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    Foto: Acervo pessoal

depoimento

A história do coveiro filósofo

Sepultador narra de que forma a filosofia alemã o ajuda a enfrentar os horrores da pandemia, como tirar o caixão de um filho das mãos da mãe ou enterrar doze pessoas no mesmo dia

Osmair Cândido | 18 jun 2021_16h53
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Osmair Cândido, 60, é coveiro há mais de quarenta anos. Conhecido como Fininho por causa de seu porte esguio, atualmente ele trabalha no cemitério da Penha, na Zona Leste de São Paulo. Há alguns anos, Cândido conseguiu uma bolsa de estudos e, sempre trabalhando como coveiro e faxineiro, se formou em filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2007. É conhecedor da filosofia alemã e tenta levar para sua rotina o imperativo categórico de Kant, segundo o qual as ações humanas devem ser determinadas por princípios racionais universais. Na ética kantiana, o cumprimento do dever liberta. Cândido cumpre seu dever, por mais duro que ele muitas vezes lhe pareça: “Sou um sepultador, tenho de sepultar”, diz. Dividido entre textos e cadáveres, ele tem o projeto de escrever um livro e contar tudo o que já viu e viveu na carreira, especialmente durante a pandemia. Até junho deste ano, a Covid-19 matou quase 500 mil brasileiros, e São Paulo é o estado que mais registrou óbitos pela doença. Cândido testemunhou o tamanho da tragédia que se arrasta há mais um ano. Neste depoimento, o coveiro filósofo narra os horrores da pandemia e conta como a filosofia o ajuda a lidar com a morte, as dores e os dilemas de sua profissão. 

Em depoimento a Camille Lichotti

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Assim que a pandemia começou, eu já estava escolhendo o samba que ia tocar no meu enterro. Não consegui decidir. Meu preferido sempre foi Aldir Blanc, e eu senti muito a morte dele, foi muito difícil. Todo mundo estava morrendo de Covid-19 e eu tinha certeza de que ia morrer também. Afinal, era eu quem pegava os caixões. Nós, coveiros, não tínhamos EPI [equipamentos de proteção individual] nem vacina, então a gente trabalhava improvisando. Eu fazia os sepultamentos com as mãos tremendo de pavor. Tanto que tomava cinco, seis banhos por dia. Minha vida virou um inferno desde então. Pior mesmo é quando chega o nome do falecido e eu reconheço que era um vizinho ou amigo. Já enterrei muitos amigos por Covid-19 e cada vez que eu via um deles ir embora sentia que o mundo diminuía um pouco. Minha capacidade de entendimento também diminuiu. Mas eu levo comigo um mote da filosofia kantiana: a minha liberdade está no cumprimento do meu dever. Sou sepultador, eu tenho de sepultar. Não há mais nada que possa ser feito. Eu posso lamentar, me sentir amargurado, triste e despedaçado, mas tenho de sepultar. A vida de um coveiro parece simples, mas não é. 

Sou bisneto de Adão, neto de Silvestre, filho da Dirce, irmão do Odair. Essa é a minha gente. Adão foi escravo, eu vi a marca que os bons cristãos e a generosidade brasileira deixaram nele. Nasci no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro, e vim com meus pais a São Paulo quando ainda era bebê. A única coisa que sempre me atraiu foi a filosofia. Não gostava de mais nada. Quando eu era bem menino, aos 9 anos, uma professora passou um texto em inglês para a gente ler, dizendo que era de um filósofo. Era um livro de Isaac Newton. Arrumei alguém para traduzir o texto e lembro que ele falava da queda de uma fruta. Eu fiquei com aquilo na cabeça e perguntei para a professora por que a fruta não flutuava. Resultado: fiquei de castigo na escola. 

Depois, no colégio, estudei física e matemática, mas não entendia nada. Por isso, continuei fascinado: como Newton havia descoberto aquilo tudo? Era um gênio. Então comecei a pesquisar sobre Kepler e outros cientistas. Existia uma publicação da Editora Abril sobre grandes pensadores – e eu lia todos. Os livros diziam que eles eram filósofos, então eu pensei: “É disso que eu gosto!” Naquela idade, foi como se eu descobrisse o Universo. Eu passava noites estudando. Isso custou muito da minha vida. Me tornei uma pessoa isolada, sozinha, até hoje eu fico assim. 

