“Estamos ardiendo una vez más”, me escreveu quinta-feira passada pelo WhatsApp o jornalista argentino Carlos Pagni, do diário La Nacion. Naquele momento, 15 horas, o peso argentino já se havia desvalorizado mais de 15% desde a abertura dos mercados. No dia anterior, o presidente Macri tinha anunciado que o governo conseguira o desembolso antecipado do restante dos 50 bilhões de dólares alocados pelo FMI ao programa de socorro à Argentina firmado em junho deste ano. Os mercados interpretaram o anúncio como um sinal a mais de fragilidade das finanças do país e desataram novo ataque contra o peso, que já acumula desvalorização de mais de 50% frente ao dólar em 2018. Na mesma quinta-feira, o Banco Central argentino elevou a taxa básica de juros para 60% ao ano e aumentou a venda de suas reservas internacionais para conter a desvalorização da moeda local. De pronto, o ministro da Fazenda marcou passagem para Washington, onde chegará nesta terça para pedir mais dinheiro ao FMI. Na sexta, o peso recuperou um pouco do terreno perdido, mas a crise está longe de ser superada.
A crise cambial na Argentina é “una lástima”, como respondi a Pagni, mas não uma surpresa. Com um déficit fiscal e externo superior a 4% do PIB e uma larga história de crises do balanço de pagamentos, defaults da dívida interna e externa e propensão a poupar em dólar, o país vizinho se encontra fragilizado para fazer frente à maior aversão aos países emergentes desencadeada pelo aumento dos juros do Federal Reserve e pelas incertezas geopolíticas e comerciais provocadas pelo governo Trump.
E o Brasil neste quadro? Estamos melhor do que a Argentina, sem dúvida. Temos reservas internacionais bem maiores (sejam medidas como proporção do PIB ou das importações), balança comercial superavitária e conta de capital positiva, para não falar na maior adesão dos brasileiros à poupança em moeda local. Além disso, o Tesouro brasileiro acumulou um colchão de liquidez equivalente a cerca de um ano de compromissos com o serviço da dívida interna, o que o permite abster-se de contratar dívida adicional em condições de juros e prazo quando muito desfavoráveis. Acresce que a inflação brasileira, cerca de 4% ao ano, é muito mais baixa (a Argentina está empinando para mais de 40% anuais), assim como muito menores são as nossas taxas nominal e real de juros. A soma desses fatores dá ao Brasil, comparativamente, condições bem melhores para fazer frente ao teste de estresse a que estão submetidos os países emergentes. Estar melhor do que a Argentina não é, porém, motivo para tranquilidade.
No Brasil, a casa ainda parece intacta, mas os alicerces estão comprometidos, exigindo um programa de reformas capaz de impedir o desabamento no futuro não tão distante. Ou seja, no Brasil não há emergência, mas sim urgência no tratamento de falhas estruturais. A maior delas, um desequilíbrio fiscal estrutural, causado pela expansão continuada dos gastos obrigatórios em ritmo superior ao crescimento do PIB, tendência agravada nos últimos quatro anos e que se reflete num crescimento insustentável da dívida pública. Esta era de 52% do PIB em 2011 e hoje se encontra em 77% do PIB, e crescendo. Os mercados se dão conta da fragilidade fiscal do país e das incertezas políticas sobre a capacidade de superá-la. Sinal disso é que o real se desvalorizou 30% frente ao dólar desde o início deste ano.
Aqui como lá, os governos atuais, não isentos de erros, e no caso brasileiro desprovido da legitimidade que só o voto confere ao governante, lidam com as heranças malditas recebidas das administrações do PT e do casal Kirchner, respectivamente. Ambas começaram bem e terminaram muito mal, deixando um legado de desequilíbrios macroeconômicos, distorções microeconômicas e desajustes de preços relativos, além de sociedades polarizadas e um rastro de corrupção sistêmica.
O pior é que a dificuldade/incapacidade dos atuais governos de superar os danos provocados pelo ciclo precedente de dirigismo populista ilude a maioria da população sobre quem são os maiores culpados pela persistência do desemprego alto e do crescimento pífio. Da mesma maneira, a contaminação do conjunto do sistema político pelos escândalos de corrupção atira todos os partidos e políticos, quase indistintamente, na vala comum do descrédito generalizado, abrindo a porta para aventureiros ou livrando a cara dos maiores responsáveis pela corrupção sistêmica.
A esperança de que, com a eleição de Macri, a Argentina estaria em vias de criar um futuro pós-populista, sem retrocesso autoritário ou abandono da agenda social, está agora em questão. Mutatis mutandis, o mesmo desafio está colocado para o Brasil.
Para que ele seja superado, é preciso eleger para a Presidência, para o Congresso e para os principais estados da federação candidatos que tenham compreensão da profundidade das reformas necessárias, em particular no campo fiscal, determinação para realizá-las e compromisso com um regime de liberdades e proteção aos direitos humanos. Com ventos adversos soprando no mundo lá fora – economicamente contra os países emergentes e politicamente a favor do autoritarismo – acertar a mão em outubro é crucial para preservar a nossa casa comum: um Estado Democrático de Direito comprometido com a redução da pobreza e da desigualdade.
Por ser o Brasil o maior país latino-americano, com particular influência sobre a América do Sul, o que acontecer aqui terá impacto positivo ou negativo sobre toda a região. Não é pouco o que está em jogo.