representantes, onde se converteu naquilo que seria dali em diante: o grande opositor. Tinha dois alvos principais: os clãs políticos que sangravam os cofres públicos e as alianças de políticos com grupos paramilitares.
Em 2005, conquistou a notoriedade que almejava, ao denunciar que Santiago Uribe Vélez – irmão do então presidente Álvaro Uribe, seu grande nêmesis – fazia parte de um grupo paramilitar conhecido como Os Doze Apóstolos, que assassinou mais de quinhentas pessoas nos anos 1990 e desapareceu com seus corpos. A campanha foi bem-sucedida. No ano seguinte, Petro se elegeu senador pelo Polo Democrático Alternativo (PDA), uma coalizão de esquerda, e liderou uma cruzada de oposição que denunciou e ajudou a desmantelar o esquema montado pelo governo para espionar as comunicações de líderes de esquerda e de magistrados da Corte Suprema de Justiça (equivalente ao Supremo Tribunal Federal). Também trouxe à luz as relações de grande parte do Congresso com grupos armados de direita. Naqueles anos, tomado por uma forte paranoia, passou a dormir tendo ao lado uma submetralhadora.
Sua primeira tentativa de chegar à Presidência foi em 2010. Ficou em quarto lugar. No ano seguinte, criou seu próprio partido, o Movimento Progressista (depois Colômbia Humana), candidatou-se à prefeitura da capital Bogotá – e venceu. Foi uma gestão conturbada, difícil. Ele chegou a ser afastado do cargo por alguns meses, acusado de ter prejudicado a saúde pública, depois que a cidade ficou sem recolher o lixo durante dias, devido a complicações na implantação de uma empresa pública que faria o serviço, no lugar das companhias privadas que o realizavam até então. Além desse escândalo administrativo, a época ficou marcada pelos longos discursos que Petro fazia na prefeitura e que tanto emocionavam seus seguidores.
Num perfil publicado na revista mexicana Gatopardo, o jornalista colombiano Camilo Amaya disse que Petro deixou o governo de Bogotá “com índices favoráveis em educação, saúde, segurança e redução da pobreza, mas com muitas dívidas em termos de infraestrutura e desenvolvimento urbano e uma rotatividade de funcionários maior que a habitual, que muitos atribuem a um gênio difícil, muito autocentrado e com pouca disposição para escutar”. Uma jornalista que trabalhou com Petro na época conta que ele não aceitava opiniões divergentes. “Só valiam as ideias dele, ninguém podia contrariá-lo, e os funcionários que não o apoiavam tinham que deixar a prefeitura”, disse. Avaliação parecida foi feita por companheiros seus na guerrilha.
Petro passou a ser associado na Colômbia à figura de um obstinado opositor dos governos. Em 2018, voltou a se candidatar à Presidência – e voltou a perder. Dessa vez, porém, recebeu mais de 8 milhões de votos. Retornou ao Congresso como senador e fez forte oposição ao presidente eleito no mesmo ano, Iván Duque. Quando estouraram os protestos estudantis de 2019 e a greve nacional de 2021, sua voz foi fundamental para animar os manifestantes nas redes sociais. Seu partido liderou uma cruzada de denúncias de violações de direitos humanos que a direita colombiana tachou de exagerada. Por causa de seus discursos durante as mobilizações, Petro foi acusado de incendiar ainda mais o país. Mas suas palavras arrebataram a juventude, força fundamental para o êxito que obteve nas últimas eleições.
A Colômbia vai mudar, já está mudando. É cedo para dizer que rumo tomará. A fim de tranquilizar a população diante das incertezas do futuro, logo após a sua vitória o novo presidente de olhar matreiro e soberbo proclamou, tal como um messias:
Esta não é uma mudança para nos vingarmos, não é uma mudança para criar mais ódio, não é uma mudança para aprofundar o sectarismo da sociedade colombiana […]. Não é para nos matarmos uns aos outros. É para nos amarmos uns aos outros.