Comecei a trabalhar como coveiro ainda jovem, aos 20 anos. Comecei a ler Nietzsche, e, naquela época, tudo para mim era Nietzsche. Eu lia no cemitério mesmo, era o maior barato. É um lugar tranquilo e é de graça né? Eu vivia duro, então adorava o que era gratuito. Eu tinha planos de ir para a faculdade, mas naquele tempo [durante a ditadura civil-militar] era difícil. Era perigoso ler Hegel, Marx. Eu não sabia o que fazer com a filosofia. Para complementar a renda, comecei a trabalhar como faxineiro na Universidade Presbiteriana Mackenzie, aqui em São Paulo. Demorei muito para tentar voltar a estudar. Já beirando os 50, fiz a prova para uma bolsa de estudos no Mackenzie mesmo e consegui 75% de desconto no curso de filosofia. Mas estudar lá ainda era caro. Enquanto eu estava na faculdade, um coveiro que trabalhava comigo me ajudou a pagar a mensalidade e a rematrícula. Ele não sabia nem ler nem escrever, mas fazia questão de ajudar. Dizia que achava bonito ver as pessoas falarem bem, terminarem os estudos. Depois que eu me formei, ele continuou ajudando outras pessoas.

Mas quem quer saber de coveiro? Só lembraram que a gente existe por causa da pandemia. Aqui em São Paulo os EPIs estão chegando e estamos vacinados desde fevereiro. Ainda ficam o cansaço e as lembranças, mas eles estão contratando sempre mais e mais coveiros. É uma profissão que exige muito, porque o seu trabalho nunca termina e você leva o peso desse trabalho para dentro de você. Ninguém gosta de falar, por exemplo, que exuma cadáver. É o tipo de coisa que não é legal ficar comentando, não dá pra falar sobre isso num jantar com seus amigos. As pessoas têm asco, nojo. Acham que todo coveiro é desalmado, bêbado, analfabeto, paupérrimo, insensível. Essa é a impressão geral. Eu já conheci um coveiro que era advogado, muito inteligente. Você sabia que o Rod Stewart fez bicos como coveiro antes da fama? Pois é, somos iguais a todo mundo. Coveiro também é gente.

Quando eu estava no curso de filosofia, todo mundo da faculdade queria saber quem era o coveiro que estudava lá. Eu bancava o misterioso, ficava quieto no meu canto. Foi uma das melhores fases da minha vida. Foi lá que comecei a ler Kant e me apaixonei por filosofia alemã. Acabei fazendo minha monografia sobre Kierkegaard, o pai do existencialismo. Eu me dedicava muito, parecia até um adolescente, mesmo já tendo quase 50 anos. Lá também vi as dificuldades da disciplina. Filosofia é muito caro num país que não preserva nada, é um desencanto. Em mim ela permanece, mas não adianta nada ter um anel que não se pode usar. Aqui em São Paulo existe a bolha da intelectualidade – e para entrar tem que pedir licença. Eu não quero pedir licença para nada, não gosto de bolha.

Trabalhando como coveiro, eu consigo conhecer a alma humana e tenho tempo para escrever. Se fosse professor mesmo, ia ganhar bem menos do que ganho como coveiro, o que já é uma mixaria. Hoje eu dou aula de ética na Associação Nacional de Necrópsia. 

Mas continuo sendo coveiro porque aqui já aprendi muito sobre o ser humano. Quando você está na parte de cima da pirâmide social, todas as coisas que você olha são iguais. É como quando você está no avião e todos os pontinhos lá embaixo parecem a mesma coisa. Mas de onde eu estou, aqui embaixo, consigo enxergar o detalhe. Como coveiro, vejo a dor e a morte em tamanho natural. E foi durante a pandemia que eu vi as coisas mais sombrias da minha carreira, em mais de trinta anos que faço isso.

