A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa, premiado no Forumdoc.BH 2014. O filme aborda o cotidiano de jovens do bairro Nacional, região pobre de Contagem (MG)
No Forumdoc.BH 2014, concluído ontem (30/11/2014) em Belo Horizonte, além da Mostra Competitiva Internacional, Mostra Retrospectiva Avi Mograbi, Mostra/Seminário "A escola e a câmera" etc., foi possível assistir em cinco dias a 16 filmes na Mostra Competitiva Nacional. Isso sem contar a exibição hors concours de Retratos de identificação, de Anita Leandro, um momento alto do evento.
Vistos em intervalo de tempo tão breve, os cerca de 800 minutos brasileiros em competição, selecionados entre 250 títulos inscritos, produzidos a partir de 2013, permitem vislumbrar rumos da produção recente de jovens realizadores, alguns iniciantes, outros conhecidos por realizações anteriores, alguns com traços visíveis de imaturidade.
Embora preserve seu nome de batismo – Festival do Filme Documentário e Etnográfico –, ao chegar este ano à maioridade, o Forumdoc.BH deixou de discriminar a ficção, o que pode ser entendido como ato libertário, mas fere sua identidade, produzindo ruído que torna difícil entender a inclusão de alguns dos títulos exibidos em competição.
Da inexistência de fronteira rígida entre ficção e documentário, reconhecida por todos, não decorre o desaparecimento da diferença entre um e outro. Mesmo procedimentos ficcionais e documentais sendo intercambiáveis, há territórios próprios a cada um deles que convém preservar. Ao contrário do que sugere a comissão de seleção do Forumdoc.BH no texto que seus integrantes assinam no catálogo, alguns dos filmes selecionados não podem ser considerados documentários. O fato de os atores improvisarem, criando personagens a partir da experiência vivida – uma das justificativas apresentadas no texto para a inclusão de certos filmes – não basta para deixarem de ser fábulas ficcionais.
Não se trata de uma questão semântica. Trata-se de falta de critério, considerando a maneira do próprio Forumdoc.BH se autodefinir. O resultado ambíguo leva o espectador a acreditar que está assistindo a uma coisa quando está vendo outra. Valorizar a mestiçagem não implica em negar a existência do branco e do negro.
Nos filmes em competição, é nítida a diferença entre o que motiva diretores de diferentes nações indígenas e o que mobiliza realizadores de outras etnias. Alberto Alvares (Guarani), Takumã Kuikuro e Morzaniel Iramari (Yanomami) parecem em harmonia com suas origens e cultura. Enquanto isso, nos demais filmes transparece profundo mal estar, convertido em narrativas de denúncia social e crise de valores, rebeldia contra convenções, sem excluir crítica ao sistema social e econômico que integram. De um lado, há esforço para conhecer e preservar a sabedoria ancestral para transmiti-la às novas gerações. Do outro, a insatisfação é escancarada e o esgotamento de um modo de vida proclamado.
A exceção talvez seja A Deusa branca, de Alfeu França, único sobre um episódio do passado – o projeto de filme não realizado, no final da década de 1950, de Flávio de Carvalho –, recuperado através de imagens de arquivo e uso de narração em voz off.
O prêmio de melhor filme da Mostra Nacional foi dado ao documentário Urihi Haromatipë – Curadores da terra-floresta (2014), de Morzaniel Iramari, e ao filme de ficção A vizinhança do tigre (2014), de Affonso Uchoa, escolhido melhor filme também da Mostra de Cinema de Tiradentes, no início do ano, e premiado com o Troféu Nova Mirada na VI Semana dos Realizadores recém encerrada.
Iramari e Uchoa partem de experiências próprias de vida, fonte inicial da força dos seus filmes. O primeiro, entre os yanomamis. O outro no bairro Nacional, em Contagem, onde foi criado. Curadores da terra-floresta registra com várias câmeras uma grande reunião de xamãs. Na primeira metade, descreve o ritual com narração em voz off. Na segunda, observa sem comentar ou descrever, em planos longos que parecem representar a temporalidade dilatada do próprio evento. O filme é feito para atender uma necessidade concreta – divulgar para proteger. Iramari foi autorizado a gravar, conforme contou depois da sessão, “para mostrar aos jovens de outras regiões yanomamis onde há influência da Igreja.”
A vizinhança do tigre reencena o cotidiano de adolescentes com não profissionais, nos próprios locais em que vivem. A partir de indicações do assunto a tratar feitas pelo diretor, improvisam diálogos com seu peculiar vocabulário, compondo um painel de suas aspirações e dramas. O filme recupera e atualiza, dessa forma, pressupostos teóricos do neorrealismo italiano.
O que distingue os dois filmes premiados em Belo Horizonte dos demais é o talento demonstrado ao instaurar procedimentos formais próprios em sintonia perfeita com a realidade que lhes serve de matéria prima.
Registro das gravações de Urihi Haromatipë – Curadores da terra-floresta, premiado no Forumdoc.BH 2014. Filmado em Roraima, o filme registra o encontro dos Yanomami para “curar a Terra”