Saiu no Washington Post uma linha de dezenas de coveiros sepultando ao mesmo tempo no cemitério da Vila Formosa. Para você ver só, a gente saiu até no Washington Post. Teve também um coveiro jovem que desmaiou de cansaço, tinha uns vinte e poucos anos. Foi um pesadelo e ainda é. Por causa do risco, a gente só coloca as pessoas dentro da cova, não tem enterro propriamente dito. É mais um descarte. Perto da cova fica só a gente enterrando e, do outro lado, fica a família desesperada, pedindo para a gente não levar aquele parente. O que mais me marcou foi quando eu tive que pegar o caixão da mão de uma mãe. Ela não queria largar, queria que eu abrisse para ter certeza de que era o filho dela mesmo, mas eu não podia. Ela falou assim para mim: “Moço, não faz isso. Aí dentro tá meu sonho, minha vida”, e começou a gritar. Era um rapaz de no máximo 20 anos e tinha morrido de Covid. Ali deu vontade de largar tudo e ir embora pra casa. Foi um dos piores dias da minha vida. 

A gente não podia ter contato com ninguém dentro de casa, então cheguei a dormir do lado de fora, igual a um cachorro. Isso tudo mexe com a nossa cabeça. De vez em quando ainda sonho com essas coisas. Hoje eu tenho apoio psicológico, então eu consigo lidar melhor com isso. Mas ninguém se habitua à morte. A morte é seca, quase impenetrável. E a gente não conversa sobre ela. O pior é que minha atividade basicamente não pode ser prazerosa. Nunca pode dar origem à alegria. Ela dói e dói muito. Eu já chorei muito nessa pandemia, acho que eu sou um dos coveiros mais chorões. A gente tem que se segurar no trabalho, mas às vezes não dá. Esses dias eu lembrei do primeiro serviço que eu fiz de coveiro, foi um bebê. Peguei ele da mão da mãe e ela tremia tanto. Pediu para eu dar de volta. O cara que estava me ensinando na época falou para eu não fazer isso. Ele disse: “Depois que você pega um caixão, você só pode soltar ele na cova.” Achei muito desumano, mas é nosso trabalho.

Durante a pandemia, no lado de fora do cemitério havia filas e filas de carros de funerária. Eu me arrepiava todo. Foi coisa de assombrar, é um trabalho que cansa mentalmente, psicologicamente. Não é pra qualquer um. Aqui onde eu trabalho, no cemitério da Penha, são oito coveiros, em média. A gente já chegou a enterrar doze pessoas por dia durante a pandemia, e com a equipe reduzida a quatro pessoas. É muita coisa. Eu chego para trabalhar de manhã, abro o cemitério, mas não sei que horas vou sair, pode ser até depois de oito da noite. Chegaram a colocar holofote para a gente enterrar as pessoas à noite, de tanto que estão morrendo. 

Eu não quis sepultar à noite, tenho o privilégio de dar a desculpa de que sou velho e estou cansado. Mas sepultamento tem que ser feito de dia. À noite é perigoso, tanto para quem enterra quanto para quem assiste. É um lugar ermo, geralmente afastado e tem uma fauna própria: escorpiões, aranhas e sapos. Então é ruim fazer isso à noite. Eu já fui picado por um escorpião uma vez. Fora que isso pode durar a madrugada toda, e dão para a gente um saco de dormir desconfortável e fedido. Não gosto disso. A verdade é que o Brasil não tem um protocolo para sepultamento, como nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa. E sabe o que é mais triste? Também não tem interesse em fazer um.

Tento manter meu horário, volto para casa às seis da noite, caminhando. Moro a cerca de 3 km do cemitério. Durmo cedo porque acordo cedo também, umas 3h30 da manhã, mais ou menos. Estudo, medito, leio jornal, às vezes jogo xadrez e escrevo um pouco do meu livro, que comecei há muito tempo e agora estou desenvolvendo melhor. Recentemente escrevi um trechinho que ficou bom. É assim: “Perpendicular a esta parede que surge está outra, amparando os mortos que empilhei ainda agora. Com profundo pesar sentei-me à margem de tudo, à beira do mundo, onde até Deus termina.” Isso aqui com certeza vai entrar nas minhas memórias. 

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